Resumo
Inquéritos epidemiológicos por grupos étnicos são escassos no Brasil. As condições de saúde e nutrição dos povos indígenas, que enfrentam situações de iniquidades e desigualdades sociais, influenciam negativamente seus indicadores de saúde. Esta é a mais ampla investigação sobre o tema já realizada sobre a etnia Baniwa, uma das mais numerosas do país. O inquérito teve como objetivo analisar condições de vida e perfil nutricional de crianças menores 60 meses e de mulheres entre 14 e 49 anos da referida etnia, residentes no noroeste do estado do Amazonas, na Terra Indígena Alto Rio Negro, área fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Os resultados apresentam elevadas prevalências de desnutrição crônica em 52,5% (IC95% 48,9-56,1) e anemia em 68,3% (IC95% 64-5-71,8) das crianças menores de 60 meses, além de sobrepeso em 26,3% (IC95% 18,4-27,0) e anemia em 52,3% (IC95% 43,6-53,6) das mulheres. As situações de insegurança alimentar observadas estão ligadas às más condições de renda e saneamento. A magnitude desses agravos expressa a baixa efetividade das ações de atenção primária ofertada pelo sistema de saúde, com expressivo percentual de internações decorrentes de agravos sensíveis aos cuidados básicos em nível de atenção primária.
Palavras-chave:
Saúde de populações indígenas; Estado nutricional; Saúde da mulher; Saúde da criança; Amazônia
Introdução
Inquéritos visando a caracterização das condições de saúde e nutrição na população brasileira nas últimas décadas têm demonstrado um declínio de agravos nutricionais, como diminuição da desnutrição e da anemia, em paralelo a um acelerado aumento de doenças crônicas não transmissíveis, com destaque para a obesidade, doenças cardiovasculares e diabetes mellitus11 Castro IRR, Anjos LAD, Lacerda EMA, Boccolini CS, Farias DR, Alves-Santos NH, Normando P, Freitas MB, Andrade PG, Bertoni N, Schincaglia RM, Berti TL, Carneiro LBV, Kac G. Nutrition transition in Brazilian children under 5 years old from 2006 to 2019. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00216622.
2 Freitas MB, Castro IRR, Schincaglia RM, Carneiro LBV, Alves-Santos NH, Normando P, Andrade PG, Kac G. Characterization of micronutrient supplements use by Brazilian children 6-59 months of age: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00085222.-33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Evolução dos indicadores de qualidade de vida no Brasil com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares. Rio de Janeiro: IBGE; 2023..
Comparativamente ao que se observa para a população brasileira em geral, são menos conhecidas as condições de saúde e nutrição dos povos indígenas, que enfrentam situações de iniquidades e desigualdades sociais e sanitárias que influenciam negativamente seus indicadores de saúde11 Castro IRR, Anjos LAD, Lacerda EMA, Boccolini CS, Farias DR, Alves-Santos NH, Normando P, Freitas MB, Andrade PG, Bertoni N, Schincaglia RM, Berti TL, Carneiro LBV, Kac G. Nutrition transition in Brazilian children under 5 years old from 2006 to 2019. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00216622.,44 Garnelo LM, Macedo G, Brandão LC. Os povos indígenas e a construção das políticas de saúde no Brasil. Brasília: OPAS; 2003.,55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.. Estudos realizados com povos indígenas no Brasil têm apontado para a persistência de elevadas prevalências de desnutrição crônica e anemia em crianças66 Santos RV, Welch JR, Pontes AL, Garnelo L, Cardoso AM, Coimbra Jr CEA. Health of Indigenous peoples in Brazil: Inequities and the uneven trajectory of public policies. In: McQueen D, editor. Oxford Research Encyclopedias of Global Public Health. Oxford: Oxford University Press; 2022. p. 1-33., de maneira concomitante à rápida transição nutricional, que se reflete em elevadas prevalências de excesso de peso, diabetes mellitus e hipertensão arterial em adultos77 Ferreira AA, Santos RV, Souza JAM, Welch JR, Coimbra CEA. Anemia e níveis de hemoglobina em crianças indígenas Xavante, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(1):102-114.
