Resumo
O objetivo do artigo é identificar o impacto da pandemia de COVID-19 na incidência de violência sexual de crianças e adolescentes no ambiente domiciliar no Brasil. Estudo ecológico de série temporal utilizando regressão joinpoint a partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, período 2009-2021. Analisaram-se frequência relativa e taxas brutas de incidência de violência sexual ocorrida na residência contra a população de 0 a 19 anos, estimando-se variação percentual anual (APC) e variação percentual anual média (AAPC), com intervalo de confiança de 95%. A frequência relativa do agravo obteve maiores valores em 2020 (69,8%) e 2021 (71,7%), com aumento de 3,1% (p = 0,001) em 2017-2021. As meninas foram mais atingidas, com elevação das taxas em 2009-2012 (APC = 44,4; p = 0,010) e 2015-2019 (APC = 16,6; p = 0,017), porém queda em 2019-2021 (APC = -17,7; p = 0,042). Todas as faixas etárias apresentaram aumento significativo até 2019, e redução após esse ano para 5-9 anos (APC = -18,6; p = 0,016), 10-14 anos (APC = -14,1; p = 0,040) e 15-19 anos (APC = -18,4; p = 0,021). A redução nas taxas de incidência desse tipo de violência pode ter sofrido influência do contexto de isolamento social na pandemia de COVID-19, que levou à subnotificação dos casos.
Key words:
Sexual abuse of children and adolescents; Social isolation; Pandemic; COVID-19
Abstract
The scope of this article is to identify the impact of the COVID-19 pandemic on the incidence of sexual violence against children and adolescents in the home environment in Brazil. It involves an ecological time-series study using joinpoint regression based on data from the Notifiable Diseases Information System from 2009 to 2021. The relative frequency and crude incidence rates of sexual violence occurring in the home against the population group aged 0 to 19 years were analyzed, estimating the annual percentage change (APC) and average annual percentage change (AAPC), with a 95% confidence interval. The relative frequency of the problem was higher in 2020 (69.8%) and 2021 (71.7%), with an increase of 3.1% (p = 0.001) in 2017-2021. Girls were more affected, with rates rising in 2009-2012 (APC = 44.4; p = 0.010) and 2015-2019 (APC = 16.6; p=0.017) but falling in 2019-2021 (APC= -17.7; p = 0.042). All age groups showed a significant increase until 2019, and a reduction after this year for 5-9 years (APC = -18.6; p = 0.016), 10-14 years (APC = -14.1; p = 0.040) and 15-19 years (APC = -18.4; p = 0.021). The reduction in the incidence rates of this type of violence may have been influenced by the context of social isolation during the COVID-19 pandemic, which led to the underreporting of cases.
Key words:
Sexual abuse of children and adolescents; Social isolation; Pandemic; COVID-19
Introdução
A violência sexual praticada contra crianças e adolescentes é uma violação dos direitos humanos e perdura como importante agravo em saúde pública11 Werneck AF, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM. O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 69-90.,22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content... , cujo enfrentamento está contemplado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para a Agenda 2030 das Nações Unidas22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content... . A violência sexual constitui a forma mais perturbadora de violência cometida contra crianças e adolescentes, por comprometer o desenvolvimento físico, psicológico e social das vítimas33 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias: referências para atuação do psicólogo [Internet]. 2009. [acessado 2022 set 8]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/10/CREPOP_Servico_Exploracao_Sexual.pdf
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As consequências da violência em crianças e adolescentes repercutem nas várias dimensões da existência humana, podendo levar as vítimas a reproduzirem comportamentos violentos, praticarem crimes, sucumbirem a vícios e manifestarem diversos transtornos psiquiátricos44 Flynn-O'Brien KT, Rivara FP, Weiss NS, Lea VA, Marcelin LH, Vertefeuille J, Mercy JA. Prevalence of physical violence against children in Haiti: a national population-based cross-sectional survey. Child Abuse Negl 2016; 51:154-162.. Tratando-se de violência sexual, a situação é mais grave, dada a invasão do corpo e/ou psiquismo da criança e do adolescente quando ainda não estão amadurecidos para a vivência da sexualidade11 Werneck AF, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM. O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 69-90..
