Experiências de convivência com o transtorno mental grave: narrativas sobre o processo de recuperação pessoal

Yasmin Furtado Lilian Miranda Angélica Ferreira Fonseca Sobre os autores

Resumo

O artigo aborda o tema da recuperação pessoal (recovery), movimento sociopolítico, campo de estudos e práticas que visa, a partir da experiência de sujeitos com transtornos mentais, promover uma visão mais otimista para o prognóstico desses quadros. Com o objetivo de compreender processos de recuperação pessoal de pessoas que vivenciam transtornos mentais graves, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, baseada na hermenêutica gadameriana. Realizamos entrevistas em profundidade, na modalidade de narrativas de vida, com cinco pessoas que se reconhecem em processo de recuperação pessoal e integram um coletivo de usuários de saúde mental. Com base na análise narrativa, organizamos três eixos: facilitadores do processo de recuperação pessoal e estratégias de lida; barreiras ao processo de recuperação pessoal; e relação com o diagnóstico. A discussão fundamenta-se na teoria canguilhemiana, na lógica da atenção psicossocial e nas teorizações sobre a noção de recuperação pessoal. Identificamos recursos intersubjetivos e socioculturais importantes para a recuperação pessoal, contudo, concluímos que esses mesmos elementos podem constituir barreiras para uma existência criativa, pois a norma social se mantém atravessada pelo estigma que acompanha a loucura e pelas relações de poder hierarquizadas.

Palavras-chave:
Pacientes; Narrativa pessoal; Saúde mental

Introdução

O recovery é definido como um campo de estudos e, ao mesmo tempo, de ativismo político e social de usuários e ex-pacientes de saúde mental11 Davidson L, Roe D. Recovery from versus recovery in serious mental illness: One strategy for lessening confusion plaguing recovery. J Ment Health 2007; 16(4):459-470.. No âmbito acadêmico, questiona a tendência determinista e negativa do prognóstico de problemas de saúde mental, mostrando que o curso de transtornos graves, como a esquizofrenia, pode ser tão variado quanto as experiências singulares de vida11 Davidson L, Roe D. Recovery from versus recovery in serious mental illness: One strategy for lessening confusion plaguing recovery. J Ment Health 2007; 16(4):459-470.,22 Harding CM, Brooks GW, Ashikaga T, Strauss JS, Breier A. The Vermont longitudinal study of persons with severe mental illness, II: long-term outcome of subjects who retrospectively met DSM-III criteria for schizophrenia. Am J Psychiatry 1987; 144(6):727-735.. No plano dos movimentos sociais, temos a luta de usuários em prol de uma “ressignificação coletiva” do adoecimento mental11 Davidson L, Roe D. Recovery from versus recovery in serious mental illness: One strategy for lessening confusion plaguing recovery. J Ment Health 2007; 16(4):459-470.,33 Lopes TS. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2011.. Entre esses movimentos, destaca-se o Mental Health Consumer/Survivor Movement33 Lopes TS. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2011., fundado nos EUA na década de 1970 por usuários que se intitulavam “sobreviventes do modelo psiquiátrico tradicional”, e pretenderam propor um modelo mais otimista de empoderamento pessoal e político que denominaram “recovery33 Lopes TS. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2011.,44 Dahl CM. Experiência, narrativa e intersubjetividade: o processo de restabelecimento ("recovery") na perspectiva de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia em tratamento nos centros de atenção psicossocial [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2012.. O termo, propositalmente entre aspas, ratificava que a recuperação à qual se referiam não era sinônimo de remissão absoluta da doença e de recuperação de um estado perdido com a sua chegada33 Lopes TS. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2011..

O lema Nada sobre nós sem nós, incorporado por esse movimento, remete às lutas contra o apartheid, na África do Sul, quando inúmeras pessoas engajadas nas frentes de resistência sofreram violências que acarretaram deficiências físicas. Por volta de 1986, emergiu a organização das Pessoas com Deficiência da África do Sul, responsável pela difusão do lema, que conquistou ampla visibilidade social55 Sassaki RK. Nada sobre nós, sem nós: da integração à inclusão - parte 1. Rev Nacional Reabilitação 2007; 10(57):8-16..

Na literatura nacional, o recovery tem sido traduzido como restabelecimento, recuperação e superação55 Sassaki RK. Nada sobre nós, sem nós: da integração à inclusão - parte 1. Rev Nacional Reabilitação 2007; 10(57):8-16.. Neste artigo adotamos o termo “recuperação pessoal”, identificado na versão portuguesa do documento “Personal recovery and mental illness: a guide for mental health professionals”66 Slade M. Personal recovery and mental illness: a guide for mental health professionals. Cambridge: Cambridge University Press; 2009., pois trata-se de uma designação ampla, tal como proposto por usuários de saúde mental e defendida por Anthony77 Anthony WA. Recovery from mental illness: the guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychosoc Rehab J 1993; 16(4):521-538., autor seminal dessa discussão:

