Doutores da ditadura: médicos e violação de direitos humanos no Brasil (1964-1985)

Doctors of the dictatorship: physicians and human rights violations in Brazil (1964-1985)

César Guerra Chevrand Gilberto Hochman Sobre os autores

Resumo

O artigo aborda a participação de médicos na ditadura civil militar brasileira (1964-1985) e identifica as principais formas pelas quais esses médicos contribuíram com seus conhecimentos técnicos e científicos e suas posições institucionais para a repressão aos opositores do regime. Os autores argumentam que essa colaboração não foi eventual, mas estratégica, organizada e sistemática na assessoria a interrogatórios e práticas de tortura física e psicológicas, assim como no encobrimento de violações de direitos humanos. O artigo chama a atenção para que essa colaboração de médicos com o regime autoritário transgrediu códigos de ética profissionais e as convenções internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos, assim como o Juramento de Hipócrates. As principais fontes históricas que embasam o artigo são os documentos do Projeto Brasil Nunca Mais e do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), assim como relatórios de comissões estaduais da verdade. Conclui que a exígua punição civil, criminal e profissional aos médicos envolvidos com a violência do regime, protegidos pela Lei da Anistia de 1979 e outras provisões legais, caracteriza o rompimento incompleto com os legados autoritários do passado, com consequências para o presente e o futuro da democracia brasileira.

Key words:
Medicine; Military; Torture; Authoritarianism; Ethics

Abstract

The article discusses the participation of doctors in the Brazilian military dictatorship (1964-1985). It identifies the main ways in which these doctors contributed with their technical and scientific knowledge and their institutional positions to the repression of the regime’s opponents. The authors argue that this collaboration was not casual but strategic, organized, and systematic in assisting interrogations and practices of physical and psychological torture, as well as in covering up human rights violations. The article points out that this collaboration between doctors and the authoritarian regime violated all professional codes of ethics and international conventions for the protection and promotion of human rights, as well as the Hippocratic Oath. The primary historical sources on which the article is based are documents from the Brasil Nunca Mais Project, the final report of the National Truth Commission (CNV), and reports from states truth commissions. It concludes that the scant civil, criminal, and professional punishment of doctors involved in the regime’s violence, protected by the 1979 Amnesty Law and other legal provisions, characterizes an incomplete rupture with the authoritarian legacies of the past, with consequences for the present and future of Brazilian democracy.

Key words:
Medicine; Military; Torture; Authoritarianism; Ethics

Introdução

Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.

(Juramento de Hipócrates)

São deveres fundamentais do médico: a) guardar absoluto respeito pela vida humana, jamais usando seus conhecimentos técnicos ou científicos para o sofrimento ou extermínio do homem.

(Código de Ética Médica, Conselho Federal de Medicina, 1965)

Eles tinham um médico que eu não sei quem é, esse médico, de tempo em tempo, avaliava se eu podia continuar sendo torturado ou não, me dava uma injeção de algum complexo para aguentar a tortura.

(Depoimento do jornalista Ottoni Guimarães Fernandes Júnior à Comissão Nacional da Verdade, 2014)

Na repressão aos opositores do regime militar, médicos brasileiros cumpriram papel estratégico. Ofereceram e utilizaram, por coerção ou voluntariamente, seus conhecimentos médicos na violação de direitos humanos e no encobrimento de crimes de tortura, desaparecimento e assassinato. A participação desses médicos foi variada: assistência às sessões de interrogatórios e tortura de presos políticos em dependências policiais, militares e clandestinas, omissão de socorro, cuidado negligente às vítimas da repressão e emissão de laudos médicos, necroscópicos e atestados de óbito fraudulentos. Mais do que colaboração, essas práticas revelam a profunda inserção de médicos nas engrenagens do sistema de violência do Estado autoritário.

A medicina tem uma longeva relação com os aparatos de poder, e são deles constituintes11 Foucault M. Microfísica do Poder. 3ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1982.. Os sistemas penais e carcerários modernos, com suas estruturas de vigilância, controle e punição, tiveram em suas bases o conhecimento médico, em particular a medicina legal e a psiquiatria. Do mesmo modo, a participação de médicos como agentes da violência estatal não foi inaugurada com o golpe de 1964. Ela faz parte da história do Brasil desde o século XIX e do cotidiano das relações do judiciário, serviços de identificação e polícia com as classes populares22 Ferla L. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (1920-1945). São Paulo: Alameda; 2009.

3 Carrara S. Crime e Loucura: O Aparecimento do Manicômio Judiciário na Passagem do Século. Rio de Janeiro, São Paulo: EDUERJ/EDUSP; 1998.
-44 Cunha OMG. Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da(in)diferença no Rio de Janeiro 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; 2002.. Os departamentos estaduais de ordem política e social (Deops) foram criados ainda na década de 1920 como polícia política e a tortura e a violação de direitos sempre fizeram parte do cotidiano de grande parte da população. Todavia, essas práticas alcançaram novos setores da sociedade brasileira, como os trabalhadores organizados e as classes médias urbanas, a partir de 1964. Os novos aparatos repressivos, mais organizados, centralizados e vinculados diretamente às Forças Armadas (os Destacamentos de Operações de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna, os Centros de Informações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica), surgem com o crescimento da oposição, inclusive armada, ao regime e na esteira da suspensão de direitos e garantias individuais pelo Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. A partir desse momento, o envolvimento de profissionais de saúde com a repressão mudou de patamar. Esse novo estágio do envolvimento do conhecimento científico na tortura é parte de um processo de “modernização da repressão”, que contava desde os anos de 1960 com a assessoria de agências do governo dos Estados Unidos a polícias estaduais e militares brasileiras, apoio que foi aprofundado depois do golpe de 196455 Motta RPS. Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira. Rev Bras Hist 2010; 30(59):237-266..