A violência sexual é qualquer ação na qual uma pessoa obriga outra pessoa de qualquer sexo ou idade a ter, presenciar ou participar de algumas forma de interação sexual, ou a utilizar a sua sexualidade com fins de lucro, vingança ou outra intenção, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou violência psicológica55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Brasília: MS; 2016.. O processo de vitimização pode ocorrer sem contato físico, por meio do exibicionismo (exibição dos órgãos genitais, de masturbação), do voyeurismo (adulto que tem prazer em assistir à criança ou ao adolescente despido) ou pela exibição de vídeos ou outro material pornográfico às vítimas11 Werneck AF, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM. O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 69-90.; com a presença de contato físico (atos físicos genitais) e por meio da violência física (estupro, brutalização e assassinato)66 Neves AS, Castro GB, Hayeck CM, Cury DG. Abuso sexual contra a criança e o adolescente: reflexões interdisciplinares. Temas Psicol 2010; 18(1):99-111.. A violência sexual é crime, mesmo sendo exercida por um familiar, a denominada violência intrafamiliar55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Brasília: MS; 2016.. Os agressores de violência sexual intrafamiliar infantil, em sua maioria, são os pais, padrastos e familiares próximos das crianças77 Habigzang LF, Ramos MDS, Koller SH. A revelação de abuso sexual: as medidas adotadas pela rede de apoio. Psic Teor Pesq 2011; 27(4):467-473.,88 Baía PA, Veloso M, Magaalhães C, Dell'Aglio D. Child sexual abuse disclosure characterization: denial, recantation and associated factors. Temas Psicol 2013; 21(1):193-202., podendo envolver outros integrantes da família, que se omitem, de forma consciente ou inconsciente, a romper o ato incestuoso11 Werneck AF, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM. O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 69-90.. A idade da criança, a periodicidade com que a mesma é violentada e a familiaridade entre a vítima, o agressor e o indivíduo que notificou o caso referem-se a variáveis que podem facilitar ou dificultar a denúncia88 Baía PA, Veloso M, Magaalhães C, Dell'Aglio D. Child sexual abuse disclosure characterization: denial, recantation and associated factors. Temas Psicol 2013; 21(1):193-202..
A subnotificação dos agravos em saúde constitui uma problemática, sobretudo quando se trata de violência. Sabe-se que os dados epidemiológicos sobre abuso sexual apresentam incipiência em função de serem obtidos com base nas notificações99 Krindges CA, Macedo DM, Habigzang LF. Abuso sexual na infância e suas repercussões na satisfação sexual na idade adulta de mulheres vítimas. Contextos Clinic 2016; 9(1):60-71., o que pode ter sido afetado pelo período pandêmico. A interrupção nos serviços de transporte urbano, as dificuldades financeiras relacionadas à pandemia e as dificuldades no acesso a outros equipamentos da rede de proteção à violência são alguns fatores que podem estar relacionados à diminuição nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes durante a pandemia de COVID-191010 Platt VB, Guedert JM, Coelho EBS. Violence against children and adolescents: notification and alert in times of pandemic. Rev Paul Pediatr 2021; 39:e2020267.. Acrescenta-se, ainda, o fechamento (ou abertura reduzida) das delegacias e a demora nas adaptações que garantissem o adequado registro de ocorrências de violência22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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Desse modo, o confinamento domiciliar decorrente do isolamento social na pandemia de COVID-19 pode ter aumentado a vulnerabilidade de algumas populações à violência, apresentando-se como momento crítico para crianças e adolescentes1010 Platt VB, Guedert JM, Coelho EBS. Violence against children and adolescents: notification and alert in times of pandemic. Rev Paul Pediatr 2021; 39:e2020267.. O programa de proteção a esta população, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que corresponde às denúncias do Disque 100, aponta que mais de 70% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontece no ambiente familiar, e que, em decorrência do cessar das aulas presenciais na pandemia, as notificações possivelmente não ocorreram, já que as escolas são as principais instituições de denúncia das violações1111 Trajano RKN, Lyra CVV, Goes TY, Gomes ACA. Comparativo de casos de violência sexual contra criança e adolescente no período 2018-2020. Res Soc Dev 2021; 10(1):e11710111384-e..