8 Escobar AL, Santos RV, Coimbra Jr CEA. Avaliação nutricional de crianças indígenas Pakaanóva (Wari'), Rondônia, Brasil. Rev Bras Saude Mater Infant 2003; 3(4):457-461.
9 Pantoja L de N, Orellana JDY, Leite MS, Basta PC. Cobertura do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional Indígena (SISVAN-I) e prevalência de desvios nutricionais em crianças Yanomami menores de 60 meses, Amazônia, Brasil. Rev Bras Saude Mater Infant 2014; 14(1):53-63.-1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.. Em paralelo, as doenças infecciosas e parasitárias persistem no cenário epidemiológico, com destaque para a diarreia e as infecções respiratórias agudas, apontadas como principais causas de adoecimento e morte de crianças menores de cinco anos1111 Cardoso AM, Horta BL, Santos RV, Escobar AL, Welch JR, Coimbra CE Jr. Prevalence of pneumonia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Int Health 2015; 7(6):412-9.,1212 Escobar AL, Coimbra CE Jr, Welch JR, Horta BL, Santos RV, Cardoso AM. Diarrhea and health inequity among Indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Public Health 2015; 15(1):191..
O I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas no Brasil, o único de abrangência nacional que enfocou a população indígena no país, evidenciou marcante desigualdade que os separa do contingente não-indígena da população55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.. Sem negar a relevância da produção de dados de abrangência nacional acerca das condições de saúde e nutrição dos povos indígenas no país, as investigações com foco em contextos locais também têm o potencial de produzir informações que permitem desvendar desigualdades intrarregionais e singularidades étnicas. Além disso, há uma ausência de estudos epidemiológicos representativos de grupos étnicos como um todo. A investigação teve como objetivo analisar as condições de vida e perfil nutricional de crianças menores 60 meses e de mulheres entre 14 e 49 anos da etnia Baniwa, noroeste do Amazonas. Trata-se da mais ampla investigação sobre o tema já realizado sobre essa etnia específica, uma das mais numerosas do país.
População e métodos
O povo indígena Baniwa vive em aldeias distribuídas ao longo do rio Içana, afluente do rio Negro na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, em área fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Venezuela1313 Garnelo L, Diniz L, Sampaio S, Silva A. Ambiente, saúde e estratégias de territorialização entre os índios Baniwa do Alto Rio Negro. Tellus 2010; 18:39-63.,1414 Wright RM. História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2005. (Figura 1).
Mapa do município de São Gabriel da Cachoeira, polos-base no rio Içana, no DSEI Alto Rio Negro, etnia Baniwa, noroeste amazônico, Brasil.
A população Baniwa é assistida pelo Subsistema de Saúde Indígena através do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (DSEI-ARN), que dispõe de cinco unidades operacionais, os polos-base (Camarão, Tunuí, Tucumã, São Joaquim e Canadá), na terra ocupada pelos Baniwa. Cada polo-base congrega a aldeia sede e um conjunto de aldeias menores a ele adstritas, formando cinco microrregiões de saúde que guardam equivalência com a distribuição territorial tradicional dos grupos de parentesco Baniwa1313 Garnelo L, Diniz L, Sampaio S, Silva A. Ambiente, saúde e estratégias de territorialização entre os índios Baniwa do Alto Rio Negro. Tellus 2010; 18:39-63.. A rede assistencial de referência está localizada na sede municipal de São Gabriel da Cachoeira, que também congrega serviços bancários e outras instituições públicas, além do comércio utilizado pelos indígenas.
A seleção da população de estudo tomou como base uma listagem produzida pelo Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro que, em janeiro de 2009, totalizava 5.980 indivíduos. A microrregião de Camarão, mais próxima da sede municipal, contava com 21 aldeias e 1.622 indígenas residentes; em Tunuí, 14 aldeias e 1.576 residentes; em Tucumã, 17 aldeias e 1.088 indígenas; em Canadá, 18 aldeias e 1.694 indígenas; em São Joaquim, 19 aldeias e 1.186 indígenas. Mulheres em idade fértil (14-49 anos) perfaziam 22,8% da população (n = 1.366) e crianças < 60 meses representavam 15,5% (n = 930)1515 Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Plano Distrital 2008 a 2010 do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro-2006. Brasília: FUNASA/MS; 2009..