A recuperação pessoal envolve muito mais do que a recuperação da própria doença. Pessoas com transtorno mental podem ter que se recuperar do estigma que incorporaram em si próprios; dos efeitos iatrogênicos dos ambientes de tratamento; da falta de oportunidades de autodeterminação; dos efeitos colaterais negativos do desemprego. A recuperação pessoal costuma ser um processo complexo e demorado77 Anthony WA. Recovery from mental illness: the guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychosoc Rehab J 1993; 16(4):521-538. (p. 527, tradução nossa)

A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu a recuperação pessoal entre os objetivos do Plano de Ação em Saúde Mental 2013-202088 World Health Organization (WHO). Mental health action plan 2013-2020. Geneva: WHO; 2013., abordando-a como um estado de saúde a ser promovido pelos serviços e como dimensão alinhada ao fortalecimento pessoal e político da população com problemas de saúde mental e deficiências psicossociais. Podemos entender que sistemas de saúde e seus serviços são convocados a incorporar essa concepção em suas práticas de cuidado.

No Brasil, desde a década de 1970, o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) vem promovendo a valorização da experiência (inter)subjetiva no cuidado em saúde mental. A proposta de reinventar a clínica e a política tem na atenção psicossocial99 Tenório F. A psicanálise e a clínica da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; 2001. sua elaboração mais consistente, defendendo o cuidado em rede composta por um conjunto de dispositivos que devem responder à complexidade dos quadros atendidos. Tais dispositivos extrapolam o campo da saúde mental, incluindo ações e serviços de saúde em geral e políticas públicas de proteção social, arte e cultura1010 Delgado PGG. Saúde mental e direitos humanos: 10 anos da Lei 10.216/2001. Arq Bras Psicol 2011; 63(2):114-121..

Trata-se de um movimento que não ocorre sem contradições e retrocessos, sobretudo nos últimos anos1111 Delgado PGG. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trab Educ Saude 2019; 17(2):e0021241.. Num cenário de disputas políticas e epistemológicas, Leal et al.1212 Leal EM, Marques JM, Moreira J, Costa S, Caridade E, Mendes M. Psicopatologia da autonomia: a importância do conhecimento psicopatológico nos novos dispositivos de assistência psiquiátrica. Rev Latinoam Psicopatol Fund 2006; 9(3):433-446. argumentam que a psicopatologia descritiva ainda mantém forte influência sobre o modo como os serviços entendem o adoecimento e operam o cuidado. Utilizada de modo acrítico, essa ferramenta tem produzido efeitos nocivos para a clínica, como a ausência de tematização acerca da relação do sujeito com seu sintoma; negligência de sofrimentos que não se manifestam pela via da sintomatologia positiva; e elaboração de propostas de tratamento normalizadoras, que dispensam a participação do usuário.

Na tentativa de não recuar ante o desafio de oferecer protagonismo aos usuários na prática clínica, vinculamos a teorização do médico e filósofo Georges Canguilhem sobre o conceito de saúde e os estudos sobre recuperação pessoal. Canguilhem1313 Canguilhem G. É possível uma pedagogia da cura? In: Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005. p. 49-70. toma como base a experiência subjetiva para formular o conceito de saúde, lembrando que devemos pensá-la como um “estado orgânico do qual um indivíduo se considera juiz”1313 Canguilhem G. É possível uma pedagogia da cura? In: Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005. p. 49-70. (p. 57). Além disso, relaciona saúde ao conceito de normatividade vital, considerando saudável aquele capaz de estabelecer e criar normas, novos padrões de funcionamento e formas de viver1414 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.. A saúde estaria na potencialidade dessa capacidade, e a patologia em sua restrição.

Saúde, para Canguilhem1414 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009., diz respeito à margem de tolerância do indivíduo em relação às “infidelidades do meio”1414 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. (p. 64), de modo que um afunilamento nessa margem produziria um “sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”1414 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. (p. 44). A saúde suporta a doença e não está relacionada a um estado de equilíbrio, mas à dinâmica que permite criar normas e responder a diferentes situações. O que caracteriza um estado como patológico é o aspecto conservador conferido à doença, a eminência de uma norma de vida conservadora, que não admite mudanças, desequilíbrios. A doença é ainda uma norma de vida, mas uma norma inferior por não tolerar desvios em sua própria condição.

Amparadas por esse referencial teórico, objetivamos compreender o processo de recuperação pessoal de pessoas que têm vivências relacionadas a transtornos mentais graves. Entendemos que tais estudos enfrentam o desafio de valorizar os usuários de saúde mental como cidadãos de direitos e participantes ativos dos processos de construção de conhecimento1010 Delgado PGG. Saúde mental e direitos humanos: 10 anos da Lei 10.216/2001. Arq Bras Psicol 2011; 63(2):114-121..