Em contraste com os doutores da repressão, muitos médicos e estudantes de medicina participaram da luta política e armada contra a ditadura, foram vítimas da violência do Estado e deram assistência a presos políticos em prisões, consultórios privados e hospitais66 Sophia DC. Saúde e utopia: O Cebes e a reforma sanitária brasileira (1976-1986). São Paulo: Huictec Editora; 2015.,7. Essa participação dos médicos é uma questão sensível também nos países da América do Sul que vivenciaram ditaduras militares nas décadas de 1970 e 1980, como Argentina, Chile e Uruguai, ainda que alguns tenham estabelecido políticas mais efetivas de memória, verdade e justiça88 Gallo CA. A justiça das transições: uma proposta de análise para Portugal, Espanha, Argentina e Brasil. Rev Bras Cien Polit 2022; 38:e253850.. Para Riquelme99 Riquelme H. Ética profesional en tiempos de crisis. Médicos y psicólogos en las dictaduras de América del Sur. Polis 2004; 8:1-23., “a participação direta de médicos e psicólogos, tanto nas atividades repressivas do terrorismo de Estado quanto nas formas de oposição, levou a um quadro sem precedentes na região” (p.2).

O objetivo desse artigo é analisar a atuação dos “doutores da ditadura”, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira sobre o período, em poucos momentos escrutinada pelas associações médicas e profissionais, conselhos de ética e ainda pouco presente no debate sobre justiça de transição no Brasil66 Sophia DC. Saúde e utopia: O Cebes e a reforma sanitária brasileira (1976-1986). São Paulo: Huictec Editora; 2015.. Essas ausências surpreendem quando inúmeras comissões da verdade também registraram essa atuação. As conexões, mais diretas e longevas entre “a farda e o jaleco”, existiram e têm sido discutidas mais recentemente por historiadores, como, por exemplo, o caso do médico psiquiatra e militar Antonio Carlos Pacheco e Silva e a presença e difusão de ideias médicas e eugênicas nos cursos da Escola Superior de Guerra1010 Tarelow GQ. Psiquiatria e Política: o jaleco, a farda e o paletó de Antonio Carlos Pacheco e Silva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2020.,1111 Cowan BA. Sex and the Security State: Gender, Sexuality, and "Subversion" at Brazil's Escola Superior de Guerra, 1964-1985. J Hist Sexuality 2007; 16(3):459-481.. As iniciativas para abertura de processos éticos contra médicos acusados de violação de direitos humanos não vieram, em sua maioria, das sociedades profissionais e conselhos de medicina, mas de organizações tais como a Anistia Internacional, o Grupo Tortura Nunca Mais, o Projeto Brasil Nunca Mais e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ou por denúncias individuais de vítimas e de seus familiares. Para muitos analistas, mesmo depois da redemocratização, o rompimento com o legado autoritário foi incompleto e, consequentemente, a responsabilização dos agentes públicos, entre eles os médicos, limitado1212 Pedretti L. A transição inacabada: violência de Estado e direitos humanos na redemocratização. São Paulo: Companhia das Letras; 2024..

O argumento desenvolvido é que a relação entre médicos e repressão não foi eventual nem circunscrita a nomes que chegaram ao conhecimento público ainda durante a ditadura. Instituições médicas, erigidas para cuidar e curar, também foram espaços de violação de direitos, tais como o Hospital Central do Exército na cidade do Rio de Janeiro. Poucos médicos envolvidos responderam a processos éticos e, menos ainda, foram os punidos com a cassação de seus registros profissionais. Esses foram exceções, pois há registros de dezenas de médicos, civis e militares que violaram sistematicamente juramentos e códigos de ética profissional. Inclusive aqueles inspirados no Código de Nuremberg sobre ética e experimentação em humanos que resultou do julgamento de 23 médicos nazistas entre 1946 e 1947, assim como as “Declarações de Genebra” da Associação Médica Mundial1313 World Medical Association (WMA). Declaration of Geneva [Internet]. [cited 2024 maio 30]. Available from: https://www.wma.net/policies-post/wma-declaration-of-geneva/.
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,1414 Weindling P. From the Nuremberg "Doctors' Trial" to the "Nuremberg Code". In: Gallin S, Bedzow I, editors. Bioethics and the Holocaust. The International Library of Bioethics. Vol. 96. Cham: Springer; 2022. p. 219-228.. Um dos casos mais conhecidos é o do legista Harry Shibata, que emitiu os laudos relativos aos assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho nas dependências do DOI-Codi em São Paulo, em 1975 e 1976. Shibata teve seu registro médico cassado em 1980, mas o recuperou por via judicial. Outro exemplo de grande repercussão pública foi o caso do médico e psicanalista Amílcar Lobo, que atuou no centro de tortura clandestino conhecido como a “Casa da Morte”, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Foi expulso da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e teve seu registro médico cassado. Apesar de sua repercussão na imprensa, essa foi uma exceção à regra da impunidade.

O artigo ressalta, desse modo, que a participação de médicos foi ampla, sistemática e estratégica para o regime e ocorreu em parte considerável dos 21 anos de autoritarismo inaugurados com o golpe civil-militar de 1964. As fontes consultadas foram documentos que registraram as vozes e os relatos das vítimas dos cárceres do regime militar, das famílias dos mortos e desaparecidos e dos perpetradores da violência estatal que foram registradas por inúmeras iniciativas públicas e da sociedade civil. O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, será apresentada a extensão da participação dos médicos na violação de direitos humanos, dimensionada com base nos levantamentos numéricos de documentos e relatórios do projeto Brasil Nunca Mais, cujo livro síntese foi publicado em 1985, e no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em dezembro de 2014, e de outras comissões da verdade. Na sequência, o artigo propõe uma tipologia dessa participação a partir de casos relatados nesses documentos, indicando a variedade dessa presença dos médicos nos aparatos repressivos. Nas considerações finais, discorremos sobre os impactos duradouros que a falta de responsabilização dos que violaram a ética profissional e os direitos humanos durante a ditadura militar teve tanto para a profissão médica no país quanto para a democracia brasileira.

