Vulnerabilidades a desastres em estabelecimentos de saúde frente à pandemia de COVID-19: revisão de escopo

Ester Souza da Silva Thais da Silva Kneodler Thiago Augusto Soares Monteiro Silva Alexandre Barbosa de Oliveira Sobre os autores

Resumo

O objetivo do artigo é mapear as vulnerabilidades estruturais, não-estruturais e funcionais de estabelecimentos de saúde frente à pandemia de COVID-19. Revisão de escopo conduzida mediante recomendações do JBI e estruturada pelos Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses extension for Scoping Reviews. Foram consultados repositórios e bases de dados: PubMed, CINAHL, LILACS, EMBASE, SciELO, Scopus e Web of Science, além de literatura cinzenta. O protocolo foi registrado em Open Science Framework, 54 estudos foram incluídos, sumarizando 36 vulnerabilidades entre as três categorias, em 29 países. As vulnerabilidades funcionais e não-estruturais foram as mais recorrentes. Recursos materiais e humanos limitados, interrupção dos serviços e procedimentos não-COVID, além de capacitação profissional insuficiente foram os itens que mais impactaram. A COVID-19 expôs às nações a necessidade de fortalecer os sistemas de saúde para garantir sua resiliência em futuras crises sanitárias. Ações de gestão de risco prospectivas e análise sistematizada de vulnerabilidades dos estabelecimentos de saúde são necessárias para garantir maior segurança, sustentabilidade e melhor padrão de preparação e resposta a futuros eventos dessa natureza.

Palavras-chave:
Hospitais; Centros de saúde; Desastres; Vulnerabilidades a desastres; Infecções por coronavirus

Introdução

Os desastres, sejam eles de quaisquer etiologias, tendem a impactar as comunidades com magnitude variável, cujos efeitos diretos e indiretos trazem repercussões para diferentes instituições, setores e governos. Esses eventos podem mudar a configuração geográfica de uma região em segundos, interrompendo anos de desenvolvimento. Países desenvolvidos geralmente possuem mais recursos, sendo capazes de se reestruturarem com maior facilidade do que aqueles em processos de desenvolvimento11 World Health Organization (WHO), International Council of Nursing (ICN). ICN Framework of Disaster Nursing Competencies. Geneva: WHO/ICN; 2009.. Um exemplo contemporâneo e ao mesmo tempo emblemático é o da pandemia de COVID-19, que vem sendo categorizada por especialistas de gestão de risco como um desastre de origem natural e de tipologia biológica22 Silva RF, Siqueira AM, Silveira LTC, Oliveira AB. A redução de risco de desastres, a agenda dos Objetivos Sustentáveis e os princípios do SUS, no contexto da pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2022; 28(6):1777-1788..

Devido à natureza complexa, multifatorial e inter/transdisciplinar das situações de desastres, existem diferentes conceitos na literatura técnico-científica. Para efeito deste estudo, ressaltamos a concepção apresentada pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR), que os compreende como: uma interrupção severa no funcionamento de uma comunidade ou sociedade, que causa grande perdas humanas, materiais, econômicas e ambientais generalizadas, que excedem a capacidade da comunidade ou sociedade afetada de fazer frente à situação mediante o uso de seus próprios recursos33 Secretaría Interinstitucional de la Estrategia Internacional para la Reducción de Desastres, Naciones Unidas (EIRD/ONU). Vivir con el riesgo: informe mundial sobre iniciativas para la reducción de desastres. Geneva: ONU; 2004..

O desastre, então, é uma função do processo de risco (que se constrói socialmente através de um processo relacionado à dinâmica do desenvolvimento), o qual combina ameaças, grau de exposição, condições de vulnerabilidade e capacidade ou medidas insuficientes para reduzir as consequências negativas e os potenciais danos44 Secretaría Interinstitucional de la Estrategia Internacional para la Reducción de Desastres, Naciones Unidas (EIRD/ONU). Terminología: términos básicos sobre la reducción del riesgo de desastres. Geneva: ONU; 2004.. A pandemia da COVID-19 é considerada um desastre global, uma vez que combina tais elementos e exige o foco de setores estratégicos, articulando diversos processos, do nível local ao mundial55 Freitas CM, Silva IVM, Cidade NC. COVID-19 as a global disaster: challenges to risk governance and social vulnerability in Brazil. Ambient Soc 2020; 23:e0115..

Comumente, esses eventos alertam as autoridades para o acionamento e a operacionalização de planos de contingência para fazerem frente a tais ocorrências. Nessas situações emergenciais, atribui-se ao setor saúde, em todas as esferas governamentais, o atendimento à população atingida. As consequências se estendem sobretudo às infraestruturas, aos serviços, à economia e à sociedade local, que são os elementos básicos que dão suporte às condições de vida, como os próprios serviços de saúde podem ser comprometidos66 Freitas CM, Silva DRX, Sena ARM, Silva EL, Sales, LBF, Carvalho ML. Desastres naturais e saúde: uma análise da situação do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(9):3645-3656..

Nesse sentido, a gestão de risco de desastres engloba diversas formas de intervenção, que vão desde a elaboração de políticas e estratégias até a implementação de ações e instrumentos específicos de redução e controle de danos77 Narváez L, Lavell A, Ortega GP. La gestión del riesgo de desastres: un enfoque basado en procesos. San Isidro: Secretaría General de la Comunidad Andina; 2009..

Além disso, o funcionamento ininterrupto dos estabelecimentos de saúde diante de eventos dessa natureza tem potencial para determinar a saúde e sobrevida de inúmeras pessoas, sendo estratégico que essas instalações sejam planejadas e construídas de maneira a resistir aos impactos dos fenômenos naturais e tecnológicos, que seus equipamentos não sofram danos e sejam mantidos operantes, que suas linhas vitais sigam em funcionamento e que seu pessoal seja capaz de continuar assistindo, inclusive nessas circunstâncias comumente complexas e dramáticas, por meio de dimensionamento e planejamento estratégico de recursos humanos bem sustentado88 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). Indice de seguridade hospitalaria: guia del evaluador de hospitales seguros. Washington: OMS/OPAS; 2008..