Método

Através do método qualitativo, na modalidade narrativas de vida1515 Bertaux D. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal/São Paulo: EDUFRN/Paulus; 2010., a pesquisa realizou entrevistas em profundidade com pessoas que vivem experiências de recuperação pessoal1616 Ribeiro EF, Vasconcelos SMF. A entrevista de narrativa de vida: uma abordagem que revela um gênero. Macabéa Rev Eletr Netlli 2020; 9(4):209-224.. As entrevistas foram orientadas por um roteiro composto por 24 questões abertas, dispostas em três blocos temáticos: (1) fase inicial do adoecimento e diagnóstico; (2) fatores culturais e socioeconômicos que constituem facilidades e barreiras à experiência de recuperação (rede social, recursos territoriais, vida laboral, escolarização, dimensão familiar, religiosidade/espiritualidade, e autorreconhecimento em termos de gênero e raça/cor); e (3) serviços públicos, papel dos profissionais de saúde e do Estado.

Entrevistamos cinco integrantes de um coletivo de usuários de saúde mental de uma metrópole brasileira. A escolha desse coletivo foi intencional. Trata-se de um grupo composto por pessoas que receberam diagnóstico de transtorno mental grave, todas vinculadas a uma instituição pública que desenvolve atividades de ensino, pesquisa e assistência multidisciplinar e multiprofissional em saúde mental. A via de acesso a esses usuários foi o próprio coletivo - auto-organizado, e não a instituição em que se tratam. Foram critérios de inclusão no estudo ser maior de idade e estar em processo contínuo de tratamento psicossocial. Como critério de exclusão consideramos a experiência de crise psicossocial no momento da entrevista ou a existência de tutela legal.

Para acessar os participantes do coletivo, entramos em contato com sua coordenadora, via e-mail e, através dela, marcamos um encontro com o grupo para apresentarmos a pesquisa e reiterarmos o convite para participação. Após esse encontro, do qual participaram quatro membros do coletivo, a coordenadora nos colocou em contato com mais dois integrantes. Ao final, participaram todas as pessoas interessadas, somando cinco.

O interesse pela compreensão aprofundada da experiência subjetiva de cada participante nos permitiu desenhar um estudo com número reduzido de sujeitos1717 Turato ER. Tratado de metodologia clínico-qualitativa. Petrópolis: Vozes; 2010.. Sem a pretensão de generalização, acreditamos que os resultados compõem interessante fonte de diálogo e substrato clínico para reflexão sobre a diversidade e a abrangência de fatores que envolvem experiências de recuperação pessoal.

Fizemos cinco entrevistas em profundidade, duas presenciais, três por plataforma virtual, atendendo à preferência dos entrevistados. Com duração média de 70 minutos, as entrevistas foram audiogravadas e, a partir delas, foram construídas narrativas de vida. Entendemos narrativas como frutos de um diálogo permeado pelas perguntas que fazemos aos entrevistados e o modo como ouvimos o que eles têm a nos dizer, a partir de nossa escuta e de nossa presença. Após esse diálogo, escrevemos um texto sintetizando e organizando o que foi dito nas entrevistas e, num segundo encontro, o apresentamos para cada entrevistado.

Quatro dos cinco entrevistados tiveram interesse nesse segundo encontro, no qual a intenção não era somente validar o conteúdo expresso, mas criar uma nova oportunidade para a produção de intervenções, como sugere Onocko-Campos1818 Onocko-Campos RT. Fale com eles! O trabalho interpretativo e a produção de consenso na pesquisa qualitativa em saúde: inovações a partir de desenhos participativos. Physis 2011; 21(4):1269-1286.. Todos se mostraram atentos ao conteúdo que líamos juntos, a despeito da longa extensão de algumas narrativas de vida (tinham, em média, dez páginas), produzindo intervenções, suprimindo conteúdos e/ou enxertando elementos que consideravam fundamentais e que não lhes vieram à mente no momento da entrevista. Tais intervenções ultrapassaram as alterações no texto e produziram efeitos sobre nós. Num determinado momento da leitura da narrativa de Pilar, por exemplo, uma das autoras se emocionou e pôde dizer a ela que sua história era fonte de estímulo e otimismo para o leitor lidar com seu sofrimento pessoal. Ao escutá-la, Pilar também se emocionou. Sobre o entrevistado que não se interessou em escutar a narrativa construída, entendemos que ele confiou em nossa capacidade de escutá-lo e procuramos honrar sua confiança.

A análise das entrevistas baseou-se na abordagem hermenêutica1919 Gadamer H-G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; 1997., referencial que considera os efeitos do encontro (inter)subjetivo do entrevistado com o entrevistador, buscando compreender os sentidos que os sujeitos atribuem à própria experiência, num processo de negociação entre interlocutores2020 Schwandt TA. Três posturas epistemológicas para a investigação qualitativa: interpretacionismo, hermenêutica e construcionismo social. In: Denzin NK, Lincoln YS, organizadores. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 193-219.. Assim, o consenso estabelecido considera e esclarece não apenas o que o entrevistado disse, mas o lugar social, epistemológico e afetivo a partir do qual o ouvimos. Consiste no reconhecimento dos sentidos interconectados, dependentes do contexto e das tradições com as quais trabalhamos, em nosso caso, a teoria canguilhemiana do processo saúde-doença, a lógica da atenção psicossocial e as teorizações sobre a noção de recuperação pessoal.