Assim, pode-se compreender que, por causa da pandemia e da mudança de comportamento social nos ambientes, em função da interrupção da circulação de pessoas, a vulnerabilidade nas residências pode ter se tornado mais presente1212 Bragança JP. Os casos de abuso sexual infantil durante a pandemia da COVID-19 no Brasil [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 18]. Disponível em: http://periodicos.saolucas.edu.br/index.php/diversidadehumana/article/view/1613/1363
http://periodicos.saolucas.edu.br/index.... .
Tendo em vista a lacuna na literatura a respeito dos efeitos da pandemia de COVID-19 na incidência de violência sexual domiciliar de crianças e adolescentes no Brasil, este estudo foi norteado pela seguinte pergunta: qual o impacto da pandemia de COVID-19 na incidência de violência sexual de crianças e adolescentes ocorrida na residência no Brasil?
Nesse sentido, problematizar essa temática torna-se fundamental para vigilância em saúde, pois a visibilidade dos dados possibilita a obtenção de informações capazes de subsidiar a adoção de mecanismos de prevenção e estratégias de ação em prol da saúde da população em situação de maior vulnerabilidade. Nesse contexto, este estudo teve como objetivo identificar o impacto da pandemia de COVID-19 na incidência de violência sexual de crianças e adolescentes no ambiente domiciliar no Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo ecológico de série temporal com base em dados secundários da notificação compulsória de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorridos no Brasil, no período de 2009 a 2021, correspondendo a todo o período de registro de notificação de violência contido no sistema de informação. Foram consideradas crianças os indivíduos na faixa etária de zero a nove anos, e adolescentes os indivíduos com idade de 10 a 19 anos, conforme classificação do Ministério da Saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Caderneta de Saúde do Adolescente [Internet]. 2014. [acessado 2022 out 6]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderneta_saude_adolescente_masculino.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco... . A fonte de dados secundários teve como referência o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Informações de Doenças e Agravos de Notificação - SINAN [Internet]. 2022. [acessado 2022 jun 6]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violebr.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... , cuja base foi obtida no site do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS)1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde - DATASUS [Internet]. 2022. [acessado 2022 jun 6]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?ibge/cnv/projpopbr.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... , onde também foram colhidos dados populacionais referentes às projeções da população residente das unidades da federação por sexo e grupos de idade de 2000-2030. A coleta ocorreu em junho de 2022.
Inicialmente, foram verificadas as frequências absoluta e relativa dos casos de violência sexual ocorridos contra a população de 0 a 19 anos no Brasil em todos os anos presentes no SINAN (2009 a 2021), considerando o local de ocorrência. Para compor a série história, foram calculados: (1) frequência relativa das notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes por local de ocorrência; (2) taxa bruta de incidência dos casos de violência sexual contra a população de 0 a 19 anos ocorridos na residência, estratificada por sexo e faixa etária.
A frequência relativa foi calculada no programa Excel para Windows, utilizando como numerador a quantidade de notificações em cada local de ocorrência e como denominador o total de notificações do agravo na população em estudo, considerando todos os locais de ocorrência, multiplicando-se o resultado por 100. As taxas de incidência foram calculadas no mesmo programa, obtendo-se o número de casos por 100.000 habitantes.
Para a análise de tendência temporal, considerou-se como desfecho o ano da notificação, e como variáveis dependentes a frequência relativa da violência sexual na residência (VSR) praticada contra crianças e adolescentes, assim como as taxas brutas de incidência do agravo estratificadas por sexo e faixa etária. Para análise da frequência relativa, utilizou-se a técnica de regressão linear segmentada (joinpoint), enquanto as tendências das taxas foram analisadas pela regressão segmentada de Poisson. Os cálculos foram efetuados com o software Joipoint Regression Program, versão 4.9.1.01616 National Institute of Health (NIH). Joinpoint Regression Program Version Statistical Methodology and Applications Branch, Surveillance Research Program [Internet]. 2022. [acesso 2022 jun 10]. Disponível em: https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/
https://surveillance.cancer.gov/joinpoin... , que proporciona o ajuste de uma série de linhas e pontos de inflexão (momentos de alteração na tendência) em uma escala logarítmica, por meio do teste de tendências anuais, e utiliza como teste de significância o método de permutação de Monte Carlo para a obtenção do ajuste baseado na melhor linha de cada segmento1717 Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. Stat Med 2000; 19(3):335-351.. Para comparação pareada das tendências das taxas brutas entre os sexos, realizou-se a análise avançada de pairwise comparison1818 Kim HJ, Fay MP, Yu B, Barret MJ, Feuer EJ. Comparability of segmented line regression models. Biometrics 2004; 60(4):1005-1014., utilizando o teste de paralelismo de modo a determinar se as curvas são coincidentes ou paralelas.