Números e registros: os médicos e as vítimas

A Comissão Nacional da Verdade (CNV), em seu relatório final divulgado em dezembro de 2014, identificou 377 nomes de civis e militares que, comprovadamente por testemunhos, documentos e investigações, foram considerados autores de graves violações de direitos humanos, como mandantes e/ou perpetradores. Nessa listagem, percebe-se o expressivo número de 51 médicos1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.846-931), ou seja, 15% do total, quantitativo que, certamente, pode ser acrescido de outros nomes identificados pelas inúmeras comissões da verdade que ocorreram ao nível subnacional e nas universidades públicas1616 Hollanda CB, Israel VP. Panorama das Comissões da Verdade no Brasil: uma reflexão sobre novos sentidos de legitimidade e representação democrática. Rev Sociol Polit 2019; 27(70):e006.,1717 Homma LHG, Marinho MGSMCM. Memória e reparação no Ensino Superior: uma análise das Comissões da Verdade Universitárias em São Paulo. Tempo Argumento 2021; 13(32):e0202.. Essas comissões também listaram profissionais de saúde como enfermeiros, auxiliares de enfermagem e psicólogos. A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, por exemplo, identificou 12 médicos, alguns também mencionados pela CNV1818 Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio). Relatório/Comissão da Verdade do Rio, 2015 [Internet]. [acessado 2024 abr 19]. Disponível em https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/CEVRioRelatorioFinal.pdf.
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Os 51 médicos identificados, que incluem legistas, civis e militares, foram denunciados por “responsabilidade pela autoria direta de condutas que ocasionaram graves violações de direitos humanos”1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.873). Dois dos médicos legistas também foram acusados de “responsabilidade pela gestão de estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos”1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.855). Além de serem implicados individualmente pela falsificação de laudos necroscópicos, os médicos Arnaldo Siqueira e Harry Shibata dirigiram o Instituto Médico-Legal de São Paulo, respectivamente entre 1956 e 1976 e entre 1976 e 1983, ambos atuando em períodos dos mais repressivos do regime militar.

Desse universo de 51 médicos, quatro eram militares: Amílcar Lobo Moreira da Silva, já mencionado, tenente médico do Exército, que atuou no DOI-Codi do Rio de Janeiro e na Casa da Morte, em Petrópolis; José Lino Coutinho da França Netto, tenente médico do Exército, acusado de participar de sessões de interrogatório e tortura na Ilha das Flores (Rio de Janeiro); Ricardo Agnese Fayad, oficial médico, general de Brigada, também lotado então no DOI-Codi (RJ); e Ruben do Nascimento Paiva, general de Exército, diretor do Hospital Central do Exército (HCE)1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.841). Esses dois últimos oficiais médicos foram os únicos dos identificados que chegaram à patente de general. O ex-diretor do HCE foi listado por cumplicidade na tortura e na morte, nas dependências do hospital, do militante Raul Amaro Nin Ferreira, em 19711515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.925). Ricardo Fayad trabalhou com Amílcar Lobo no DOI-Codi do Rio de Janeiro1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.923).

Foram igualmente identificados médicos que não eram servidores públicos, mas participaram de algum modo da repressão. O médico pediatra João Henrique Ferreira de Carvalho, por exemplo, teria trabalhado como agente infiltrado na Ação Libertadora Nacional (ALN), mas não há registro de sua participação como médico em sessões de interrogatório e tortura. Segundo a CNV, Carvalho teria contribuído para a prisão e morte de companheiros de organização1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.900).

Os médicos Amílcar Lobo e José Lino Coutinho da França Netto estiveram presentes, na condição de tenentes médicos, em importantes centros de tortura no Rio de Janeiro. Diferentemente de Ricardo Agnese Fayad, que seguiu a carreira de oficial médico, com cursos na Escola de Saúde do Exército (EsSEx) e na Escola Superior de Guerra (ESG), Lobo prestou serviço militar obrigatório por quatro anos após formado, como tenente médico. Beneficiou-se do fato de que aos estudantes de medicina era então facultada a opção de serviço militar após a formatura na condição de oficial médico1919 Lobo A. A hora do lobo, a hora do carneiro. Petrópolis: Editora Vozes; 1989.. Acusado por Cecília Coimbra e Inês Etienne Romeu, Amílcar Lobo reconheceu, em depoimento ao Conselho de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), “ter tido como função prestar assistência médica aos presos que eram torturados”1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.354). As denúncias levaram o Cremerj a cassar seu registro profissional, em 1988, uma decisão ratificada pelo Conselho Federal de Medicina em 19891919 Lobo A. A hora do lobo, a hora do carneiro. Petrópolis: Editora Vozes; 1989.. Em seu relatório final, a CNV indica vítimas relacionadas ao “Dr. Carneiro”, codinome adotado pelo médico para não ser identificado: Maria do Carmo Menezes, Rubens Beyrodt Paiva, Paulo de Tarso Celestino da Silva, Ísis Dias de Oliveira, Cecília Maria Bouças Coimbra, José Roman, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, Luís Ignácio Maranhão Filho, Wilson Silva e David Capistrano da Costa1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.877).

Os médicos nomeados estariam envolvidos, de algum modo, na morte e no desaparecimento de 117 do total de 434 pessoas listadas no relatório, ou seja, em cerca de ¼ das vítimas reconhecidas pela CNV2020 Chevrand CG. Doutores da Ditadura: Médicos, Repressão Política e Violações de Direitos Humanos no Brasil (1964-1985) [dissertação]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz; 2021.. Esse número é um indicador de que saberes e práticas médicas foram relevantes no circuito repressivo da ditadura, especialmente durante a presidência do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e em grande parte do mandato do general Ernesto Geisel (1974-1978). A relação direta entre o recrudescimento do regime e o aumento dos crimes em que médicos estiveram implicados sugere que estes profissionais foram mais requisitados e essenciais à medida que a prática da tortura e o assassinato de opositores do regime, armados ou não, se tornavam política de Estado.