Por meio da interação entre literatura científica, objetivos da pesquisa e análise das narrativas, compusemos núcleos temáticos organizados em três eixos: (1) facilitadores do processo de recuperação pessoal e estratégias de lida para vivê-lo; (2) barreiras ao processo de recuperação pessoal; e (3) relação com o diagnóstico.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual o estudo está vinculado (parecer 5.381.051) e todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão

Sujeitos da pesquisa

Quatro entrevistados se identificaram como homens, dois deles como brancos e dois como pardos. A participante que se identificou como negra foi a única mulher a participar do estudo. Em relação à idade, o mais novo foi um homem de 45 anos, e o mais velho um homem de 67. Quanto ao grau de escolaridade, três participantes completaram o ensino médio, e dois o ensino superior.

Todos os entrevistados são chamados por nomes fictícios. Foi retirado das narrativas qualquer dado que pudesse identificá-los. No caso de Tony, não omitimos as referências aos nomes que remetem à sua obra artística, pois este foi um pedido dele, alinhado ao desejo de divulgação de seu trabalho.

Facilitadores do processo de recuperação pessoal e estratégias de lida para vivê-lo

A experiência com a religião/espiritualidade mostrou-se importante nas narrativas. Filipe valorizou a fé como fator de ajuda no processo de recuperação, ao mesmo tempo em que pôde reconhecer que um líder religioso lhe ajudou a procurar tratamento em saúde mental, ao apontar que a questão por ele levada não era religiosa, mas de saúde. As narrativas de Pilar e Humberto evidenciam a importância da igreja como um espaço de pertencimento social, de conforto espiritual para estar em comunhão com os seus irmãos, um grupão social cristão, um espaço para ver as pessoas, cultuar a Deus e bater um papo.

A nosso ver, as narrativas de Pilar e Humberto evocam o conceito de apoio social, estudado por Valla, Guimarães e Lacerda2121 Valla VV, Guimarães MB, Lacerda A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde - uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado - as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 2004. p. 103-117., que valoriza a ajuda mútua entre pessoas como fonte de efeitos emocionais e/ou comportamentais positivos. Diante de contextos de privação e isolamento no acesso aos serviços, a população tem apontado formas terapêuticas de lidar com seu sofrimento, não mais restritas ao modelo médico-terapêutico, e sim inseridas na categoria de apoio social, na qual grupos religiosos estão incluídos2121 Valla VV, Guimarães MB, Lacerda A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde - uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado - as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 2004. p. 103-117.. Estes podem, inclusive, colaborar com o cuidado de pessoas que precisam dos serviços de saúde, como foi o caso de Filipe.

Seguindo em nossa pesquisa sobre os recursos facilitadores da recuperação pessoal, testemunhamos a importância da expressão criativa, como nos mostra a narrativa a seguir:

Tony relaciona a ausência de crises à prática de alguma atividade que tenha sentido pessoal, lembrando da época em que bebia e sentia muito medo. Nessa época, escreveu dois livros na máquina de escrever, Homem sem cara e Sintomas, e depois de um tempo passou a crise, por isso acredita que ter uma atividade é muito importante para manter o equilíbrio. Já trabalhou como garçom e também na TV Pinel [...] Diz amar a arte e considera que o estudo também ajudou no seu processo de recuperação, mencionando a poesia “Roldana”, que escreveu para a mãe de sua filha, baseada nos seus conhecimentos sobre ciências da natureza. Lembra que juntou tudo o que estudava: elétrons, prótons, nêutrons e roldanas e fez a poesia.

A experiência de Tony nos lembra a aproximação que Freud2222 Freud S. O poeta e o fantasiar. In: Freud S. Arte, literatura e os artistas - obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica; 2017. delineia entre o brincar e a atividade poética, afirmando que, na vida adulta, o brincar é transposto para a criação artística e para o uso do humor. Na obra winnicottiana, o ato criativo tem um sentido mais amplo do que a criação artística, podendo ser aproximado do sentido de normatividade canguilhemiana, na medida em que é caracterizado como “um colorido de toda atitude em relação à realidade”, um ato de criação em relação à realidade externa2323 Winnicott DW. A criatividade e suas origens.In: Winnicott DW. O brincar e a realidade. São Paulo: Imago; 1975. p. 95-120. (p. 95). Brincando com as palavras, Tony parece ter conseguido ser normativo, produzir saúde e, assim, evitar crises.

Todos os entrevistados apontam que um recurso importante para a recuperação pessoal é seu bom vínculo com a instituição de referência, que, na visão deles, oferece múltiplas oportunidades de um cuidado integral. Tony acrescentou a importância de outros espaços, como o Centro de Convivência e Cultura, que se encontra em fase de fragilidade pela ausência de investimentos:

Tony conta que ultimamente estava participando do Centro de Convivência [e Cultura], mas este está quase fechando as portas porque não tem verba. Diz que lá estava aprendendo a tocar alguns acordes de violão e fez uma música chamada “Loucura insana”, disponível no YouTube. Reafirma que os Centros de Convivência são muito importantes e os CAPS também, mas afirma que seu tratamento é em seu serviço de referência, o qual, de acordo com ele, deveria ser “tombado”.