A partir da definição dos seguimentos, a variação percentual anual (annual percentual change - APC) e a variação percentual anual média (average annual percentual change - AAPC) foram estimadas e testadas, com intervalos de confiança de 95%. O resultado possibilitou demonstrar crescimento (variação positiva), redução (variação negativa) ou manutenção (variação próxima de zero) da tendência ao longo da série histórica, considerando estatisticamente significativa aquelas que apresentaram p-valor menor que 0,05.
Para este estudo, foi dispensada apreciação por Comitê de Ética, visto que foi realizado com dados secundários de domínio público.
Resultados
Os dados demonstram que as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes aumentaram progressivamente até 2019 para todos os locais de ocorrência, apresentando queda após esse ano (Tabela 1). Atenção especial deve ser dada às notificações de casos ocorridos na escola, cuja frequência absoluta, em 2019, foi de 1.194 notificações, enquanto em 2020 foi de 336, representando uma queda de 71,9%. No mesmo período, os casos notificados com ocorrência em bar ou similar obtiveram queda de 40,0%, habitação coletiva 24,9%, local de prática esportiva 24,0%, via pública 22,3%, comércio 19,0% e indústria 10,9%, representando uma queda de 23,5% quando somados todos juntos. A residência apresentou queda de apenas 9,6%
Ainda pela Tabela 1 é possível identificar que a residência se apresentou como principal local de ocorrência da violência sexual de crianças e adolescentes. Analisando a frequência relativa do agravo, observa-se que as incidências da VSR sempre são maiores quando comparada aos demais locais de ocorrência, tendo atingido os maiores percentuais nos anos de 2020 e 2021, com 69,8% e 71,7%, respectivamente. Tal fato demonstra que a residência foi o único local de ocorrência que teve aumento da frequência relativa de violência sexual na população em estudo nos anos pandêmicos, quando comparado a 2019, enquanto os demais locais se mantiveram, aproximadamente, na mesma proporção ou apresentaram redução. Vale salientar que as notificações cujo local de ocorrência estava em branco ou foi ignorado corresponderam a 11,2% em 2020 e 10,8% em 2021, sugerindo que os dados referentes à VSR podem ser ainda maiores.
A frequência relativa de VSR em crianças e adolescentes, considerando ambos os sexos, apresentou aumento significativo em 2017-2021 [APC = 3,1% (IC95%: 1,9-4,4, p = 0,001)]. Tal tendência também foi observada quando considerado todo o período analisado [AAPC = 1,6% (IC95%: 0,7-2,6, p = 0,001)].
Com relação à incidência de VSR, observaram-se as maiores taxas na população feminina (média de 38,2 casos por 100 mil meninas versus 5,9 casos por 100 mil meninos), atingindo os maiores valores no ano de 2019 em ambos os sexos. A análise por faixa etária apontou meninas de 10-14 anos como as mais afetadas, seguidas daquelas de 5-9 anos, enquanto nos meninos o agravo acometeu principalmente os menores de 10 anos (Tabela 2).
A tendência temporal das taxas brutas de VSR na faixa etária de 0 a 19 anos, na análise comparativa entre os sexos, evidenciou que as curvas para ambos são coincidentes, com crescimento significativo para ambos os sexos durante todo o período analisado, sendo maior na população feminina [AAPC = 13,4 (IC95%: 9,4-17,5; p < 0,001)] do que na masculina [AAPC = 9,1 (IC95%: 2,4-6,3; p = 0,007)]. Foi observado aumento significativo para ambos os sexos no período de 2009-2012 [APCmasc: 38,3 (IC95%: 5,8-80,8; p = 0,035) e APCfem: 44,4 (IC95%: 22,9-69,6; p = 0,010)]. O sexo feminino apresentou outro período de crescimento significativo em 2015-2019 [APC = 16,6 (IC95%: 6,7-27,3; p = 0,017)], seguido de redução significativa em 2019-2021[APC = -17,7 (IC95%: -31,1 - -1,7; p = 0,042)], conforme a Tabela 3.