Calculou-se uma amostra probabilística estratificada para o conjunto das aldeias Baniwa e por microrregião, estimada com base no tamanho da população-alvo em cada microrregião com prevalência de 50% para todos os desfechos, precisão relativa de 5% e nível de confiança de 95%. O tamanho estimado da amostra foi aumentado em 20% para reduzir o impacto de eventuais perdas.
Foram excluídas do cálculo amostral aldeias com menos de duas famílias (n = 4) e aquelas que não tinham crianças < 60 meses ou mulheres entre 14-49 anos (n = 6). As cinco aldeias-sede dos polos-base ficaram fora do sorteio, sendo incluídas a priori. Ao final dessa fase, um total de 78 aldeias permaneceu na listagem para fins do cálculo amostral. A seleção seguiu os critérios de amostragem sequencial de Poisson. Para a seleção de mulheres e crianças, estimou-se a necessidade de incluir na amostra pelo menos 602 mulheres e 450 crianças Baniwa residentes das aldeias amostradas, pautando-se nos dados do Sistema de Informação da atenção à Saúde Indígena (SIASI), do DSEI-ARN.
A coleta de dados foi realizada entre 2011 e 2013, sendo guiada pelos procedimentos utilizados no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas no Brasil55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52., visando a comparabilidade dos dados. Os questionários continham variáveis para aldeia, domicílio, mulheres e crianças. Condições de vida e perfil socioeconômico foram investigados através de variáveis sociodemográficas domiciliares, como total de moradores no domicílio, fontes de renda e dos alimentos consumidos, índice de bens e condições de saneamento. O cálculo do índice de bens baseou-se igualmente na metodologia do I Inquérito (Coimbra et al.55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.), cuja mensuração de bens duráveis disponíveis em cada domicílio compôs uma matriz de correlação entre as quantidades de itens encontrados. O somatório e a contribuição relativa de cada bem durável subsidiaram a construção de escores que orientaram o enquadramento dos domicílios em tercis (1o tercil - menor somatória de bens, 2o tercil - somatória intermediária e 3o tercil - maior somatória de bens) por microrregião.
O perfil nutricional foi obtido por meio de medidas antropométricas aferidas por dois avaliadores treinados (Lohman et al.1616 Lohman TG, Roche A, Martorell R. Anthropometric Standartization Reference Manual. Champaign: Human Kinetics Books; 1988.). A estatura foi aferida utilizando-se antropômetro portátil AlturaExata (Belo Horizonte, Brasil), com precisão de 0,1 cm. O mesmo antropômetro foi utilizado para medir o comprimento de crianças < 24 meses. Para o peso, utilizou-se balança digital portátil (Seca 872, Hamburgo, Alemanha), com capacidade de 150 kg e precisão de 100 g. Para as crianças < 2 anos, utilizou-se a função mãe/filho da mesma balança.
Para a dosagem da concentração de hemoglobina nas crianças (idades ≥ 6 meses e < 5 anos) e mulheres (14-49 anos), obteve-se uma gota de sangue capilar na polpa digital utilizando-se lancetas descartáveis e lancetador Accu-Chek Softclix (Roche, Mannheim, Alemanha) e hemoglobinômetros portáteis (HemoCue Hb 201+, Ängelholm, Suécia). Crianças com níveis de hemoglobina < 11,0 g/dL foram consideradas anêmicas e níveis < 9,5 g/dL foram considerados indicativos de anemia moderada/grave; as mulheres foram consideradas com anemia com níveis de hemoglobina < 12,0 g/dL para maiores de 14 anos e < 11,0 g/dL para as gestantes1717 World Health Organization (WHO). Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control. Vol. 1. Geneva: WHO/NHD; 2001..