Realizado de modo clandestino entre 1979 e 1985, o projeto Brasil Nunca Mais (BNM) também apresentou números indicativos da ativa participação de médicos em crimes da ditadura. Em levantamento que consta das 6.891 páginas do que ficou conhecido como “Projeto A” ou “documento-mãe”, tornado público em 1985, foram identificados 159 “elementos que atuaram como médicos legistas e declarantes de óbitos”2121 Brasil Nunca Mais. Projeto Brasil Nunca Mais, 1985, tomo III, vol.2: quadro 106:121-128 [Internet]. [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://bnmdigital.mpf.mp.br/docreader/DocReader.aspx?bib=REL_BRASIL&PagFis=1091.
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(tomo III, vol.2: quadro 106:121-128). No livro derivado do projeto original, os médicos da ditadura mereceram um capítulo à parte na seção denominada “Regime marcado por marcas de tortura”2222 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes; 1985. e sugeria que a participação de profissionais de saúde havia sido estratégica e sistemática. Foram citados depoimentos de presos políticos torturados em diferentes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Recife e Juiz de Fora, com a presença constante de médicos em sessões de interrogatório e violência2222 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes; 1985..

Na seção sobre médicos legistas, o levantamento também indicava a cumplicidade dos médicos geralmente vinculados aos Institutos Médico Legal estaduais, responsáveis por conferir aparência de legalidade aos crimes cometidos por agentes públicos a serviço da ditadura. Além de citar casos de laudos falsos nas mortes de militantes políticos como Alexandre Vannuchi Leme e Carlos Nicolau Danielli, o trabalho também citou nominalmente os legistas suspeitos de cumplicidade com os órgãos de segurança2222 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes; 1985. (p.230). Entre os 47 médicos legistas arrolados pela CNV, foram identificados 35 nomes que pertenciam ao Instituto Médico Legal de São Paulo (IML-SP), 11 ao IML do Rio de Janeiro e um ao IML de Goiás. Embora esses números comprometam especialmente os legistas dos estados onde a repressão torturou e assassinou mais adversários políticos, a abrangência da listagem original do Brasil Nunca Mais também aponta legistas de outros estados brasileiros, como Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, sugerindo um padrão nacional de atuação e comprometimento2121 Brasil Nunca Mais. Projeto Brasil Nunca Mais, 1985, tomo III, vol.2: quadro 106:121-128 [Internet]. [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://bnmdigital.mpf.mp.br/docreader/DocReader.aspx?bib=REL_BRASIL&PagFis=1091.
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Há 31 nomes listados pelo BNM, que teve foco nos médicos legistas e declarantes de óbitos, que estão no relatório da CNV. Dos 51 nomes constantes neste relatório, 23 não foram identificados na lista original de 19851515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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,2020 Chevrand CG. Doutores da Ditadura: Médicos, Repressão Política e Violações de Direitos Humanos no Brasil (1964-1985) [dissertação]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz; 2021.,2121 Brasil Nunca Mais. Projeto Brasil Nunca Mais, 1985, tomo III, vol.2: quadro 106:121-128 [Internet]. [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://bnmdigital.mpf.mp.br/docreader/DocReader.aspx?bib=REL_BRASIL&PagFis=1091.
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. As diferenças entre as listas de médicos da ditadura podem ser atribuídas a diferenças nas metodologias utilizadas e nas circunstâncias - possibilidades, precauções e obstáculos, dos distintos contextos históricos em que foram produzidas: a primeira delas ainda na ditadura e a segunda já na democracia, como iniciativa do governo da Presidente Dilma Rousseff em 2011.