A análise comparativa da tendência temporal entre os sexos, estratificada por faixa etária, teve o teste de paralelismo rejeitado para as faixas 0-4 anos e 5-9 anos, apontando que as curvas de ambos os sexos nessas faixas etárias são coincidentes e, portanto, apresentaram a mesma tendência no mesmo recorte temporal, com crescimento significativo no período de 2009-2019 para a primeira faixa etária e de 2011-2019 para a segunda, conforme a Figura 1. Além disso, ambas obtiveram AAPC positiva e significativa, demonstrando crescimento durante todo o período analisado, com valores mais altos para a população feminina.
Comparação pareada entre os sexos da tendência temporal das taxas brutas de incidência de violência sexual na população de 0-19 anos, ocorrida na residência, por faixa etária, Brasil, 2009-2021.
No que diz respeito às faixas etárias de 10-14 e 15-19 anos, as curvas se mostraram paralelas, evidenciando tendências diferentes entre os sexos. Desse modo, apesar de ter havido crescimento no período de 2009-2019 para meninos e meninas de 10-14 anos, para elas esse período foi composto de duas tendências de aumento, sendo uma maior de 2009-2012 e outra menor de 2012-2019. Porém, a elevação das taxas durante todo o período ocorreu somente para as meninas (AAPC positivo e significativo). Já a população de 15-19 anos apresentou crescimento de 2009-2019 para meninos e de 2011-2019 para meninas. Ambos apresentaram AAPC positivo e significativo no período em estudo, sendo maior para as meninas.
No período de pandemia (após 2019), as tendências analisadas separadamente não apresentaram significância estatística para qualquer subgrupo de faixa etária ou sexo, conforme Tabela 3. No entanto, na análise combinada entre os sexos, além do aumento significativo das notificações para todos os grupos etários até 2019, observou-se também queda significativa de 2019-2021 para as faixas a partir de cinco anos (Tabela 4).
Link para o repositório Scielo Data com os resultados completos da pesquisa: https://doi.org/10.48331/scielodata.TWQWP0
Discussão
Vulnerabilidade de crianças e adolescentes à violência sexual
O abuso sexual é um evento não apenas destinado a grupos vulneráveis, trata-se de um evento que vulnerabiliza o sujeito que por ele é afetado. A literatura aponta que as vítimas de abuso sexual são geralmente do gênero feminino1919 Serafim ADP, Saffi F, Achá MFF, Barros DMD. Dados demográficos, psicológicos e comportamentais de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Arch Clin Psychiatry 2011; 38(4):143-147.. Tal dado pode ser explicado culturalmente, ao perceber que o abuso sexual contra mulheres, de qualquer faixa etária, é um mecanismo de controle de seus corpos, ação que é voltada violentamente ao controle da sexualidade feminina e que está contextualizada em uma sociedade de origem patriarcal.
Este estudo identificou que as taxas de ocorrência de VSR em meninas foram bem superiores às ocorridas em meninos, com a diferença entre elas aumentando a cada ano até 2019. Além disso, foi observada tendência de crescimento significativo durante todo o período analisado (2009-2021) em ambos os sexos, sendo maior na população feminina. Os resultados corroboram os achados de outros estudos, que apontam as meninas como principais vítimas da violência sexual2020 Platt VB, Back IdC, Hauschild DB, Guedert JM. Violência sexual contra crianças: autores, vítimas e consequências. Cien Saude Colet 2018; 23(4):1019-1031.
21 Guimarães JATL, Villela WV. Características da violência física e sexual contra crianças e adolescentes atendidos no IML de Maceió, Alagoas, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(8):1647-1653.
22 Santos MJ, Mascarenhas MDM, Rodrigues MTP, Monteiro RA. Caracterização da violência sexual contra crianças e adolescentes na escola - Brasil, 2010-2014. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017059.-2323 Nunes AJ, Sales MCV. Violência contra crianças no cenário brasileiro. Cien Saude Colet 2016; 21(3):871-880. e a residência como principal local de ocorrência2020 Platt VB, Back IdC, Hauschild DB, Guedert JM. Violência sexual contra crianças: autores, vítimas e consequências. Cien Saude Colet 2018; 23(4):1019-1031.,2121 Guimarães JATL, Villela WV. Características da violência física e sexual contra crianças e adolescentes atendidos no IML de Maceió, Alagoas, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(8):1647-1653..