Por influência disso, foi adotado um pacto internacional denominado Hospitais Seguros Frente aos Desastres, sob coordenação da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). No âmbito dessa política, o “hospital seguro” é caracterizado como um estabelecimento de saúde, seja ele de pequeno ou grande porte, cujos serviços permanecem acessíveis e operantes, com sua capacidade máxima instalada e em sua própria infraestrutura, mesmo após um desastre. Por meio desse pacto, os países se comprometem a garantir que todas as novas instalações de saúde construídas sigam um nível de proteção satisfatório e que implantem medidas adequadas de mitigação para os riscos já existentes99 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). ¿Su hospital es seguro? Preguntas y respuestas para el personal de salud. Quito: OMS/OPAS; 2007..

Para guiar esse processo, foi elaborado o Guia de Avaliação de Hospitais Seguros88 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). Indice de seguridade hospitalaria: guia del evaluador de hospitales seguros. Washington: OMS/OPAS; 2008., que estabelece o Índice de Segurança Hospitalar (ISH). Essa proposta de avaliação considera condições de vulnerabilidade estrutural, não estrutural e funcional dos estabelecimentos de saúde frente aos desastres99 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). ¿Su hospital es seguro? Preguntas y respuestas para el personal de salud. Quito: OMS/OPAS; 2007..

As condições de vulnerabilidades estruturais se relacionam às partes de sustentação do edifício hospitalar, cuja falha em um dos elementos, tais como paredes, colunas, vigas e lajes, pode comprometer a estrutura do edifício. Já as vulnerabilidades não-estruturais se relacionam aos componentes conectados à estrutura do edifício, tais como janelas, tetos, ar-condicionado, rede elétrica, abastecimento de água, móveis, equipamentos e insumos. Esses elementos sustentam a base para a dinâmica de um estabelecimento de saúde e se relacionam com a infraestrutura hospitalar, as condições de trabalho, os recursos materiais e os equipamentos. E as vulnerabilidades funcionais se relacionam com a distribuição e o relacionamento entre os espaços arquitetônicos e os serviços clínicos de suporte ofertados pela unidade hospitalar. Em síntese, o adequado zoneamento e a correlação entre as áreas do edifício podem garantir uma dinâmica gerencial eficaz em condições normais e em situações de emergências e desastres99 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). ¿Su hospital es seguro? Preguntas y respuestas para el personal de salud. Quito: OMS/OPAS; 2007..

A partir da identificação de um novo coronavírus na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, em 20191010 Huang C, Wang Y, Li X, Ren L, Zhao J, Hu Y, Zhang L, Fan G, Xu J, Gu X, Cheng Z, Yu T, Xia J, Wei Y, Wu W, Xie X, Yin W, Li H, Liu M, Xiao Y, Gao H, Guo L, Xie J, Wang G, Jiang R, Gao Z, Jin Q, Wang J, Cao B. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet 2020; 395(10223):497-506., e da constatação pela Organização Mundial da Saúde (OMS) dessa ocorrência como uma pandemia1111 World Health Organization (WHO). WHO Director-General's opening remarks at the media briefing on COVID-19 [Internet]. 2020. [cited 2023 fev 11]. Available from: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020
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, governos, instituições e comunidades passaram a estar mobilizados para o enfrentamento dos efeitos diretos e indiretos da doença. Atualmente, países das Américas lideram a taxa de mortalidade mundial por COVID-19, sendo os Estados Unidos da América (EUA) e o Brasil os líderes nesse ranking1212 Johns Hopkins University & Medicine. Mortality Analyses [Internet]. 2022. [cited 2023 fev 11]. Available from: https://coronavirus.jhu.edu/data/mortality
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. Entretanto, as medidas de saúde pública não se atentaram exclusivamente aos casos graves, visto que os assintomáticos ou com sintomas leves representaram cerca de 80% do total dos casos1313 Medeiros GB, Iochims FS, Adams EM, Beling JC, Rezende B, Koepp J, Possuelo LG, Carneiro M, Gaedke MA, Schneider APH, Darsie C, Bertelli C. Prevalência de casos assintomáticos entre os infectados pelo SARS-CoV-2 em SCS: um estudo de base populacional. RJP 2021; 11(1):3-13.. Dessa forma, os casos clínicos mais leves ou moderados precisaram ser manejados adequadamente, determinando a observância de modelos assistenciais condizentes com as demandas impostas pelo avanço da pandemia1414 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Organização emergencial da rede de atenção à saúde no estado do Rio de Janeiro para enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (COVID-19): nota técnica conjunta de pesquisadores da UFRJ, UERJ e Fiocruz [Internet]. 2020. [acessado 2022 fev 8]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/40790
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A facilidade de transmissão, a sobrecarga dos sistemas de saúde em função do grande número de pessoas infectadas, bem como a falta de medicamentos comprovadamente eficazes contra a COVID-19 trouxeram à tona vulnerabilidades de estabelecimentos de saúde e dificuldades de gestão de risco desse desastre, diante do colapso verificado em grande parte dos sistemas de saúde. Até julho de 2022 (recorte temporal da pesquisa), o Coronavirus Resource Center registrou 553.500.224 casos confirmados e 6.349.732 mortes pela doença ao redor do mundo1515 Johns Hopkins University & Medicine. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU) [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
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Em linhas gerais, importou o planejamento de ações de curto a longo prazo para prevenir o agravamento da crise a partir da consideração de boas práticas de gestão de risco1515 Johns Hopkins University & Medicine. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU) [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
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. Para um melhor padrão de resposta, é necessário elaborar e implementar planos de resposta emergenciais, a fim de reduzir as condições de risco, considerando as vulnerabilidades dos estabelecimentos de saúde. Nesse sentido, esta revisão de escopo objetivou mapear as vulnerabilidades estruturais, não-estruturais e funcionais de estabelecimentos de saúde frente à pandemia de COVID-19.