O software Anthro foi utilizado para efetuar os cálculos de indicadores antropométricos usando dados de altura, peso e idade das crianças para estimar estatura-para-idade (E/I), peso-para-idade (P/I) e índice de massa corporal-para-idade (IMC/I), segundo os pontos de corte propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o diagnóstico de desnutrição1818 World Health Organization (WHO). WHO child growth standards: length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Geneva: WHO; 2006.. Para mulheres, calculou-se o IMC e utilizou-se os pontos de corte da OMS1919 World Health Organization (WHO). Physical status:the use of and interpretation of anthropometry. Geneva: WHO; 1995. para o diagnóstico de baixo peso, sobrepeso e obesidade.
As características da população foram descritas por frequências absolutas e relativas, com ponderação estatística. Seus respectivos intervalos de confiança (IC95%) foram estimados levando-se em consideração o efeito do desenho do estudo com amostra probabilística estratificada. Os cálculos foram efetuado pelo programa IBM SPSS Statistics 22.0 (IBM Corp, Armonk, NY, E.U.A.).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas e pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CAAE-0337.0.115.115-10). Todos os trâmites legais para obtenção de anuência e consentimento foram obedecidos.
Resultados
A amostra final do estudo foi integrada por 26 aldeias: seis na microrregião de Camarão, quatro em Tunuí, cinco em Canadá, quatro em Tucumã e sete em São Joaquim. Entre a amostra de domicílios, 361 participaram (86,8% do programado), não tendo havido recusas. Planejou-se a inclusão de 602 mulheres na faixa etária de 14 a 49 anos e de 450 crianças < 60 meses, sendo obtidos dados para 577 (95,8%) e 376 (83,6%), respectivamente. Os cálculos estratificados para mulheres e crianças, de acordo com as microrregiões da amostra planejada e realizada, encontram-se na Tabela 1.
Os maiores percentuais de perdas ocorreram em São Joaquim (24,8% para a população infantil), devido à impossibilidade de acesso geográfico a uma das aldeias selecionadas. Camarão também teve 23,6% de perdas, por ausência de moradores durante o período da coleta.
A mediana de moradores por residência foi de seis pessoas. A microrregião de Canadá apresentou a maior densidade de pessoas por domicílio (mediana = 8,00 e média = 7,71). Para o conjunto de mulheres a mediana foi de uma por residência, com número máximo de cinco por domicílio, exceto em Canadá (mediana = 2,00). Quanto às crianças, em todas as microrregiões a mediana foi de uma por residência, com o máximo de quatro por domicílio em Camarão.
Com relação ao perfil socioeconômico dos domicílios (Tabela 2), a maioria apresentou piso de terra (75,3%), tendo-se registrado percentuais ligeiramente menores nas duas microrregiões mais próximas à sede municipal (Camarão - 62,2% e Tunuí - 67,2%). A maioria das casas apresentou paredes de taipa/barro (64,7%) e telhados de palha (61,4%), com menores percentuais em Canadá (32,0% com paredes de taipa/bairro) e Tunuí (47,5% com telhados de palha).
Na distribuição do índice de bens domésticos, 36,3% dos domicílios se encontravam no 1o tercil de somatória de bens. A proporção de domicílios com presença de beneficiários de aposentadoria foi de 20,5% para o conjunto das microrregiões. Esse percentual foi menor em Tunuí (9,5% de aposentados) e maior em Canadá (27,0%) (Tabela 2). Em cerca de metade dos domicílios amostrados (55,8%) seus moradores estavam inscritos em programa governamental de benefício social, como o Bolsa Família. Em duas das cinco microrregiões do estudo esse percentual ultrapassou 65,0% (Camarão com 66,1% e Canadá com 65,7%). Para essa variável, a distância geográfica não se mostrou relevante, uma vez que o percentual alcançado pelos residentes em São Joaquim, a microrregião mais distante da sede municipal, foi ligeiramente superior (48,3%) àquele alcançado em outras microrregiões mais próximas da cidade, como Tunuí (42,6%) e Tucumã (46,1%).