Com relação à idade, os resultados apontam diferença entre os gêneros, indicando que cada um apresenta uma faixa etária de maior vulnerabilidade. As meninas são acometidas, geralmente, na faixa de 10-14 anos, entretanto, aquelas que têm de 5-9 anos também são potencialmente afetadas por abuso sexual. A respeito dos meninos, este estudo identificou que os mais afetados são os que têm idade de 5-9 anos, seguidos daqueles de 0-4 anos.
Segundo a cartilha elaborada pelo Ministério Público do Ceará, no ano de 2021, crianças mais novas seriam mais acometidas por abuso sexual por terem menor habilidade para identificar tais atos violentos como violação de seus corpos. Não raramente, tal dificuldade impede que as crianças busquem ajuda ou mesmo tenham suas denúncias validadas. Além disso, o abuso sexual, quando direcionado a crianças mais novas, pode ter sua duração prolongada, seja devido à baixa faixa etária e à falta de orientação e acolhimento parental, ou ao fato de essas crianças serem massivamente vítimas de abuso sexual em espaços tidos como protetivos, sendo violentadas por pessoas que deveriam lhes ofertar afeto e direcionamento. No entanto, os agressores usam dessa ligação para manipular essas crianças e deixá-las mais propensas aos atos violentos2424 Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Violência sexual contra crianças e adolescentes - o silêncio que destrói infâncias [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 18]. Disponível em: http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2020/12/CARTILHA-Viol%C3%AAncia-Sexual-contra-Crian%C3%A7as-e-Adolescentes.pdf
http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads... .
Diante dos agravos e danos provenientes do abuso sexual de crianças e adolescentes, percebe-se que se trata de fenômeno multifacetado, configurando uma demanda de saúde pública. Além disso, há de se reconhecer que as medidas de enfrentamento desse tipo de abuso não se limitam às ações punitivas contra os perpetradores dessa violência, também incluem uma atuação preventiva capaz de estruturar mais fortemente as estratégias de enfrentamento a esse agravo. No entanto, é necessária uma cooperação entre todos os órgãos compreendidos como agentes protetivos das crianças e adolescentes, destacando-se, entre eles, o ambiente escolar como um potente auxiliar no combate ao abuso sexual2525 Ippolito R, Wille R. A escola como o espaço mais próximo da revelação da violência sexual e o cuidado de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 131-146..
Vale destacar que a proteção de crianças e adolescentes e o enfrentamento à violência sexual contra essa população não é papel somente das instituições protetivas, mas de todo cidadão, que deve assumir a postura de corresponsabilização no que diz respeito às ações de prevenção e denúncia11 Werneck AF, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM. O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes. In: Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos MGOM, Barbieri PB, Viana VN, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014; p. 69-90., tendo em mente a superação de pontos de vista estigmatizantes e mantenedores da violência.
Assim, a estratégia de enfrentamento ao abuso sexual não deve ser sustentada apenas na ação informativa de crianças e adolescentes. É importante haver o fortalecimento dos mecanismos legais de proteção, das políticas públicas que atuam de forma especializada e da rede de proteção, a partir de uma intervenção articulada e integrada da sociedade civil, do poder público e da iniciativa privada. Aliado a isso, é necessária uma escuta acessível por parte dos adultos, sobretudo os atuantes nos órgãos de proteção básica e especial, frente às denúncias de violência, de modo que sejam capazes de oferecer uma escuta acolhedora e não silenciar frente às demandas de sofrimento que são compartilhadas consigo2626 Santos BR, Gonçalves IB, Vasconcelos G, Barbieri PB, Nascimento V, organizadores. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos - guia para capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília: EdUCB; 2014..