Para tanto, uma busca preliminar de revisões de escopo similares ao objetivo em questão foi realizada na MEDLINE (via PubMed), JBI Database of Systematic Reviews and Implementation Reports e na Cochrane Database of Systematic Reviews, não sendo identificadas revisões com os mesmos propósitos, o que propiciou a realização deste estudo.

Métodos

Trata-se de uma revisão de escopo estruturada de acordo com as recomendações do JBI, que utilizou os itens do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR) como matriz para elaboração do relatório da pesquisa1616 Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Munn Z, Tricco AC, Khalil, H. Chapter 11: Scoping Reviews (2020 version). In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis [Internet]. 2020. p. 363-406. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://doi.org/10.46658/JBIMES-20-12
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,1717 Tricco AC, Lillie E, Zarin W, O'Brien KK, Colquhoun H, Levac D, Moher D, Peters MDJ, Horsley T, Weeks L, Hempel S, Akl EA, Chang C, McGowan J, Stewart L, Hartling L, Aldcroft A, Wilson MG, Garritty C, Lewin S, Godfrey CM, Macdonald MT, Langlois EV, Soares-Weiser K, Moriarty J, Clifford T, Tunçalp Ö, Straus SE. PRISMA extension for scoping reviews (PRISMAScR): checklist and explanation. Ann Intern Med 2018; 169(7):467-473.. O protocolo desta pesquisa foi registrado no Open Science Framework (OSF), e pode ser consultado no link a seguir: https://osf.io/3hkr6/.

Questão de pesquisa

Utilizou-se o mnemônico PCC (P - população/participantes, C - conceito e C - contexto) para a construção da seguinte pergunta de revisão: “quais as vulnerabilidades estruturais, não-estruturais e funcionais de estabelecimentos de saúde que foram identificadas durante o enfrentamento da pandemia de COVID-19?”

Critérios de eligibilidade

Participantes: foram incluídos todos os tipos de estabelecimentos que prestaram serviços de saúde à população durante o enfrentamento da pandemia de COVID-19.

Conceito: o conceito se baseou em vulnerabilidades estruturais, não-estruturais e funcionais que os serviços de saúde apresentaram. Essas se mostraram como desafios ou problemas que impactaram e/ou impossibilitaram as práticas em saúde frente à pandemia. Tais vulnerabilidades foram categorizadas a partir dos aspectos avaliados no Índice de Segurança Hospitalar: Guia de Avaliação de Hospitais Seguros da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS)88 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). Indice de seguridade hospitalaria: guia del evaluador de hospitales seguros. Washington: OMS/OPAS; 2008..

Contexto: limitou-se à pandemia de COVID-19, no período de março de 2020 a julho de 2022. Estudos fora do recorte temporal de resposta à pandemia, ainda que tratassem de situações de desastres biológico parecidas, não foram considerados.

Tipos de fontes: esta revisão de escopo considerou estudos primários (pesquisas originais) e secundários (revisões sistemáticas e não sistemáticas) publicados, ou não publicados, em portais, repositórios e bases de dados nacionais e internacionais. Estudos duplicados, sem texto completo e resumos publicados em anais de eventos não foram considerados.

Estratégia de busca: inicialmente, foram identificados descritores controlados (MeSH, DeCS e EMTREE) e não controlados, pensados a partir das palavras-chaves da pergunta de pesquisa, utilizados para a construção da estratégia de busca inicial, como “Health Services”, “Centros de Saúde”, “Hospitals”, “Vulnerability Analysis” e “COVID-19”. Com o auxílio de bibliotecários, foi feito o refinamento e a adaptação das estratégias de busca para cada base/repositório de dados utilizada.

As fontes de dados pesquisadas foram: PubMed, CINAHL, LILACS (via BVS), EMBASE, SciELO, Scopus e Web of Science. Para a literatura cinzenta, foi utilizada a Epistemonikos: Database of the best Evidence-Based Health Care, Information Technologies and a Network of Experts, em conjunto com o buscador acadêmico Google Scholar.

Seleção e triagem de estudos: a etapa de seleção ocorreu em julho de 2022 e, após as buscas, todos os registros identificados foram agrupados e importados para o Rayyan (Qatar Computing Research Institute, Doha, Qatar)1818 Ouzzani M, Hammady H, Fedorowicz Z, Elmagarmid A. Rayyan - a web and mobile app for systematic reviews. Sys Rev 2016; 5(1):210.. A primeira etapa consistiu na remoção das duplicatas; em seguida houve a triagem por título e resumo; e por fim a análise do texto completo e das referências dos artigos selecionados. Os títulos e resumos, assim como os estudos oriundos das listas de referências, foram selecionados por dois revisores independentes, com cegamento, que avaliaram os estudos de acordo com os critérios de elegibilidade. Um terceiro revisor foi consultado para a resolução dos conflitos por meio da análise dos estudos e dos critérios de inclusão em todas as etapas da triagem.

Os critérios de exclusão usados nesta revisão foram: estudos fora da temática abordada, seja por não tratarem de serviços de saúde e/ou não abordarem impactos e vulnerabilidades ao desastre da pandemia de COVID-19; estudos fora do recorte temporal, ou seja, antes de 2020; estudos duplicados ou sem texto completo; e resumos publicados em anais de eventos.

