Um livro para continuar sempre à mão

A book to keep on hand at all times

Nelson Filice de Barros Sobre o autor
Barros, NF. Key concepts in medical sociology: um livro para estar sempre à mão. Cien Saude Colet, 13(Suppl. 2):2311:2312

Em 2008 foi publicada nesta revista a resenha da primeira edição do livro Key concepts in medical sociology11 Barros NF. Key concepts in medical sociology: um livro para estar sempre à mão. Cien Saude Colet; 13(Suppl. 2):2311:2312., que foi revisado e atualizado em 2022, como parte da coleção “SAGE Key Concepts series”. Os livros dessa série nunca foram traduzidos para o português e certamente seriam importantes contribuições para a sociologia da saúde brasileira, pois exploram temas relevantes da área. A terceira edição do Key concepts in medical sociology e a série “SAGE Key Concepts” foram criados para fornecer conhecimento acessível, com textos escritos por acadêmicos experientes, reconhecidos e identificados pelos organizadores do livro a partir de suas longas experiências no ensino e na pesquisa no campo da sociologia da saúde.

A manutenção do título “sociologia médica” é anacrônica ou, talvez, a expressão de certo conservadorismo britânico, expresso também na seleção dos autores e das autoras que compuseram o livro, quase todos do Reino Unido. Destaca-se que no IV Congresso Mundial de Sociologia, em 1959, em Milão, organizado pela International Sociological Association (ISA), criada aos auspícios da UNESCO em 1949, foi realizada uma sessão sobre “Aplicação do Conhecimento Sociológico à Medicina”. Desde então, houve discussões dessa temática em todos os congressos mundiais de sociologia, e em 1963 foi criado o Comitê de Pesquisa de Sociologia Médica na ISA, o qual foi renomeado em 1986 como “Comitê de Pesquisa em Sociologia da Saúde” (Research Committee 15 - Sociology of Health)33 Strauss R. The nature and status of medical sociology. Am Sociol Rev 1957; 22(2):200-204.. Todavia, em sua defesa os autores se apoiam na clássica discussão sobre “The nature and status of medical sociology”, publicada por Robert Strauss em 195744 Barros NF. Existir e não pertencer: notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Campinas/Porto Alegre: Pontes Editores/Editora Rede Unida; 1957., que distingue a sociologia na medicina e a sociologia da medicina.

Nesta terceira edição, foi mantida a estrutura original do livro, buscando atualizações, excluindo alguns verbetes e introduzindo novos temas, como: interseccionalidade, sexualidade, meio ambiente, neoliberalismo, turismo médico, saúde digital, profissões aliadas à medicina, bioética, além de temas de particular importância para a pandemia de COVID-19, como pandemias e epidemias e farmaceuticalização. Os trabalhos para a presente edição foram iniciados antes da pandemia e marcados por ela. Os autores relatam que atrasaram a submissão do texto final por ter que acomodar alterações no trabalho e na vida dos colaboradores. Ainda de acordo com os organizadores, “permitir aos autores e a nós mesmos respirar, espaço para ‘processar a pandemia’, torna este volume uma leitura crucial não apenas na época da COVID-19, mas também em relação à forma como podemos imaginar e pesquisar medicina, saúde e sociedade no futuro”22 International Sociological Association (ISA). RC15 Sociology of Health [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
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(p. XIII).

A inserção de novos temas procurou captar a complexidade emergente e as diferentes perspectivas nos debates sociológicos e políticos do campo da saúde. Advertem os autores, no entanto, que “Em linha com o nosso compromisso de oferecer aos leitores uma noção de como a sociologia médica se desenvolveu, incluímos principalmente conceitos clássicos, em vez de optarmos apenas por aqueles de óbvio interesse atual (e possivelmente efêmero)”22 International Sociological Association (ISA). RC15 Sociology of Health [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
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(p. XVIII). Assim, são detalhadas informações de 57 diferentes conceitos seminais da sociologia da saúde, divididos em cinco temáticas pré-definidas, que compõem as cinco partes do livro.

A primeira parte é chamada “Padrão social de saúde” e apresenta os seguintes verbetes: pandemias e epidemias, classe social, gênero, etnia, sexualidade, interseccionalidade, espaço, meio ambiente, fatores materiais e culturais, fatores psicossociais, eventos de vida, envelhecimento e o curso da vida, neoliberalismo e capital social. Esse conjunto de conceitos compõe os marcadores sociais das diferenças que situam as desigualdades sociais e suas condicionalidades para saúde e doença. Trata-se de elementos da estrutura social que exigem compreensão sociológica e requisitam ir além das correlações estatísticas para compreender os modos como ideias, valores, mudanças sociais, ações dos indivíduos, integração social e outros aspectos importam para a saúde e a doença.