Percebemos que, apesar dos impasses institucionais, que serão mencionados adiante, a instituição a que esses sujeitos estão vinculados se mantém como base firme e referência de cuidado. O serviço funciona como ancoradouro concreto, com fortes repercussões subjetivas para os sujeitos, cumprindo o que se espera dos serviços substitutivos ao manicômio, ou seja, um cuidado que possa ser oferecido de modo intensivo, com equipe multiprofissional, capaz de dispor de ferramentas clínicas diversificadas99 Tenório F. A psicanálise e a clínica da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; 2001.. A instituição é uma referência e vem permitindo que esses sujeitos encontrem nela a estabilidade necessária para seguir em suas jornadas pessoais, e nesse sentido contribui para reafirmar a responsabilidade do Estado por promover ações, no campo da saúde mental, que interfiram positivamente nas condições de vida e saúde. Contudo, na mesma direção de Dias2424 Dias MK. A experiência social da psicose no contexto de um Centro de Atenção Psicossocial. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2155-2164., há que se perguntar se a centralidade que uma única instituição pode assumir não limita a construção de outros vínculos, restringindo as possibilidades de uma rede mais variada de dependências, essencial para a saúde2525 Onocko-Campos RT, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Akerman M, Campos GWS, Carvalho YM, Drumond Junior M, Minayo MCS, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688.. O exemplo de Pilar nos desperta para esse tema, ao contar que só procurou a Clínica da Família quando esteve impedida, devido à pandemia, de ir ao seu serviço de referência no cuidado em saúde mental. Diante dessa impossibilidade, conheceu mais recursos de tratamento, dessa vez perto casa.

Outro aspecto importante do processo de recuperação pessoal é aquilo que no campo da reabilitação psicossocial Tykanori2626 Tykanori RK. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2016. p. 69-74. chama de aumento do poder contratual do usuário, isto é, suas possibilidades de trocar bens, materiais e imateriais, com seu entorno social. A experiência de Humberto oferece corpo para essa teorização:

Humberto faz trabalhos voluntários na igreja e no serviço de saúde mental ao qual está vinculado. Tem como fonte de renda um benefício que recebe pelo fato de sua mãe ter sido servidora pública. Afirma que se sente protegido por recebê-lo num mundo “cheio de desemprego e desigualdades por aí”. Aproveita o momento para se nomear como “o rei do trabalho voluntário” e dizer que “só faz trabalho voluntário”. [...] Já quando questionado se há algum impasse em receber esse benefício, ele menciona que, caso venha a se casar, perde o direito a ele. Demonstra preocupação com esse fato e diz que as pessoas associam o matrimônio ao fato de a pessoa estar mais “equilibrada”, mas que o desemprego é cruel.

Humberto parece trabalhar em prol de sua reabilitação psicossocial, do aumento de seu poder contratual, predominantemente via atuação como voluntário. Isso não o exime de se preocupar com sua vida financeira, com a possibilidade de deixar de receber seu benefício caso venha a se casar, algo que deseja muito. Além disso, reconhece a probabilidade de encontrar dificuldades caso precise se inserir no mercado de trabalho formal.

Os dilemas e dificuldades relacionados à vida laboral também aparecem na narrativa de Daniel, além dos “impasses” de receber a pensão de seu pai, que é sua fonte de renda:

Daniel comentou que já trabalhou numa rede de fast food, como atendente de lanchonete, e no IBGE, quando fez concurso para coletar dados da PNAD. Fez o concurso, mas tinha uma prima que trabalhava no IBGE e, de acordo com ele, “mexeu os pauzinhos” para ele passar. Sua fonte de renda é a pensão que recebe de seu pai. Ele diz que esse dinheiro ajuda, mas também atrapalha seu processo de recuperação. Sobre a última afirmação, conta que foi criado numa família que sempre proferia uma frase que lhe marcou: “não é preciso trabalhar”. Daniel associa essa máxima ao fato de, em suas palavras, só aos 60 anos conseguir entender que o trabalho é necessário para o ser humano. Diz ter uma “tendência ao ócio”, “a não querer tomar iniciativa de procurar emprego”, mas saber que as pessoas “precisam ter sua independência econômico-financeira”, o que, a seu ver, é possível através do trabalho. Afirma que todo mundo arruma um emprego, seja lá onde for, mas ele “tem uma tendência a não querer trabalhar”.

Safatle2727 Safatle V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Safatle V, Silva Júnior N, Dunker C, organizadores. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 11-38. discute o olhar sobre o sujeito dentro da lógica neoliberal como um olhar “objetificado”, pouco atento ao reconhecimento das singularidades. Admite a psicologização da vida, mas sugere que ela é propositalmente engendrada para responder ao modelo da produtividade, da funcionalidade e do consumo2727 Safatle V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Safatle V, Silva Júnior N, Dunker C, organizadores. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 11-38.. Vemos, na narrativa de Daniel, preocupação em responder a esse modelo produtivista. Daniel não parece reconhecer os desafios de uma pessoa que lida com um sofrimento mental intenso, lendo tudo aquilo que “não conseguiu” sob a ótica de uma “tendência ao ócio” e ao fato de “não querer tomar iniciativa de procurar emprego”, falas afeitas aos modos de subjetivação neoliberal discutidos por Safatle2727 Safatle V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Safatle V, Silva Júnior N, Dunker C, organizadores. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 11-38..