Extração de dados: os dados gerais, relacionados à identificação dos estudos, e os específicos, relacionados a participantes, conceito e contexto, foram coletados por meio de instrumento específico de extração de dados, desenvolvido sob forma de planilha do Microsoft Excel, em alinhamento com o objetivo da revisão. Assim, os dados extraídos incluíram autores, ano de publicação, título, país, idioma, tipo de documento, revista, financiamento da pesquisa, método e os conceitos de interesse da pesquisa. O instrumento de extração das vulnerabilidades foi modificado pelos autores ao longo do processo, a fim de adaptá-lo às informações colhidas, com a adição de subcategorias. Não foi necessário requisitar quaisquer informações adicionais ou esclarecimentos sobre os dados para com os autores dos artigos incluídos.

Análise e apresentação de dados: os dados extraídos foram alocados e analisados por meio de planilhas do Excel, de acordo com os instrumentos de extração anteriormente definidos. A partir da análise de dados, foram estruturadas ilustrações desenvolvidas em Word, Lucidchart e Canva.

Resultados

De um total de 3.226 estudos selecionados para a triagem, apenas 127 artigos foram considerados potencialmente relevantes. Após a leitura do texto completo, 51 estavam fora do conceito, 21 estavam fora da população definida e oito não tinham texto completo. Ao final, 54 artigos foram incluídos na revisão, sendo sete deles extraídos da lista de referências dos estudos. Os resultados do processo de triagem e de seleção dos estudos estão resumidos em fluxograma PRISMA (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma PRISMA do processo de seleção dos estudos.

Características gerais dos estudos

Durante a análise dos 54 estudos incluídos (Tabela 1), notou-se que todos foram produzidos por diferentes autores e tinham seu texto disponível em inglês. O maior volume de publicação foi em 2021 (46,3%); parte não recebeu nenhum tipo de financiamento (42,5%). Em relação aos tipos de documento, 35 (64,8%) eram artigos originais de pesquisa, seis (11,1%) eram perspectivas, enquanto os outros 13 estavam sob forma de comentário (7,4%), pré-print (5,5%), ponto de vista e comunicação breve (3,7%), editorial, opinião e análise (1,8%). Cerca de 42 (77,7%) estudos foram publicados em diferentes periódicos, e as revistas que mais publicaram sobre o assunto foram PLoS One e Research Square, com três (5,5%) publicações cada.

Tabela 1
Resumo dos parâmetros dos estudos.

Entre os países mais citados, temos os EUA representando 10,5% dos estudos, Índia com 8,7%, e Brasil e Paquistão com 7,0% das citações. Três estudos não tiveram delimitação geográfica. Contudo, países dos cinco continentes foram relatados nas pesquisas selecionados. Na Tabela 1 é apresentada uma síntese dos principais achados.

Observou-se que a maioria dos estudos têm abordagem quantitativa, tipologia exploratória ou descritiva e metodologia de pesquisa de campo (22,2%), cuja coleta de dados se deu geralmente por meio de observações, entrevistas ou formulários. Esses estudos comumente tiveram como foco analisar e quantificar como os serviços foram impactados pela pandemia de COVID-19. Há de se considerar que as pesquisas observacionais (estudos de casos, coortes e transversais) e as com abordagem qualitativa também tiveram destaque, representando 11,1% do total. Tais publicações registraram experiências vividas ou opiniões empíricas durante o evento e propuseram recomendações para a gestão de risco.

Vulnerabilidades

Para cada tipo de vulnerabilidade, seja estrutural, não-estrutural ou funcional, foram criadas subcategorias de acordo com os aspectos avaliados no ISH (Quadro 1). Desse modo, 11 itens foram estabelecidos, sendo eles: estado do prédio; condição e segurança da equipe de saúde; condição e segurança de equipamentos médicos, laboratoriais e suprimentos; operação das linhas vitais; capacidade hospitalar; condição das vias de acesso ao hospital; prestação de serviços; força de trabalho em saúde; sistemas de informação em saúde; gestão do setor saúde; e gerenciamento da COVID-19.

Quadro 1
Categorização das vulnerabilidades encontradas.

Ao todo, foram identificadas 36 vulnerabilidades relacionadas aos componentes estruturais, não-estruturais e funcionais dos estabelecimentos/serviços de saúde. Ao longo da revisão, elas foram citadas 300 vezes, sendo as mais frequentes: recursos materiais (13,3%) e humanos (8,6%) limitados, interrupção dos serviços/procedimentos de saúde não-COVID e capacitação profissional insuficiente (7,6%), capacidade de testagem limitada (6,0%), estratégias de bem-estar do profissional insuficientes (5,3%), prevenção e controle de infecção insuficiente (5,0%), número de leitos insuficiente (4,6%), instalações inadequadas para pacientes COVID-19 (4,3%) e capacidade de pico limitada (4%).

As vulnerabilidades mais citadas foram agrupadas em um esquema diagramado de Ishikawa (Figura 2), representando as causas e os efeitos das principais vulnerabilidades a desastres que os estabelecimentos de saúde enfrentaram na resposta à pandemia de COVID-19.

Figura 2
Principais vulnerabilidades.

Discussão

Esta revisão com 54 estudos envolvendo 29 países sumarizou diversas vulnerabilidades apresentadas por redes hospitalares, departamentos, serviços de saúde e outras instituições no contexto da pandemia de COVID-19, expondo como os sistemas de saúde não estavam adequadamente preparados para responder a um desastre biológico dessa natureza, mesmo nos países mais desenvolvidos.

Vulnerabilidades estruturais

Estado do prédio

Para ser capaz de responder a um desastre, um estabelecimento de saúde precisa estar em plenas condições de funcionamento e contar com uma infraestrutura resiliente. No entanto, de acordo com Índice Global de Segurança da Saúde de 2021, nenhum país está preparado para gerenciar efetivamente uma catástrofe, incluindo epidemias e pandemias, cujo relatório registrou a pontuação média geral dos países de 38,9 em 100 possíveis1919 Bell J, Nuzzo J. 2021 GHS Index: advancing collective action and accountability amid global crisis [Internet]. 2021. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.ghsindex.org/wp-content/uploads/2021/12/2021_GHSindexFullReport_Final.pdf
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Nesta revisão, quatro estudos reportaram o deterioramento de instalações de saúde em serviços de saúde no Brasil, no Equador, na Colômbia, no Haiti, na Jordânia e no Paquistão2020 Haq W, Said F, Batool S, Awais HM. Experience of physicians during COVID-19 in a developing country: a qualitative study of Pakistan. J Infect Dev Ctries 2021; 15(2):191-197.