Ainda que rumores sobre a atuação de médicos no aparelho policial-militar da ditadura circulassem na imprensa e nos meios médicos desde o início dos anos de 1970, a denúncia dos “doutores da ditadura” só se tornou uma pauta de organizações da profissão médica no final dessa década. Os prenúncios de uma “distensão política”, e o declínio da legitimidade do regime com o fim do “milagre econômico brasileiro”, geraram as condições políticas para que essas acusações começassem a ser vocalizadas e para o surgimento de organizações pela anistia e de defesa dos direitos humanos. Setores da corporação médica, que começavam a criticar os efeitos negativos das transformações no processo de trabalho, do assalariamento maciço e da proletarização da categoria, se somaram a esse processo. A retomada da luta sindical e as críticas à conivência do establishment médico com a ditadura, à expansão do setor privado na medicina e às condições de saúde da população brasileira inseriram o chamado “Movimento Médico” na luta pela democracia77 Weinberg E. White Coats with Blue Collars: Doctors' Labor Protests and the Struggle for Democracy in Brazil, 1978-1982. Int Labor Working Class Hist 2024; 105:249-268.,2323 Escorel S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999.,2424 Gerschman S. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004.. Articulados a familiares de presos políticos e desaparecidos, jornalistas, advogados, líderes religiosos, organizações e associações profissionais e de trabalhadores que lutavam por uma “Anistia ampla, geral e irrestrita” e pelo fim da tortura no Brasil, os militantes do “Movimento Médico” integraram formalmente o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), criado em 1978, com núcleos organizados por estado. O Núcleo de Profissionais de Saúde do CBA de São Paulo promoveu iniciativas importantes neste período, como um questionário sobre a tortura e a publicação dos seus resultados no final de 19782525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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Essa publicação foi um dos primeiros registros documentais, por iniciativa de profissionais de saúde, sobre o envolvimento de colegas com os aparatos repressivos, antecipando, assim, em alguns anos, a abertura de processos disciplinares que ocorreriam nos conselhos de medicina66 Sophia DC. Saúde e utopia: O Cebes e a reforma sanitária brasileira (1976-1986). São Paulo: Huictec Editora; 2015.. Ela resultou da distribuição de cerca de 200 questionários a ex-presos políticos que teriam sofrido algum tipo de tortura ou violência. De acordo com os resultados, 41 questionários foram respondidos, a maior parte por residentes em São Paulo2525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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. Mesmo considerando pequeno o número de respondentes em relação ao total de questionários distribuídos, compreensível pelo temor de represálias, a pesquisa forneceu informações importantes sobre a tortura no Brasil, ainda inéditas naquele momento. Do universo de respondentes, 35 indicaram que sofreram torturas entre 1970 e 1973, a maioria no ano de 1972. Entre os principais locais da tortura indicados, destacavam-se o DOI-Codi/SP, a Operação Bandeirantes e o DEOPS. Os que declararam ter sido torturados tinham idade entre 21 e 30 anos, 21 eram estudantes, oito eram professores, dez declararam outras ocupações e quatro não responderam a esse item2525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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Nas perguntas sobre métodos de tortura utilizados, foram citadas 12 modalidades de suplício. Trinta e cinco das vítimas teriam sofrido espancamento sem instrumentos, nove com instrumentos e todos informaram que passaram por choques elétricos. Dezenove foram ao pau-de-arara, 18 sofreram na “cadeira do dragão” e 13 foram castigados com palmatória. Nove declararam ameaças à própria vida, de companheiros e familiares. Cerca de nove responderam que levaram o “golpe do telefone”, com tapas forte e simultâneos nos ouvidos. Sete passaram por fuzilamento simulado, seis tiveram de assistir à tortura de companheiros ou familiares e seis sofreram sessões de afogamento. Ainda segundo os questionários, as partes mais atingidas no corpo eram mãos, órgãos genitais e ouvidos2525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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A maioria das vítimas sofreu com sessões de tortura que duraram aproximadamente entre três e quatro horas. Seis vítimas enfrentaram sessões de 30 a 60 minutos e seis de duas a três horas. Outras seis pessoas passaram por torturas que duraram dez horas. Uma vítima declarou ter sofrido violências por 22 horas. Quatro não responderam ao item e quatro não souberam avaliar a duração das sessões. Sobre o número de sessões a que foram submetidos, nove vítimas passaram por dez ou mais períodos de tortura. Uma vítima declarou ter sobrevivido a 32 sessões de tortura. Sobre os objetivos da tortura, muitos dos quais eram interconectados, 25 vítimas declararam a busca por informação sobre sua atuação política. Vinte e dois declararam que os agentes esperavam obter informação sobre localização de companheiros ou de sua identificação. Onze foram vítimas de tortura que visava à informação sobre organizações clandestinas. Cinco citaram a desestruturação psicológica. Três, a obtenção de informações em geral. Por fim, dois apontaram que o objetivo seria abalar “o seu moral”2525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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O questionário elaborado pelos profissionais de saúde do CBA também tinha o objetivo de mapear a presença de médicos, enfermeiros e outros nas ações de violações de direitos humanos. Das 41 vítimas de tortura, 28 registraram a presença de profissionais de saúde durante as torturas, cinco não souberam informar e uma não respondeu. Apenas sete negaram a presença destes profissionais durante as sessões de tortura. Vinte e dois denunciaram enfermeiros, 16 citaram médicos, dois reconheceram a participação de psicólogos. A presença de um dentista também foi apontada por uma vítima. Após a prisão e as torturas, 24 vítimas procuraram e receberam atendimento médico, tendo a maioria procurado por atendimento psicológico e psiquiátrico, neurológico e odontológico. A maioria afirmou não portar no corpo marcas da tortura. Das 16 que relataram marcas, oito tinham marcas visíveis de cicatrizes, três informaram diminuição auditiva, 28 relataram alterações na capacidade física temporária ou permanentemente, como alterações no sono, fadiga e alterações da memória. Sobre mudanças no funcionamento psicossocial das vítimas, 20 pessoas declararam alteração na sensibilidade, como reações emocionais intensificadas frente a estímulos auditivos ou visuais. Quatorze vítimas afirmaram ter a sensação de estarem constantemente sendo ameaçadas. Vinte e cinco vítimas assumiram ter uma alteração na sociabilidade e 35 declararam retraimento ou irritação nas relações sociais. Doze também informaram alteração no comportamento sexual. Apesar de todas as violências, 35 das 41 vítimas que responderam ao questionário retomaram as atividades políticas, 11 delas imediatamente2525 Fundação Perseu Abramo. Estudo Sobre a Tortura no Brasil e Pesquisa sobre a tortura [Internet]. Circa; 1978 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/.
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De acordo com os resultados do inquérito do Núcleo de Profissionais de Saúde do CBA de São Paulo, portanto, 68% das pessoas, na amostra estudada, denunciaram a presença de profissionais de saúde diretamente envolvidos nas torturas. Na análise dos questionários, os profissionais de saúde ressaltaram dados preciosos sobre a tortura no Brasil, mesmo considerando o tamanho da amostra quase que restrita à cidade de São Paulo. Apesar de suas limitações, essa iniciativa dos profissionais de saúde formalizou um dos primeiros esforços, em plena ditadura, antes da Anistia, para investigar, quantificar e compreender os mecanismos da tortura, a experiência traumática de suas vítimas e a presença de médicos e outros profissionais de saúde nos cárceres policiais-militares.

Tipologias: os médicos legistas e os médicos na tortura

Na vigência da ditadura instaurada em 1964, médicos militares e civis contribuíram com seus conhecimentos profissionais em violações de direitos humanos. Sua participação foi estratégica, considerada indispensável ao funcionamento do regime, e sistemática, integrada à rotina de violência do Estado contra seus inimigos políticos e presente nos mais diferentes centros oficiais e clandestinos de tortura operados pelos órgãos de segurança em vários estados do país. Essas afirmações são sustentadas pelo testemunho de vítimas e familiares da violência estatal, pelos dossiês e documentos produzidos por iniciativas como o projeto Brasil Nunca Mais, pelas denúncias da própria classe médica e das apurações dos conselhos regionais de medicina e pelas investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), da Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) e da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV-SP), para citar algumas.

A leitura dessas fontes sugere a complexidade das relações destes profissionais de saúde com o Estado policial militar implantado pela ditadura desde o seu início. Ao longo do regime militar, médicos a serviço do Estado brasileiro, com e sem patente, estiveram envolvidos em casos emblemáticos de violações de direitos humanos, como no já citado assassinato do jornalista Vladimir Herzog1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.468), deixando suas digitais, assinaturas ou carimbos em denúncias de torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos cometidos por agentes públicos. Nas unidades policiais e militares de vários estados de diferentes regiões do país, que serviram de local para a prisão e a tortura de adversários do regime, supõe-se que os médicos lotados nessas guarnições foram, no mínimo, coniventes com o cotidiano de violência, atendendo a presos políticos feridos e muitas vezes ilegalmente detidos, concedendo laudos falsos e assessorando sessões de tortura2222 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes; 1985. (p.230). Nessas condições, voluntária ou involuntariamente, obedeceram às ordens da hierarquia militar, abandonando os preceitos de seu código de ética profissional ou mesmo do Juramento de Hipócrates.