A residência como local (in)seguro durante a pandemia de COVID-19
Durante todo o período em estudo houve aumento na frequência relativa de notificações de VSR em crianças e adolescentes, considerando ambos os sexos, sendo menos intenso a partir de 2020, em decorrência da queda no número de notificações durante a pandemia. Naquele ano foram registrados pelo menos 46.289 estupros de pessoas entre 0 e 19 anos, dos quais 85,2% foram praticados por conhecidos da vítima, predominantemente do sexo masculino (96,3%), representados por parentes ou outras pessoas próximas que têm acesso livre às crianças, tornando a denúncia ainda mais difícil22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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Uma vez que, na maioria dos casos, a violência sexual de crianças e adolescentes tem caráter incestuoso e intrafamiliar, ou é praticada por pessoas conhecidas que têm acesso livre às casas2121 Guimarães JATL, Villela WV. Características da violência física e sexual contra crianças e adolescentes atendidos no IML de Maceió, Alagoas, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(8):1647-1653., a permanência das crianças e dos adolescentes junto ao agressor por longos períodos do dia durante a pandemia, devido ao fechamento de escolas e instituições públicas, expôs o público em questão a um risco aumentado de novos eventos violentos1111 Trajano RKN, Lyra CVV, Goes TY, Gomes ACA. Comparativo de casos de violência sexual contra criança e adolescente no período 2018-2020. Res Soc Dev 2021; 10(1):e11710111384-e.. Vale salientar que a prática do abuso sexual de crianças e adolescentes em família não é facilmente denunciada, visto que o vínculo afetivo da vítima com o agressor contribui para que os dados sejam obscuros66 Neves AS, Castro GB, Hayeck CM, Cury DG. Abuso sexual contra a criança e o adolescente: reflexões interdisciplinares. Temas Psicol 2010; 18(1):99-111.. Por isso, embora sejam dados alarmantes, ainda não abrangem a totalidade dos casos.
Diante das elevadas taxas de VSR, sobretudo em meninas, encontradas neste estudo, assim como da redução significativa das notificações dessa violência ocorrida na população em pauta nos anos de pandemia, percebe-se a grande possibilidade de ter havido um velamento dos casos no período pandêmico devido às subnotificações. Soma-se a isso a grande quantidade de notificações ocorridas de 2009 a 2021 encontrada neste estudo, cujo local de ocorrência não foi discriminado (média de 11,7%), havendo possibilidade de as taxas de VSR serem ainda maiores. Desse modo, percebe-se que a invisibilidade da violência doméstica, que já era grande, aumentou ainda mais com a pandemia22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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Nesse contexto, o decréscimo nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes no período de pandemia pode ter sido influenciado por vários outros fatores, com destaque para a suspensão das aulas presenciais, que teve como consequência a inacessibilidade dessa população a um dos principais mecanismos protetores contra a violência1010 Platt VB, Guedert JM, Coelho EBS. Violence against children and adolescents: notification and alert in times of pandemic. Rev Paul Pediatr 2021; 39:e2020267.,2727 World Health Organization (WHO). INSPIRE: seven estrategies for ending violence against children. Uptake between 2016 and 2021 [Internet]. 2022 [cited 2022 nov 6]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240046689
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Soma-se a isso a dificuldade de acesso ao serviço de saúde por outras necessidades, dada a sua reestruturação para atender exclusivamente casos de síndromes respiratórias, especialmente porque no Brasil a rede protetiva às crianças e adolescentes é fortalecida pela Estratégia Saúde da Família e os serviços do Sistema Único de Saúde, cujos profissionais têm papel fundamental na identificação e denúncia de situações de violência, juntamente com profissionais da assistência social, conselhos tutelares etc22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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A escola, além de oferecer lugar seguro para a denúncia de violência, atua como ambiente de empoderamento e educação sexual, ajudando na prevenção da violência em vários níveis2727 World Health Organization (WHO). INSPIRE: seven estrategies for ending violence against children. Uptake between 2016 and 2021 [Internet]. 2022 [cited 2022 nov 6]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240046689