21 Martin-Delgado J, Viteri E, Mula A, Serpa P, Pacheco G, Prada D, Campos de Andrade Lourenção D, Campos Pavan Baptista P, Ramirez G, Mira JJ. Availability of personal protective equipment and diagnostic and treatment facilities for healthcare workers involved in COVID-19 care: a cross-sectional study in Brazil, Colombia, and Ecuador. PLoS One 2020; 15(11):e0242185.
-2222 Rajakaruna SJ, Liu WB, Ding YB, Cao GW. Strategy and technology to prevent hospital-acquired infections: lessons from SARS, Ebola, and MERS in Asia and West Africa. Military Med Res 2017; 4(1):32..

Historicamente, países em desenvolvimento apresentam maiores dificuldades de absorver os impactos decorrentes de uma emergência de saúde pública devido à sua fraca infraestrutura de saúde e tecnologias não desenvolvidas para prevenção de epidemias2222 Rajakaruna SJ, Liu WB, Ding YB, Cao GW. Strategy and technology to prevent hospital-acquired infections: lessons from SARS, Ebola, and MERS in Asia and West Africa. Military Med Res 2017; 4(1):32.. Um estudo mostrou que a maioria dos hospitais e instalações de saúde da Ásia e África não fora projetada para lidar com doenças altamente infecciosas, como ocorreu nos surtos de MERS, ebola e SARS2222 Rajakaruna SJ, Liu WB, Ding YB, Cao GW. Strategy and technology to prevent hospital-acquired infections: lessons from SARS, Ebola, and MERS in Asia and West Africa. Military Med Res 2017; 4(1):32..

Vulnerabilidades não-estruturais

Condições e segurança da equipe e dos insumos de saúde

Um dos maiores desafios enfrentados durante a pandemia de COVID-19 foi a escassez de suprimentos, como foi demonstrado em vários estudos. Mesmos os países mais ricos sofreram com a escassez de equipamentos de proteção individual (EPI), de suprimentos (medicamentos e desinfetantes), bem como equipamentos para ventilação assistida2323 Livingston E, Desai A, Berkwits M. Sourcing personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. JAMA 2020; 323(19):1912-1914.,2424 Ranney ML, Griffeth V, Jha AK. Critical supply shortages - the need for ventilators and personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. N Engl J Med. 2020; 382(18):e41.. Na Itália, os profissionais de saúde vivenciaram altas taxas de infecção e morte, que em parte foram atreladas ao acesso inadequado aos EPI2424 Ranney ML, Griffeth V, Jha AK. Critical supply shortages - the need for ventilators and personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. N Engl J Med. 2020; 382(18):e41.. Em certas emergências e desastres envolvendo doenças infectocontagiosas, tais recursos são essenciais para prestar assistência segura e proteger os profissionais de saúde nas linhas de frente.

A limitação de recursos materiais foi relatada em 40 estudos, figurando como o aspecto mais frequente entre os impactos da COVID-19. A falta de EPI foi predominante entre os serviços, principalmente durante a primeira onda da pandemia, em que as nações estavam praticamente guerrilhando por esses recursos no mercado mundial2525 McMahon DE, Peters GA, Ivers LC, Freeman EE. Global resource shortages during COVID-19: Bad news for low-income countries. PLoS Negl Trop Dis 2020;14(7):e0008412.. Entretanto, como apontado em alguns estudos, a falta de EPI já era crônica, sobretudo nos países mais pobres, como os da África Ocidental, o que levou a um cenário crítico de racionamento durante a pandemia, demonstrando os graus de desassistência e de exposição das populações mais vulnerabilizadas2525 McMahon DE, Peters GA, Ivers LC, Freeman EE. Global resource shortages during COVID-19: Bad news for low-income countries. PLoS Negl Trop Dis 2020;14(7):e0008412.,2626 Fisher-Borne M, Isher-Witt J, Comstock S, Perkins RB. Understanding COVID-19 impact on cervical, breast, and colorectal cancer screening among federally qualified healthcare centers participating in "Back on track with screening" quality improvement projects. Prev Med 2021; 151:106681..

Inegavelmente, os profissionais de saúde foram um dos pilares cruciais para o enfrentamento de uma doença ainda desconhecida e com um curso evolutivo imprevisível, mas ainda assim salvaram milhares de vidas. Mesmo que experiências anteriores demonstrem que essa categoria profissional é uma das que mais se envolvem e sofrem durante emergências e desastres2727 Jiménez-Giménez M, Sánchez-Escribano A, Figuero-Oltra MM, Bonilla-Rodríguez J, García-Sánchez B, Rojo-Tejero N, Sánchez-González MÁ, Muñoz-Lorenzo L. Taking care of those who care: attending psychological needs of health workers in a hospital in Madrid (Spain) during the COVID-19 pandemic. Curr Psychiatry Rep 2021 Jun 19;23(7):44.,2828 Lee SM, Kang WS, Cho AR, Kim T, Park JK. Psychological impact of the 2015 MERS outbreak on hospital workers and quarantined hemodialysis patients. Compr Psychiatry 2018; 87:123-127., medidas para promover condições de trabalho dignas e seguras ainda são deveras ignoradas.