Médicos também estiveram presentes nos órgãos criados pela própria ditadura para perseguir, prender e eliminar inimigos. A repressão dispôs de médicos, geralmente militares, que também atendiam presos políticos e acompanhavam as sessões de tortura. Isso ocorreu tanto no DOI-Codi do I Exército, que se integrava à estrutura de funcionamento do 1º Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, como no DOI-Codi do II Exército, que ocupou uma estrutura independente, no mesmo terreno de uma Delegacia de Polícia, em São Paulo. No Manual de Interrogatório do Centro de Informações do Exército (CIE) de 1971, um médico era previsto no escopo de profissionais da seção administrativa e sua atuação era requisitada como de praxe na recepção a novos presos1717 Homma LHG, Marinho MGSMCM. Memória e reparação no Ensino Superior: uma análise das Comissões da Verdade Universitárias em São Paulo. Tempo Argumento 2021; 13(32):e0202..

Enquanto principais centros de repressão, os DOI-Codi demandavam serviços de saúde prestados por médicos militares para atingir seus objetivos políticos e para ocultar ou “legalizar” violações de direitos humanos. Médicos militares e ou civis também se fizeram presentes em imóveis clandestinos que funcionavam como unidades informais e ilegais da polícia política da ditadura. Na chamada Casa da Morte, em Petrópolis, operado como centro clandestino de detenção, assassinato e desaparecimento de corpos por agentes do Centro de Informações do Exército (CIE), presos políticos testemunharam a presença de médicos auxiliando os agentes policiais2626 Comissão da Verdade de São Paulo (CEV-SP). Relatório e Depoimento de Inês Etienne Romeu ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil/RJ no dia 05/09/1979 [Internet]. 2015 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/tag/In%C3%AAs%20Etienne.
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. No centro clandestino que o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) mantinha no bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro, o jornalista Ottoni Guimarães Fernandes também relatou a ação de médicos no seu depoimento à CNV, mencionado na epígrafe desse artigo1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.805).

A violência da repressão alcançou espaços de cuidado e cura, como hospitais militares e da rede pública, que também receberam presos políticos, comprometendo, ativa ou passivamente, muitos profissionais de saúde com os crimes cometidos pelo Estado para o qual trabalhavam. Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da “Casa da Morte” e que identificou o “Dr. Carneiro” (Amílcar Lobo), também declarou ter sido atendida no Hospital Carlos Chagas, no Rio de Janeiro, depois de torturas2626 Comissão da Verdade de São Paulo (CEV-SP). Relatório e Depoimento de Inês Etienne Romeu ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil/RJ no dia 05/09/1979 [Internet]. 2015 [acessado 2024 fev 3]. Disponível em http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/tag/In%C3%AAs%20Etienne.
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. Em pelo menos um hospital militar houve denúncia de tortura e morte nas próprias dependências da unidade de saúde. Conforme revelou investigação da Comissão Nacional da Verdade, o preso político Raul Amaro Nin teria enfrentado violento interrogatório no Hospital Central do Exército (HCE), onde foi declarado morto em 12 de agosto de 1971. A CNV chegou a realizar diligência ao HCE em 2014, mas os prontuários médicos relativos ao período de 1969-1973 haviam sido removidos de seus arquivos1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.738-743).

Dentre os médicos que participaram de violações de direitos humanos, a parcela mais expressiva atuava nos Institutos Médico-Legais estaduais brasileiros, subordinados às Secretarias Estaduais de Segurança Pública controladas pelos militares durante toda a ditadura. Conferindo atestados de óbito e laudos falsos ou incompletos, estes médicos legistas eram médicos civis fundamentais no acobertamento dos crimes praticados pelos órgãos de repressão. Além da legitimação das versões da ditadura para assassinatos de presos sob a custódia do Estado, ou mesmo ilegalmente encarcerados, médicos legistas também estiveram envolvidos com o esquema de ocultação de corpos, como o que envolveu o despacho de mortos supostamente não-identificados para valas clandestinas, como a de Perus, no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. No cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, estariam enterrados pelo menos 14 militantes políticos1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.510). Outros cemitérios da cidade, como o de Santa Cruz, o São Francisco Xavier e o do Cacuia, na Ilha do Governador, também foram utilizados com o mesmo fim. No Recife, militantes foram enterrados clandestinamente nos cemitérios de Santo Amaro e da Várzea1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.511).

Os corpos de presos políticos que poderiam ser, em última instância, a única prova material de crimes, foram enterrados como indigentes com a participação de médicos legistas. Conforme revelou a Comissão Parlamentar de Inquérito Perus - Desaparecidos Políticos2727 Cardoso I, Bernardes L, organizadores. Vala clandestina de Perus: desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira. São Paulo: Instituto Macuco; 2012., aprovada na Assembleia Legislativa de São Paulo, em outubro de 1990, havia um método diferenciado para o envio de corpos de militantes à vala clandestina, de modo a impedir a sua localização. Nos arquivos do IML, os laudos dos “subversivos” eram identificados com a letra “T” de terrorista, em vermelho, para diferenciá-los dos demais1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.513).

Sem formação ou patente militar, dezenas de médicos legistas foram acusados de forjar atestados de óbito visando encobrir torturas e assassinatos cometidos nas dependências ou sob responsabilidade do Estado brasileiro. Diferentemente de seus colegas militares, porém, que utilizavam codinomes e muitas vezes permaneceram não-identificados nos testemunhos dos presos políticos, os legistas assinaram e carimbaram laudos necroscópicos que omitiram evidências de violências cometidas pelo aparato repressivo. A medicina legal sempre fez parte do sistema legal e repressivo do Estado brasileiro desde sua institucionalização como especialidade médica no final do século XIX2828 Corrêa M. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013.,2929 Costa IS. A Bahia já deu régua e compasso: medicina legal, raça e criminalidade na Bahia (1890-1940). Salvador: EDUFBA, 2023.. Se a cumplicidade e parceria entre médicos legistas e forças policiais eram pre-existentes, na ditadura civil-militar esta aliança se tornou parte fundamental da engrenagem repressiva do regime, orientada pelo anticomunismo e pela perseguição ao “inimigo interno”.