Barreiras ao processo de recuperação pessoal

Muitos foram os relatos de barreiras criadas por profissionais ao processo de recuperação pessoal. Tony expressa dificuldade em negociar o ajuste da dose da medicação:

Tony reclama que no serviço que frequenta é comum “encher o paciente de remédio” e que esse tipo de conduta assusta o paciente. Diz que “deve-se começar com pouco” e relata que ele mesmo já diminuiu a dose do lítio que tomava por considerá-la “alta demais”.

A narrativa de Tony nos lembra que, apesar dos avanços com o novo modelo de atenção em saúde mental, temos muitos desafios para uma mudança efetiva na prática de cuidado, pois embora a problematização da primazia do tratamento farmacológico tenha espaço no debate sobre saúde mental2828 Santos DVD, Reis ACS, Silva EM, Lima V, Salomão J. A gestão autônoma da medicação em Centros de Atenção Psicossocial de Curitiba (PR). Saude Debate 2021; 44(Esp. 3):170-183., persistem as abordagens que reduzem o tratamento à administração de psicotrópicos.

Onocko Campos et al.2929 Onocko-Campos RT, Passos E, Palombini AL, Santos DV, Stefanello S, Lamas LG, Andrade PM, Borges LR. A Gestão autônoma da medicação: uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2889-2898. mostram os problemas da relação entre médico prescritor e usuários em estudo desenvolvido em três capitais brasileiras. Em todas foi evidenciada a dificuldade de os usuários conversarem com o médico sobre o tratamento medicamentoso e a tendência a ver o prescritor num lugar de autoridade inacessível.

Trata-se de resultados diferentes daqueles encontrados por Serpa Jr. et al.3030 Serpa Junior OD, Campos RO, Malajovich N, Pitta AM, Diaz AG, Dahl C, Leal E. Experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário. Physis 2014; 24(4):1053-1075., cujos grupos desenvolvidos com pacientes diagnosticados com esquizofrenia mostraram que estes nem sempre usam os medicamentos tal como os psiquiatras prescrevem, manejando à sua maneira a dosagem até encontrarem uma dose que lhes satisfaça. No entanto, os psiquiatras entrevistados reconhecem essa prática e dizem estar disponíveis para negociar e rever com o usuário a prescrição3030 Serpa Junior OD, Campos RO, Malajovich N, Pitta AM, Diaz AG, Dahl C, Leal E. Experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário. Physis 2014; 24(4):1053-1075..

Humberto traz à baila a centralidade da relação médico/profissional de saúde-paciente para o curso do tratamento:

[...] alguns profissionais não estão muito preparados para “cuidar de gente”. Para ele, essas pessoas “falam bonito”, falam sobre CID-10, sobre o compêndio de Freud, mas sobre as pessoas “eles não querem nem saber”.

Balint3131 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu; 1984. foi precursor na discussão sobre a importância da dimensão afetiva, da troca e da relação entre profissional e paciente ao afirmar que a personalidade do médico e sua relação com aquele a quem dirige seus cuidados tem importantes efeitos sobre o tratamento - tanto positivos quanto negativos. Para esse autor, às vezes o médico é o próprio remédio e, em se tratando de medicamentos, ocasionalmente vale mais o modo como ele é ofertado do que o que é ofertado3131 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu; 1984..

Apostando na importância da dimensão afetiva, Peixoto, Mourão e Serpa Jr.3232 Peixoto MM, Mourão ACN, Serpa Jr. OD. O encontro com a perspectiva do outro: empatia na relação entre psiquiatras e pessoas com diagnóstico de esquizofrenia. Cien Saude Colet 2016; 21(3):881-890. conduziram grupos focais com psiquiatras e com pessoas com diagnóstico de esquizofrenia em duas metrópoles brasileiras e afirmaram que, para os psiquiatras, o vínculo é um importante aliado para o tratamento e sua ausência implica dificuldades nas intervenções clínicas.

Barreiras à recuperação pessoal oriundas de injustiças ligadas a gênero e raça também se fizeram presentes em outras narrativas, como na de Pilar, que expõe simultaneamente os dois elementos imbricados:

Para Pilar, fez diferença no seu processo de recuperação o fato de ser mulher e ser “sozinha”, por ter percebido em sua vida que as mulheres são mais desvalorizadas que os homens, especialmente as mulheres negras - que é como Pilar se define. Sente que esse é um fator que atrapalha, e não ajuda, um fator que, em vez de influenciar positivamente no processo de recuperação, em nossa sociedade, influencia negativamente.