Estratégias insuficientes de bem-estar dos profissionais de saúde foram problemáticas relacionadas a vulnerabilidades não estruturais relatadas por 16 estudos, o que, de certa maneira, indica oferta precária de medidas físicas e materiais para aliviar o estresse e os desconfortos durante o exercício laboral. Ambientes mal climatizados ou sem ventilação eficiente, ausência de locais adequados para descanso ou trabalho e de espaços para higiene, paramentação ou desparamentação, além da indisponibilidade de EPI e de suprimentos necessários para o manejo clínico dos pacientes, são alguns dos desafios evidenciados2121 Martin-Delgado J, Viteri E, Mula A, Serpa P, Pacheco G, Prada D, Campos de Andrade Lourenção D, Campos Pavan Baptista P, Ramirez G, Mira JJ. Availability of personal protective equipment and diagnostic and treatment facilities for healthcare workers involved in COVID-19 care: a cross-sectional study in Brazil, Colombia, and Ecuador. PLoS One 2020; 15(11):e0242185..

Capacidade hospitalar

Outro ponto de destaque diante das vulnerabilidades não-estruturais foi em relação à inadequação dos setores de saúde frente ao aumento do número de hospitalizações. Para limitar e controlar a transmissão local, foram necessárias medidas rigorosas de detecção, prevenção e controle, como a identificação rápida de casos suspeitos, isolamento dos pacientes e diagnóstico rápido2929 WHO Emergency Committee. Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV) [Internet]. 2020. [cited 2022 ago 19]. Available from: https://www.who.int/news-room/detail/30-01-2020-statement-on-the-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-outbreak-of-novel-coronavirus-(2019-ncov)
https://www.who.int/news-room/detail/30-...
. Entretanto, para aplicação de um arcabouço vasto de intervenções técnicas e operacionais, depende-se da infraestrutura e dos recursos laboratoriais e de saúde pública de cada país3030 Gilbert M, Pullano G, Pinotti F, Valdano E, Poletto C, Boëlle PY, D'Ortenzio E, Yazdanpanah Y, Eholie SP, Altmann M, Gutierrez B, Kraemer MUG, Colizza V. Preparedness and vulnerability of African countries against importations of COVID-19: a modelling study. Lancet 2020; 395(10227):871-877..

Problemas envolvendo instalações inadequadas para pacientes com COVID-19 foram relatados por 13 estudos, o que representa a ausência ou insuficiência de aparatos e/ou tecnologias nos setores críticos dos hospitais, como as unidades de terapia intensiva (UTI). Alguns estudos referiram que seus setores careciam de uma área própria para triagem, ou que esta era improvisada3131 Shahid A, Zahra T, Mahwish R, Zaidi S. Preparedness of public hospitals for the coronavirus (COVID-19) pandemic in Lahore District, Pakistan. CUREUS 2022; 14(2):e22477.,3232 Casalino E, Bouzid D, Ben Hammouda A, Wargon M, Curac S, Hellmann R, Choquet C, Ghazali DA. COVID-19 preparedness among emergency departments: a cross-sectional study in France. Disaster Med Public Health Prep 2022; 16(1):245-253. Os espaços de isolamento para pacientes com COVID-19 foram adaptados e não eram arquitetonicamente projetados para acomodar pacientes com doenças transmitidas por gotículas ou aerossóis3131 Shahid A, Zahra T, Mahwish R, Zaidi S. Preparedness of public hospitals for the coronavirus (COVID-19) pandemic in Lahore District, Pakistan. CUREUS 2022; 14(2):e22477.

32 Casalino E, Bouzid D, Ben Hammouda A, Wargon M, Curac S, Hellmann R, Choquet C, Ghazali DA. COVID-19 preparedness among emergency departments: a cross-sectional study in France. Disaster Med Public Health Prep 2022; 16(1):245-253

33 Tiruneh A, Yetneberk T, Eshetie D, Chekol B, Gellaw M. A cross-sectional survey of COVID-19 preparedness in governmental hospitals of North-West Ethiopia. SAGE Open Medicine 2021; 10:9:20503121 21993292.
-3434 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segurança do paciente em serviços de saúde: higienização das mãos. Brasília: Anvisa; 2009.. Outro aspecto importante foi a ausência de locais para higienização das mãos3131 Shahid A, Zahra T, Mahwish R, Zaidi S. Preparedness of public hospitals for the coronavirus (COVID-19) pandemic in Lahore District, Pakistan. CUREUS 2022; 14(2):e22477., conduta crucial para evitar a transmissão cruzada no ambiente hospitalar3434 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segurança do paciente em serviços de saúde: higienização das mãos. Brasília: Anvisa; 2009..

A “capacidade de pico” também foi um desafio registrado em 12 estudos, que elucidaram que a demanda de pacientes era muito maior do que a oferta que os serviços de saúde podiam oferecer. A distribuição geográfica de estabelecimentos de saúde também foi um fator relevante a ser considerado, uma vez que as áreas mais distantes de centros urbanos tendem a sofrer com a escassez de instalações de saúde capazes de atender a toda a população adscrita3535 Andini I, Djunaedi, A. Mapping of rural health services during COVID-19 pandemic in Central Java, Indonesia: rethinking remoteness IOP Sci 2021; 887:012032. https://doi.org/10.1088/1755-1315/887/1/012032
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.

O número insuficiente de leitos é um dos fatores que levou os estabelecimentos de saúde a funcionarem com sua capacidade máxima instalada, sendo registrado em 14 estudos. Estimativas indicam que, em Bangladesh, a razão de leitos de UTI disponíveis por 100.000 habitantes foi de 0,7, enquanto a média dos países asiáticos é de 3,6 leitos3636 Molla MMA, Disha JA, Yeasmin M, Ghosh AK, Nafisa T. Decreasing transmission and initiation of countrywide vaccination: key challenges for future management of COVID-19 pandemic in Bangladesh. Int J Health Plann Mgmt 2021 36(4):1014-1029.. De todo modo, apesar do número de leitos ter sido um parâmetro importante durante a pandemia, a literatura demonstra que, além disso, outros fatores afetaram a prestação de cuidados durante esse evento, entre eles a escassez de recursos materiais e de especialistas2424 Ranney ML, Griffeth V, Jha AK. Critical supply shortages - the need for ventilators and personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. N Engl J Med. 2020; 382(18):e41.,3737 Ma X, Vervoort D. Critical care capacity during the COVID-19 pandemic: global availability of intensive care beds. J Crit Care 2020; 58:96-97.,3838 Centers for Disease Control and Prevention. Strategies to mitigate healthcare personnel staffing shortages [Internet]. 2020. [cited 2022 ago 3]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/mitigating-staff-shortages.html
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.