Da mesma forma que os médicos militares deviam obediência à hierarquia e aos valores propugnados pelas Forças Armadas, os médicos legistas atuavam enquanto funcionários públicos ligados às Secretarias de Segurança Pública, por sua vez subordinadas aos governadores. Em razão desses conflitos, a Comissão Nacional da Verdade recomendou a “desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis”1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.968-969). De acordo com o relatório da CNV, os centros de antropologia forense e perícia deveriam ser independentes da estrutura policial para garantir mais eficiência na produção de provas técnicas.

Por um lado, os médicos foram treinados e capacitados em suas escolas de medicina para atuar com seu conhecimento técnico-científico a favor da elucidação de crimes. Por outro, estavam pressionados a trabalhar para encobrir os crimes cometidos. Pelas mais diversas razões, que envolvem oportunidades, vantagens ou contingências profissionais, valores pessoais ou convicções ideológicas, dezenas de médicos legistas brasileiros transgrediram seu código de ética em favor da violência cometida por um regime autoritário contra seus adversários políticos. A operação para encobrir a causa real da morte de militantes envolvia, além dos agentes de segurança, vários setores do serviço público, com destaque aos da medicina legal. São conhecidos inúmeros laudos com dados inverídicos e contraditórios, nos quais os legistas atestavam causa mortis incompatível com as lesões no corpo das vítimas, verificadas por testemunhas ou registradas em fotografias feitas para esses mesmos laudos1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.443). Os supostos confrontos atestados em laudos necroscópicos legitimavam a repressão policial, que estaria diante de um inimigo perigoso. Atestavam a suposta competência dos órgãos de repressão no combate ao crime e a fragilidade dos grupos de oposição. Com sua autoridade e prestígio social, esses médicos sustentavam as versões da ditadura, das secretarias de segurança pública, que eram divulgadas pela imprensa que estava sob censura ou colaborava com o regime.

A denúncia de envolvimento de médicos legistas com as torturas durante a ditadura tem como caso emblemático a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975. Após se apresentar para depor no DOI-Codi de São Paulo, a fim de prestar esclarecimentos sobre a sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o então diretor de jornalismo da TV Cultura apareceu morto, aparentemente vítima de um suicídio. Para encobrir o seu assassinato sob tortura, os militares forjaram uma cena de enforcamento, ratificada pelo médico legista Harry Shibata e diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, que atestou ter sido suicídio a causa da morte do jornalista1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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,3030 Jordão FP. Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. 9ª ed. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog-Autêntica; 2021. (p.1794).

Em 22 de outubro de 1980, condenado pelo Cremesp, Harry Shibata foi o primeiro médico brasileiro a ter a licença para o exercício da profissão cassada por envolvimento com violações de direitos humanos. Mas os serviços prestados por Shibata e seus colegas de IML foram recompensados pelo governo militar com a promulgação da a Lei 6.838 (29/10/1980), que dispunha “sobre o prazo prescricional para a punibilidade de profissional liberal, por falta sujeita a processo disciplinar, a ser aplicada por órgão competente”. Na prática, pelo seu artigo 1º, a lei previa a prescrição da punibilidade em cinco anos, a partir da data de verificação do fato respectivo, para todos os profissionais liberais. A “Lei Shibata”, como ficou conhecida, foi um dos principais instrumentos jurídicos dos advogados de defesa dos médicos processados nos conselhos regionais de medicina e dificultou a punição dos profissionais de saúde implicados em violações de direitos humanos. Apesar das contestações dos conselhos de medicina na Justiça, prevaleceu a ideia de que o prazo para punição deveria ser contado a partir da data do fato ocorrido, e não da denúncia ou do início do processo disciplinar2020 Chevrand CG. Doutores da Ditadura: Médicos, Repressão Política e Violações de Direitos Humanos no Brasil (1964-1985) [dissertação]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz; 2021.,3131 Teles MAA, Teles JA. A participação dos médicos na repressão política. In: Mota A, Marinho MGSMC, Nemi A, organizadores. Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. Santo André: UFABC; 2017. p.87-114..

Os direitos e os deveres dos médicos enquanto servidores militares do Estado também foram motivo de polêmicas discutidas na Justiça e nos conselhos de medicina nos últimos anos da ditadura. Às vésperas do AI-5, o governo do general Costa e Silva promulgou a Lei nº 5.526 (5/11/1968), que excluía os médicos militares, previamente, da possibilidade de julgamento em seus respectivos conselhos regionais de medicina. Às vésperas da Anistia, mais uma vez e oportunistamente, essa lei foi substituída pela Lei 6.681 (16/8/1979) que estendeu as mesmas diretrizes que se aplicavam aos médicos militares aos cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares, protegendo a todos de investigações disciplinares de seus respectivos conselhos de classe e causando controvérsia e debates, por exemplo, no Conselho Federal de Medicina.

Art. 5º Os médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares, no exercício de atividades técnico-profissionais decorrentes de sua condição militar, não estão sujeitos à ação disciplinar dos Conselhos Regionais nos quais estiverem inscritos, e sim, à da Força Singular a que pertencerem, à qual cabe promover e calcular a estrita observância das normas de ética profissional por parte dos seus integrantes3232 Brasil. Presidência da República. Lei nº 6.681, de 16 de agosto de 1979. Dispõe sobre a inscrição de médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares em Conselhos Regionais de Medicina, Odontologia e Farmácia, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1979; 17 ago..