Pilar está correta, há grande desigualdade de gênero em nosso país. O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE)3333 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua: PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE; 2022. estima que em 2022 as mulheres representavam 44% da força de trabalho, mas 55% encontravam-se desempregadas. A taxa de desemprego também foi mais alta para mulheres (11%) do que para homens (6,9%). Com relação ao rendimento salarial médio de cada gênero, verifica-se que homens ganham 22% a mais do que mulheres3333 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua: PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE; 2022..

A respeito da dimensão racial indicada por Pilar, recorremos a Silva e Garcia3434 Silva TDM, Garcia MRV. Mulheres e loucura: a (des)institucionalização e as (re)invenções do feminino na saúde mental. Psicol Pesqui 2019; 13(1):42-52. e concordamos que “ser antimanicomial é almejar romper com todos os paradigmas presentes numa sociedade marcantemente manicomial, mas também racista e misógina” (p. 51), o que deve nos induzir à produção de políticas em que raça, gênero e saúde mental estejam articuladas.

No campo das políticas de saúde, destaca-se a formulação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, publicada em 2010, e, em 2014, a criação do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde Mental. Esse movimento parte do reconhecimento de que o racismo é um dos determinantes da saúde integral da população negra e do entendimento de que suas condições de vida resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos presentes na história do país3535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS. Brasília: MS; 2010.. É possível que os efeitos dessas políticas não tenham incidido diretamente na experiência de recuperação pessoal de Pilar, mas certamente políticas públicas que considerem a complexidade social e assumam, em sua formulação, a interseccionalidade como orientação poderão contemplar coletivos e indivíduos que vivem situações semelhantes.

As marcas da injustiça social, do patriarcado e da colonialidade favorecem a vivência de estigmas e preconceitos pelas pessoas que enfrentam questões de saúde mental. Porém, Pilar nos convida a pensar sobre habilidades que desenvolvemos para lidar com situações difíceis e sobre a importância de pensarmos o modo como nossos pacientes irão gerir suas vidas no mundo, fora dos espaços de cuidado:

Pilar também credita o seu processo de melhora ao fato de conseguir “exercitar um pouco mais a paciência” - inclusive com sua vizinhança, que por vezes apresenta um comportamento hostil e preconceituoso em relação a ela e seu estado de saúde, desprezando-a e chamando-a de maluca. Quando estava em crise, teve muita dificuldade para ser aceita e desabafa que isso era motivo de muito aborrecimento e chateação.

É interessante o fato de Pilar creditar seu processo de recuperação à possibilidade de lidar melhor com o estigma, exercitando a paciência. Trata-se de um aspecto abordado por Davidson et al.3636 Davidson L, O'Connell M, Tondora J, Lawless MS, Evans AC. Recovery in serious mental illness: a new wine or just a new bottle? Prof Psychol Res Pract 2005; 36(5):480-487., que incluem a superação do estigma entre os elementos que compõem a recuperação pessoal. Na mesma direção, entre as estratégias propostas pelo “Plano de Ação em Saúde Mental 2013 - 2020” desenvolvido pela OMS está o combate ao estigma e à descriminação social destinada à loucura88 World Health Organization (WHO). Mental health action plan 2013-2020. Geneva: WHO; 2013..

Relação com o diagnóstico

A imprecisão diagnóstica está presente na narrativa de Tony:

Ao falar sobre a imprecisão no seu diagnóstico, Tony a associa a Van Gogh, pois, de acordo com suas pesquisas no Google, não é certo se o pintor tinha esquizofrenia ou transtorno do humor bipolar. Conta que, assim como o artista, já recebeu esses dois diagnósticos - além do de transtorno de personalidade paranoide. Quando questionou o médico sobre essa imprecisão diagnóstica, ouviu dele que “a doença evolui”. Tony diz não saber se essa fala tem sentido porque, segundo ele, até os médicos ficam “sem certeza das coisas”.

A “ausência de certeza” relatada por Tony, frequentemente associada à imprecisão diagnóstica, não resulta necessariamente de uma incompetência ou do não saber médico, pois envolve uma complexidade de fatores que poderíamos agrupar sob a consigna da intersubjetividade. Esta remete à interdependência entre cada pessoa e o ambiente sociocultural, político, ético e material em que vive.

Ainda que os manuais diagnósticos proponham objetivar a subjetividade, frequentemente as manifestações sintomáticas não se enquadram no descrito, valendo seguir a recomendação canguilhemiana para que profissionais de saúde se comportem mais como exegetas do que como reparadores3737 Canguilhem G. A saúde: conceito vulgar e questão filosófica. In: Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005., apoiando os pacientes na construção de uma narrativa sobre sua própria experiência e acompanhando-os na jornada de recuperação pessoal. Para tanto, acreditamos ser necessárias ferramentas clínicas mais sensíveis ao páthos, tal como propõe Serpa Jr.3838 Serpa Jr OD. Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da psicopatologia. In: Silva Filho JF, organizador. Psicopatologia hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; 2007. p. 63-81. ao discorrer sobre uma psicopatologia que toma como eixo a subjetividade - sempre conectada com o mundo -, por ele nomeada como psicopatologia da primeira pessoa3838 Serpa Jr OD. Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da psicopatologia. In: Silva Filho JF, organizador. Psicopatologia hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; 2007. p. 63-81..