Outro aspecto considerado é a capacidade de testagem limitada, bem como serviços laboratoriais insuficientes. Além disso, a insuficiência de testes para COVID-19 foi a problemática mais presente nessa subcategoria. Tal aspecto reitera a importância das testagens no rastreio e diagnóstico de casos suspeitos, como foi observado em estudos na Coreia do Sul, no Vietnã e na China3939 Her M. How Is COVID-19 affecting South Korea? What Is our current strategy? Disaster Med Public Health Prep 2020; 14(5):684-686.

40 Ha BTT, Ngoc Quang L, Mirzoev T, Tai NT, Thai PQ, Dinh PC. Combating the COVID-19 epidemic: experiences from Vietnam. IJERPH 2020; 17(9):3125.
-4141 National Health Commission of the People's Republic of China. Protocol on Prevention and Control of COVID-19 (Edition 6) [Internet]. 2020. [cited 2023 ago 3]. Available from: https://www.chinadaily.com.cn/pdf/2020/2.COVID19.Prevention.and.Control.Protocol.V6.pdf
https://www.chinadaily.com.cn/pdf/2020/2...
.

Alguns estudos revelam que os motivos para falhas no processo de testagem da população se referiram ao número limitado de laboratórios, à falta de kits ou outros suprimentos, à demora no processamento das amostras, à subnotificação, ao gerenciamento inadequado das amostras e à recusa ou medo da população em ser testada. Alguns estudos ainda referiram o desafio no manejo, armazenamento e transporte das amostras nos serviços, assim como a falta de outros serviços laboratoriais e competência técnica para tal.

Vulnerabilidades funcionais

Prestação de serviços e força de trabalho no setor saúde

Com a iminência de casos de COVID-19, os serviços de saúde foram forçados a reduzir ou interromper procedimentos não essenciais para alocar todos os seus recursos no combate à doença4242 Narwal S, Jain S. Building resilient health systems: patient safety during COVID-19 and lessons for the future. J Health Manag 2021; 23(1):166-181.. A interrupção dos serviços/procedimentos não-COVID foi registrada 23 vezes, o que remete à diminuição dos atendimentos para cirurgias eletivas, procedimentos de rastreio, triagens, diagnósticos, entre outros. Mesmo após dois anos do início da pandemia, as instalações de saúde de 90% de certos países ainda sofriam com as interrupções contínuas de serviços essenciais4343 Nações Unidas Brasil. Serviços essenciais de saúde enfrentam interrupções contínuas durante pandemia [internet]. 2022. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/171278-servicos-essenciais-de-saude-enfrentam-interrupcoes-continuas-durante-pandemia
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. Na Itália, a pandemia causou interrupções, atrasos, reduções e cancelamentos das consultas maternas e neonatais em 70% das instituições de saúde materno-infantil4444 Cena L, Rota M, Calza S, Massardi B, Trainini A, Stefana A. Estimating the impact of the COVID-19 pandemic on maternal and perinatal health care services in Italy: results of a self-administered survey. Front Public Health 2021; 9:701638..

Boa parte dessas interrupções registradas nos estudos teve como causa-raiz “recursos humanos limitados”, “capacitação profissional insuficiente”, “gestão de equipe insuficiente” e “impactos psicológicos”. Essas vulnerabilidades que envolvem os recursos humanos de saúde impactaram a prestação de serviços também. Tanto que a maioria dos estudos citados expuseram suas dificuldades em gerir equipes de trabalho e contar com apoio suficiente para as grandes demandas exigidas. Entre elas, a limitação de recursos humanos foi a mais citada, remetendo à escassez de profissionais de saúde aptos nos serviços de saúde e à necessidade de planejamento estratégico e dimensionamento plausível desses recursos.

Além disso, ressalta-se que um estudo desenvolvido no Brasil sobre as condições dos trabalhadores da saúde durante a COVID-19 revelou que 43,3% não se sentia protegido contra a COVID-19, e que o principal motivo estava atrelado à limitação de uso dos EPI4545 Leonel F. Pesquisa analisa o impacto da pandemia entre profissionais de saúde [Internet]. 2021. [acessado 2023 ago 8]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude#:~:text=Os%20dados%20indicam%20que%2043,a%20necessidade%20de%20improvisar%20equipamentos
https://portal.fiocruz.br/noticia/pesqui...
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Atrelados a tais aspectos estão os impactos psicológicos causados pela alta carga de trabalho e o gerenciamento ineficaz, em função do elevado nível de estresse e da exaustão devido à situação caótica nunca antes vivenciada nas UTIs. As publicações compilam altas taxas de burnout, sintomas depressivos, distúrbios do sono e ansiedade entre essa população. Assim como recomenda a OPAS, é necessário que os estabelecimentos prevejam medidas de apoio psicológico para os profissionais de saúde em seus planos de contingência88 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). Indice de seguridade hospitalaria: guia del evaluador de hospitales seguros. Washington: OMS/OPAS; 2008..

Os recursos humanos de saúde, em muitos registros, também careciam de conhecimento técnico suficiente para lidar com pacientes em estado crítico. A falta de preparação foi uma situação comum na maioria dos países afetados, como na Espanha, onde cerca de 54% dos profissionais da atenção primária não receberam treinamento adequado de paramentação e desparamentação4646 Cebrián-Cuenca A, Mira JJ, Caride-Miana E, Fernández-Jiménez A, Orozco-Beltrán D. Sources of psychological distress among primary care physicians during the COVID-19 pandemic's first wave in Spain: a cross-sectional study. Prim Health Care Res Dev 2021; 22:e55.,4747 Kamerow D. COVID-19: the crisis of personal protective equipment in the US. BMJ 2020; 369:m1367..