Esta lei e, doze dias depois, a sanção da Lei de Anistia (6.683, 28/8/1979) garantiriam a proteção dos profissionais de saúde militares justamente após a extinção do Ato Institucional nº 5 por emenda constitucional e do fim da censura prévia, inclusive transferindo para as forças militares funções regulatórias que eram dos conselhos. As duas leis dificultaram as investigações de violações de direitos humanos cometidas pelos profissionais de saúde das Forças Armadas e provavelmente contribuíram para que fossem identificados com mais facilidade, ao longo dos anos, médicos civis que assinaram atestados de óbito, do que médicos militares que atuaram em sessões de interrogatório e tortura. A lealdade e os compromissos não eram com a profissão médica e seus compromissos éticos, mas com a corporação militar à qual pertenciam e com as diretrizes do regime ditatorial.

Um caso exemplar de como os médicos utilizaram seus conhecimentos profissionais em violações de direitos humanos perpetradas por um regime que entronizou a tortura física e psicológica em instalações militares, nas repartições policiais e nos centros clandestinos foi o do tenente médico do Exército José Lino Coutinho da França Netto. Ele aparece citado tanto nas apurações da Comissão Nacional da Verdade como em processos disciplinares do Cremerj, acusado de participar de sessões de interrogatório e tortura na unidade da Marinha na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. O relatório final da CNV aponta que o médico militar:

Teve participação em casos de tortura, acompanhando-a e colaborando com sua execução por meio da ocultação do delito, da promoção de tortura psicológica, buscando diminuir a resistência voluntária e a capacidade de decidir dos torturados e agindo junto aos presos políticos após as sessões de tortura física, já em suas celas, na tentativa de ganhar sua confiança e obter novas informações. Essas conclusões foram produzidas pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1993 e 2000, respectivamente, em decisões que resultaram na cassação de seu registro profissional1515 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório Final [Internet]. Vol. I. 2014 [acessado 2024 jan 15]. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
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(p.907).

O conhecimento técnico-científico, de médicos legistas e médicos militares, que deveria ser instrumento para zelar pelo bem-estar de seus pacientes e salvar vidas, foi utilizado para promover e acobertar violências contra cidadãos que estavam, legal ou ilegalmente, sob a custódia do Estado brasileiro e seus agentes.

Considerações finais

Este artigo abordou o papel de médicos no aparato repressivo da ditadura militar brasileira, a partir de seus conhecimentos técnicos e científicos, em violações de direitos humanos perpetradas por agentes públicos. A amplitude e a complexidade das relações entre esses profissionais de saúde e os órgãos de informação e segurança indicam que essa atuação foi estratégica e sistemática. A serviço da repressão política, com caráter doloso, estes médicos incorreram em má prática profissional e confrontaram tanto a tradição do Juramento de Hipócrates feito pelos formandos de medicina quanto o código deontológico que rege a sua prática, além de inúmeras convenções internacionais e declarações relativas à proteção e promoção dos direitos humanos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

Produzidas a partir dos testemunhos de vítimas, exilados e banidos, e de investigações de familiares de mortos e desaparecidos, as primeiras denúncias sobre o envolvimento de médicos brasileiros com crimes da ditadura circularam em documentos da época, como o Informe da Anistia Internacional de 1972, e por meio de campanhas de mobilização no exterior. Realizado de modo clandestino entre 1979 e 1985, portanto ainda durante o regime autoritário, o projeto Brasil Nunca Mais foi o primeiro documento mais contundente sobre a participação de médicos na assessoria à tortura e na emissão de laudos necroscópicos inverídicos, a partir de informações oficiais da Justiça Militar brasileira.

Segundo os depoimentos de suas vítimas, os médicos presentes nas sessões de interrogatório e tortura utilizavam seus conhecimentos profissionais para dar consultoria e assessorar os torturadores durante os interrogatórios dos presos políticos. Em tese, sua missão era tratar da saúde dos presos e zelar pelo seu bem-estar físico e mental. Na prática, esses médicos orientavam os castigos físicos, avaliando os limites da resistência dos interrogados e contribuindo para que a vítima se mantivesse viva e pudesse fornecer informações e colaboraram para o aperfeiçoamento contínuo dos métodos coercitivos e técnicas de tortura.

Esses dados serviram de base inicial para a abertura dos processos disciplinares nos conselhos de medicina, em iniciativa inédita de julgamento e punição de agentes de Estado por crimes da ditadura, mesmo que no âmbito ético e disciplinar. Apesar dos esforços do regime para proteger os seus colaboradores, inclusive com a edição de leis, uma nova geração de médicos progressistas eleita para os conselhos abriu processos contra dezenas de colegas acusados de colaborar, em diferentes níveis, com os órgãos de segurança do regime. Punidos com a pena máxima, alguns deles chegaram a perder, mesmo que provisoriamente, a licença profissional. As inúmeras Comissões da Verdade na década de 2010 puderam coletar mais informações e depoimentos e estabelecer de modo mais definitivo a dimensão do envolvimento de “doutores” na ditadura.

Durante o regime militar, a categoria médica também se dividiu entre setores próximos e comprometidos com os ideais do regime e outros setores críticos e de oposição. Ao mesmo tempo em que médicos prestavam serviços de assessoria à tortura nos cárceres, outros médicos e estudantes de medicina sofreram com a repressão, reagiram e se rearticularam coletivamente na segunda metade da década de 1970, integrando-se aos comitês pela anistia e às lutas pela redemocratização do país. O Núcleo de Profissionais de Saúde do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA-SP) é um exemplo do engajamento dos médicos na denúncia dos “doutores da ditadura” a partir de informações de ex-presos políticos. Como buscou-se evidenciar, médicos foram fundamentais para a sustentação da ditadura militar no Brasil, assim como também foram alvo da repressão e atores importantes na luta pela redemocratização e pela denúncia das violações de direitos humanos deste período.

O colaboracionismo entre a farda e o jaleco na repressão política, discutido nesse artigo, e a quase nula responsabilização civil, criminal e profissional dos envolvidos, indivíduos e instituições, são temas ainda muito pouco examinados e demandam um debate mais amplo e permanente nas políticas de memória, verdade e justiça. Um debate sobre o presente e futuro dos compromissos da medicina e dos médicos, dos profissionais de saúde como agentes públicos, das escolas médicas e dos conselhos profissionais com a promoção dos direitos humanos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2024
  • Aceito
    05 Jul 2024
  • Publicado
    07 Jul 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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