https://www.who.int/publications/i/item/... . Para tanto, é importante que a escola seja vista como um local de fortalecimento da cidadania, por ser o equipamento social que mais se aproxima fisicamente das crianças e dos adolescentes2121 Guimarães JATL, Villela WV. Características da violência física e sexual contra crianças e adolescentes atendidos no IML de Maceió, Alagoas, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(8):1647-1653., ocupando lugar estratégico, visto que os profissionais da educação são fundamentais para a identificação de situações de maior risco a que as crianças possam estar expostas e representam figuras importantes ao atuar para além de uma educação formal22 Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 12]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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Dessa forma, a queda nas notificações não reflete necessariamente uma redução efetiva nos índices da VSR em crianças e adolescentes. De fato, experiências de vários países demonstraram que houve incremento desse agravo durante o período de isolamento2828 Bradbury-Jones C, Isham L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs 2020; 29(13-14):2047-2049.. Dados oficiais demonstraram elevação nos pedidos de socorro em países como Itália, Espanha, Reino Unido e Alemanha2929 Graham-Harrison E, Giuffrida A, Smith H, Ford L. Lockdowns around the world bring rise in domestic violence [Internet]. 2020. [cited 2022 out 20]. Available from: https://www.theguardian.com/society/2020/mar/28/lockdowns-world-rise-domestic-violence
https://www.theguardian.com/society/2020... . Pesquisa realizada pela Unicef em 2020 destacou a interrupção dos serviços de proteção à violência contra crianças e adolescentes em 104 países, ressaltando os prejuízos, principalmente em relação ao gerenciamento dos casos e às visitas aos grupos de risco3030 United Nations Children's Fund (UNICEF). Protecting children from violence in the time of COVID-19: disruptions in prevention and response services [Internet]. 2020. [cited 2022 set 15]. Available from: https://www.unicef.org/media/74146/file/Protecting-children-from-violence-in-the-time-of-covid-19.pdf
https://www.unicef.org/media/74146/file/... , contribuindo para a subnotificação dos casos de violência durante a pandemia de COVID-19.
Ante o exposto, o estudo apresenta a limitação de usar dados secundários, cuja alimentação pode ter sofrido interferência do período pandêmico. Além disso, os dados de 2020 e 2021, no período da coleta, ainda estavam sujeitos à revisão. No entanto, a finalidade não foi analisar friamente os dados apresentados, mas evidenciar que, há alguns anos, a residência vem se mostrando como principal cenário de violência, sobretudo sexual, contra crianças e adolescentes, e incitar a reflexão sobre a subnotificação dos casos como consequência do isolamento social e da mudança de foco dos serviços de saúde, que ficaram voltados ao combate à pandemia.
Considerações finais
Os dados do estudo demonstram que a residência se apresenta como o principal local de ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes. A tendência temporal da frequência relativa dos casos de violência sexual cometida contra esse público ocorridos na residência no Brasil, quando comparada à de outros locais de ocorrência e considerando ambos os sexos, apresentou aumento significativo para todo o período considerado, principalmente após 2018. A população feminina é a mais afetada, com as maiores taxas observadas no ano de 2019 para ambos os sexos, sendo a faixa etária de maior risco para meninas a de 10-14 anos, e para meninos a de 5-9 anos.
Apesar de a frequência relativa da violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrida na residência ter aumentado nos anos de pandemia, como consequência da maior redução dessa violência em outros espaços, as taxas brutas de notificações desse tipo de violência, que vinham aumentando progressivamente até 2019, diminuíram nos anos pandêmicos. Os dados, aliados ao contexto de isolamento social, paralisação das escolas, medo de contaminação pelo vírus e restrição de acesso aos serviços de saúde e demais serviços de apoio às vítimas de violência sugerem que houve subnotificação dos casos, o que torna a situação ainda mais preocupante.
O agravo em estudo ocorre desde a Antiguidade, no Brasil e no mundo, e perdura na sociedade atual, tendo como principais agressores pessoas do núcleo familiar ou próximas às famílias. Desse modo, deve-se considerar a residência como cenário importante de perpetuação da violência sexual contra crianças e adolescentes. O serviço de saúde, por meio da notificação e do acolhimento das vítimas, e sobretudo a escola, que representa o segundo espaço social de crianças e adolescentes e tem o potencial de colaborar na prevenção, detecção precoce e abordagem dos casos, têm papel importante no desvelamento dessa problemática, de modo a romper o ciclo de violência. Para isso, faz-se necessário fortalecer as estratégias de captação de casos, mesmo em períodos de crises sanitárias, para enfrentamento do problema.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Set 2024 - Data do Fascículo
Out 2024
Histórico
- Recebido
22 Jan 2023 - Aceito
16 Set 2023 - Publicado
18 Set 2023