Gestão do setor saúde e gerenciamento COVID-19

De acordo com a OPAS, os hospitais precisam ter uma reserva financeira orçada e garantida para casos de emergências88 Organización Mundial de la Salud (OMS), Organización Pan-Americana de la Salud (OPAS). Indice de seguridade hospitalaria: guia del evaluador de hospitales seguros. Washington: OMS/OPAS; 2008.. Entretanto, sete estudos de países de baixa e de alta renda relatam limitação de recursos financeiros entre os desafios na gestão da saúde. As pesquisas atribuíram essa dificuldade tanto à redução dos atendimentos clínicos e serviços não-COVID quanto ao subfinanciamento crônico pré-existentes nas nações.

Outra dificuldade apontada é relacionada à necessidade de preparação do setor de saúde para o enfrentamento de futuros desastres biológicos, como atestado nas publicações que expuseram níveis de preparação insuficientes para o enfrentamento da pandemia, bem como no que se refere à coordenação intersetorial.

Em suma, as pesquisas demonstraram que os hospitais não tinham planos de contingência, equipes de resposta rápida, gabinetes de crise e comunicação de risco multisetorial. O Paquistão, por exemplo, é um país onde foi indicada a necessidade de um sistema de detecção e controle de surtos, uma vez que obteve nota zero no Global Health Security Index 2019 no quesito de preparação para emergências e planejamento das respostas4848 Atif M, Malik I. Why is Pakistan vulnerable to COVID-19 associated morbidity and mortality? A scoping review. Int J Health Plann Mgmt 2020; 35(5):1041-1054..

Com relação à prevenção e controle de infecções, os estudos sumarizam que os principais problemas ocorreram como efeito das condições de trabalhos sub-ótimas, como a falta de insumos e equipamentos hospitalares e as lacunas de conhecimento dos trabalhadores da linha de frente, que apresentavam pouca ou nenhuma experiência em UTI. Os primeiros casos de COVID-19 em Wuhan, na China, expuseram que 29% dos pacientes acometidos eram profissionais que integravam o corpo de trabalho hospitalar, mostrando que o protocolo de prevenção de infecções vigente à época não era suficiente para conter a propagação do vírus4949 Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, Wang B, Xiang H, Cheng Z, Xiong Y, Zhao Y, Li Y, Wang X, Peng Z. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus-infected pneumonia in Wuhan, China. JAMA 2020; 323(11):1061-1069.. Além disso, existiram questões como a reutilização dos EPI e o uso inadequado deles quando disponíveis.

Somado a isso, há o desconhecimento ou despreparo, por parte dos profissionais, dos protocolos para gerenciamento clínico da COVID-19. Por ser uma doença nova, suas diretrizes clínicas para tratamento e diagnóstico mudavam frequentemente, de acordo com os novos achados em pesquisas. No entanto, limitações técnicas, logísticas e de estoque também dificultaram a implementação dos protocolos.

Dois estudos relataram o uso de medicamentos sem comprovação científica, como hidroxicloroquina e antirretrovirais. Apesar da falta de respaldo científico, lideranças políticas de países americanos, como Brasil e EUA, incentivaram, produziram e estocaram o uso dessas drogas para o tratamento da COVID-194242 Narwal S, Jain S. Building resilient health systems: patient safety during COVID-19 and lessons for the future. J Health Manag 2021; 23(1):166-181., o que trouxe sérias preocupações da comunidade científica, uma vez que também limitou o estoque para os pacientes que realmente faziam uso recomendado da medicação para o tratamento de outros quadros clínicos5050 Tripathy JP. Does pandemic justify the use of hydroxychloroquine for treatment and prevention of COVID-19 in India? J Med Virol 2020; 92(9):1391-1393..

Conclusão

A pandemia de COVID-19 expôs às nações a necessidade de fortalecer os sistemas de saúde, a fim de garantir sua resiliência, especialmente quando ocorrerem crises sanitárias semelhantes no futuro. Diante de um desastre global, as limitações impostas pela escassez de recursos acentuaram problemas já existentes, como a infraestrutura de saúde deficiente em comunidades de alta e baixa renda, prejudicando ainda mais as tentativas de resposta a esse desastre, o que levantou desafios sem precedentes. A prevalência de vulnerabilidades funcionais afetou significativamente a prestação de serviços, expondo a importância da contração de profissionais de saúde capacitados e do treinamento contínuo daqueles já incorporados nas unidades de saúde, além da garantia de boas condições laborais para que as práticas clínicas possam ocorrer de maneira segura e com a devida qualidade, o que se garante por meio de um bom planejamento estratégico de recursos humanos para o enfrentamento de desastres.

Recomenda-se que, no bojo dos projetos de novos estabelecimentos de saúde, sejam consideradas as recomendações para a construção de prédios resilientes a desastres, sejam estes de quaisquer tipologias. Além disso, as unidades já existentes precisam implementar processos sistematizados de análise de vulnerabilidades, visando a gestão de risco prospectiva e a adequação aos padrões de segurança vigentes.

São necessários novo estudos sobre a aplicabilidade do ISH em diferentes tipos de estabelecimentos de saúde, além dos hospitalares, visto que há uma limitação nas vulnerabilidades apresentadas no documento, que não contempla todos os modelos de estabelecimentos de saúde vigentes, a fim de se buscar o fortalecimento da resiliência local e o desenvolvimento da cultura do hospital seguro em contextos de desastres.

Agradecimentos

Aos bibliotecários do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva e da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela preciosa ajuda no refinamento das estratégias de busca das fontes de informação.

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  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001; e também do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    07 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br