Alguns sujeitos apreendem sua experiência subjetiva não relacionada a um diagnóstico formal. A compreensão de Humberto sobre esquizofrenia ilustra bem o que queremos dizer, pois é capaz de apreender, a partir das palavras “esquizofrenia” e “paranoide”, aquilo que é por ele vivido:

Humberto afirma ter sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide e que compreende “mais ou menos o seu diagnóstico”. Diz que sabe que esquizofrenia tem a ver com “ver coisas que não parecem reais” e que paranoide tem a ver com uma “certa mania de perseguição”. Conclui, então, que é assim que entende seu diagnóstico e leva sua vida tentando aceitar suas limitações. No início da entrevista, diz ter se sentido inconformado ao receber o diagnóstico: não entendia muito o motivo pelo qual aquilo tinha acontecido com ele. Mas à medida em que sua narrativa abarca o processo em que ele foi se descobrindo potencialmente capaz de fazer trabalhos voluntários, os comentários sobre a inconformidade dão lugar à descrição do modo como Humberto aprendeu a levar a vida. Conta que, aos poucos, aprendeu a como lidar, viver, sobreviver e aceitar o diagnóstico e o tratamento... Diz que há doenças de vários tipos e que cada um tem uma, essa - a esquizofrenia paranoide - é a dele, e cabe a ele saber viver com o que chama de “essa psicopatologia”.

Ao falar sobre seu diagnóstico, Humberto nos apresenta um relato de recuperação pessoal, que incorpora tanto o sentimento de indignação com o adoecimento quanto o de aceitação progressiva, à medida que vai se descobrindo potencialmente capaz de fazer coisas que lhe dão prazer e consegue conviver com o que chama de “essa psicopatologia”.

Já Tony, em dado momento da entrevista, diz algo que ultrapassa a percepção expressa nos comentários que havia feito a respeito de seu diagnóstico, ou melhor, da ausência de um diagnóstico preciso, afirmando: não procuro saber o que eu tenho, mas sim entender como sou. Seu desinteresse pela categoria nosológica na qual está sendo incluído cede espaço para o esforço de compreensão sobre quem se é, alargando com isso suas possibilidades de existência. “Entender como sou” é algo mais amplo, que envolve o adoecimento, mas o excede, o que nos lembra Canguilhem, para quem a vida não reconhece as categorias de saúde e doença no plano da ciência, mas apenas no “plano da experiência, que é, em primeiro lugar, provação no sentido afetivo do termo [...] de forma que a ciência pode classificar a experiência, mas nem por isso irá anular o vivido corporificado e a tentativa pessoal de compreendê-lo”1313 Canguilhem G. É possível uma pedagogia da cura? In: Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005. p. 49-70. (p. 65).

Tony faz, ainda, uma afirmação muito importante que talvez explique sua ausência de foco em torno do “nome” que diga o que ele tem. Nos lembra que muitas vezes o diagnóstico traz estigma e culpabilização, o que pode reforçar o adoecimento como experiência solipsista, cuja prevenção e superação são de responsabilidade do indivíduo, consumidor de tecnologias biomédicas2727 Safatle V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Safatle V, Silva Júnior N, Dunker C, organizadores. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 11-38..

Considerações finais

Buscamos acessar a experiência de sujeitos capazes de elaborar formas singulares de viver sua recuperação, o que nos revelou a importância de recursos intersubjetivos, como a fruição criativa e a oportunidade de trabalhar de modo formal ou voluntário. Outros elementos que se inseriram nas jornadas de recuperação pessoal foram as instituições religiosas, os serviços de saúde, a atuação profissional e espaços culturais. Contudo, esses mesmos elementos podem constituir barreiras para uma existência criativa, pois a norma social se mantém atravessada pelo estigma que acompanha a loucura e pelas relações de poder no campo profissional. Mostra-se, portanto, necessário o fortalecimento de políticas públicas capazes de confrontar tal processo de estigmatização e centralização do poder biomédico, discutindo continuamente os percursos de cuidado. Coerentemente com os preceitos do campo de estudo da recuperação pessoal, essas políticas não podem ser constituídas a despeito da voz, da narrativa, da experiência corporificada dos usuários.

O processo da pesquisa constituiu uma experiência de escuta e fala para pesquisadoras e entrevistados. Escutamos as elaborações dos usuários sobre seu processo de recuperação pessoal. Mas estes também escutaram as narrativas que construímos sobre suas entrevistas, dialogando com nosso modo de organizar e compreender o discurso, num processo de construção conjunta e participativa. Por fim, buscamos valorizar as bases sociais que precisam ser fortalecidas em processos de cuidado em saúde mental, que entendem a experiência de adoecimento, ou de impedimento de certa fruição da vida, como própria do viver humano e aberta a processos de recuperação singulares e tão mais diversos e potentes quanto mais abrangentes forem as redes de trocas que compõem o cuidado.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - 001; Fundação Oswaldo Cruz - Auxílio de Permanência ao Estudante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2023
  • Aceito
    17 Set 2023
  • Publicado
    19 Set 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br