Na segunda parte, denominada “Experiência de saúde e doença” são apresentados os verbetes de medicalização, farmaceuticalização, comportamentos de doença e saúde, estigma, corporeidade, emoções, doença crônica, deficiência, narrativas de doenças, risco, papel do doente, relacionamento profissional-cliente, qualidade de vida, sono e morte e morrer. Advertem os autores que esses temas forjados nas matrizes sociológicas do funcionalismo e do interacionismo simbólico não se limitam a elas e geram estudos sobre medicalização, estigma, doença crônica, papel do doente, qualidade de vida e, mais recentemente, farmaceuticalização (“processo sociotécnico complexo e dinâmico que envolve a descoberta, o desenvolvimento, a comercialização, a utilização e a governança de produtos farmacêuticos centrados em tecnologias baseadas na química”22 International Sociological Association (ISA). RC15 Sociology of Health [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
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), que têm impacto profundo tanto na sociologia como disciplina como na prestação de cuidados em saúde.

A parte três, “Conhecimento e prática”, traz os seguintes conceitos: modelo biomédico, construcionismo social, conhecimento leigo, turismo médico, reprodução, tecnologias médicas, saúde digital, genetização, bioética, vigilância e promoção da saúde. Essa parte é iniciada com os alcances e limites do modelo biomédico, que embasa as preocupações recorrentes da formação social do conhecimento científico, e sua relação de controle e regime de verdade sobre saúde, doença e cuidado na contemporaneidade. Um dos conceitos apresentados é o de “conhecimento leigo”, que, no meu ponto de vista, deve ser evitado, pois classificar como leigo ou não-médico é o exercício de reproduzir a ordem hierárquica e, muitas vezes, autoritária, estabelecida na estrutura e na cultura das fronteiras do campo da saúde44 Barros NF. Existir e não pertencer: notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Campinas/Porto Alegre: Pontes Editores/Editora Rede Unida; 1957..

A quarta parte, denominada “Trabalho em saúde e divisão do trabalho”, é composta pelos verbetes de autonomia médica - domínio e declínio, confiança na medicina, profissões aliadas à medicina, enfermagem e obstetrícia como ocupações, divisões sociais na saúde formal, migração e integração de profissionais de saúde, ​​medicina complementar e alternativa, trabalho emocional e cuidado informal. Essa parte expõe eventos que forçaram a mudança do nome de “sociologia médica” para “sociologia da saúde”, na medida em que a primeira se preocupava principalmente com a profissão médica, como forma profissional específica, arquetípica, autônoma e dominante na prestação de cuidados de saúde, e a segunda ampliou a investigação sociológica sobre outras profissões de saúde e trouxe, entre outros temas, a discussão do declínio do poder e da autoridade médica, inclusive com o crescimento da “medicina complementar e alternativa”, o “trabalho emocional”, como atividade corporificada e relacional do campo da saúde, os “cuidados informais”, invisíveis, não remunerados e com forte associação com o gênero feminino, assim como a “migração e integração de profissionais de saúde”, que problematizam as relações entre o Norte Global e o Sul Global, com os cuidados prestados no primeiro deixando frequentemente déficits no segundo.

Na quinta e última parte, “Organização e política de saúde”, são apresentados os verbetes relativos a hospitais e organizações de saúde, privatização, gerencialismo, consumismo, cidadania e saúde, movimentos sociais e saúde, regulamentação de medicamentos, avaliação e imperícia. Embora sejam conceitos amplos, exploram os níveis macrosocial, para analisar as principais mudanças relativas à privatização, gerencialismo e consumismo; mesosocial, para analisar como os movimentos sociais criam demandas para a criação de políticas públicas de saúde; e microinteracional, nas discussões da relação entre os direitos dos usuários dos serviços de saúde e a regulação de medicamentos e da má prática profissional.

Esse conjunto de ensaios curtos e altamente focados em tópicos específicos da sociologia da saúde mostra uma área de estudo viva, próspera e, por vezes, controversa. Os verbetes do livro são relevantes para profissionais que realizam formação pós-graduada em disciplinas relacionadas à saúde, bem como para estudantes de graduação das profissões do campo da saúde e do campo das humanidades. Monaghan e Gabe22 International Sociological Association (ISA). RC15 Sociology of Health [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
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afirmam que, em suas experiências de ensino de graduação e pós-graduação em ciências sociais e futuros clínicos, incluem estes textos como referências-chave nas listas de leitura das aulas. Afirmam, ainda, que alunos de medicina e enfermagem do Reino Unido são frequentemente apresentados, por meio desse livro, a conhecimentos sociológicos sobre relações entre estruturas sociais e desigualdades na saúde, estigma, aspectos sociais dos corpos ou da corporeidade, morte, doenças crónicas e outros temas. Certamente, a estratégia de introduzir temas da sociologia da saúde com verbetes organizados com uma breve definição, controvérsias e variações no seu uso, bem como sugestão de leituras adicionais, faz com que essa terceira edição do Key concepts in medical sociology seja “um livro para continuar sempre à mão”.

Referências

  • 1
    Barros NF. Key concepts in medical sociology: um livro para estar sempre à mão. Cien Saude Colet; 13(Suppl. 2):2311:2312.
  • 2
    International Sociological Association (ISA). RC15 Sociology of Health [Internet]. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
    » https://www.isa-sociology.org/en/research-networks/research-committees/rc15-sociology-of-health
  • 3
    Strauss R. The nature and status of medical sociology. Am Sociol Rev 1957; 22(2):200-204.
  • 4
    Barros NF. Existir e não pertencer: notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Campinas/Porto Alegre: Pontes Editores/Editora Rede Unida; 1957.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024
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