Os entrevistados apontaram como expressiva a produção de recursos alimentares no próprio território: 98,2% dos domicílios cultivam ou criam animais e em cerca de 97% são praticadas atividades de caça, pesca e coleta de alimentos (dados não tabulados). Foi elevado o número de domicílios (95,2%) que referiram o consumo de alimentos industrializados e baixa a proporção de respondentes (7,0%) que declararam receber alimentos doados.
Quanto às condições sanitárias (Tabela 3), a água proveniente de rio foi referida como a principal fonte para consumo doméstico (76,7%), sendo que nas microrregiões mais distantes da sede municipal alcançou 100%. Quase a totalidade dos entrevistados (97,6%) declarou defecar a céu aberto. A eletricidade é descontínua na maior parte dos domicílios (59,3%) e 40,7% não dispunham de luz elétrica. Na microrregião de Tucumã este percentual subiu para 73,1%. O carvão ou lenha queimados fora de casa (58,4%) foram os principais combustíveis utilizados na cocção de alimentos entre os Baniwa.
A Tabela 4 evidencia os principais agravos nutricionais encontrados nas mulheres e crianças Baniwa. Sobrepeso e obesidade foram identificados em 26,3% e 4,6% das mulheres, respectivamente. Canadá e Camarão se destacaram pelas frequências mais elevadas de sobrepeso (36,0% e 32,1%). As microrregiões mais próximas da sede municipal, Camarão e Tunuí, apresentaram maiores índices de obesidade 7,5% e 7%, respectivamente. A proporção de mulheres com anemia foi de 52,3% e teve pouca variação entre as microrregiões, com exceção de Canadá (71,5%).
Mais de metade das crianças < 60 meses (52,5%) apresentou baixa-estatura-para-idade, com reduzida variação entre as microrregiões, e 11,2% tinham baixo-peso-para-idade. Não foram encontrados casos de sobrepeso ou obesidade em crianças (dados não tabulados). Já a frequência de anemia em crianças foi de 68,3%, com destaque para Tunuí, onde 75,3% das crianças eram anêmicas. As principais causas autorreferidas de internação entre as crianças hospitalizadas foram a diarreia (45,1%) e as infecções respiratórias agudas (35,0%).
Discussão
Além de proverem um detalhado panorama acerca das condições de vida e de saúde dos Baniwa, com base em amostra estatisticamente representativa, os achados propiciaram comparações com pesquisas anteriores que enfocaram os povos indígenas em escala nacional, como ocorreu no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas.
A região do Alto Rio Negro tem sido foco de importantes investigações ao longo das últimas décadas1414 Wright RM. História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2005., tanto do ponto de vista antropológico quanto ecológico-humano. Os estudos indicam que a floresta está bem preservada, mas os solos são descritos como ácidos e carentes de micronutrientes essenciais para a agricultura, condições que resultam também em limitada disponibilidade de caça e de pescado2020 Pimenta NC, Gonçalves ALS, Shepard GH, Macedo VW, Barnett APA. The return of giant otter to the Baniwa Landscape: a multi-scale approach to species recovery in the middle Içana River, Northwest Amazonia, Brazil. Biol Conserv 2018; 224:318-326.
21 Chernela J. Indigenous forest and fish management in the Uaupes Basin of Brazil. Cult Surviv Q 1982; 6(2):17-18.-2222 Moran EF. Human adaptive strategies in Amazonian Blackwater Ecosystems. Am Anthropol 1991; 93(2):361-382.. O padrão tradicional de assentamento Baniwa se caracteriza pela baixa densidade populacional e espaçamento das aldeias, características que contribuem para reduzir o esgotamento de terras e fontes alimentares no entorno das moradias1313 Garnelo L, Diniz L, Sampaio S, Silva A. Ambiente, saúde e estratégias de territorialização entre os índios Baniwa do Alto Rio Negro. Tellus 2010; 18:39-63.. Porém, mudanças nos padrões de assentamento, incremento demográfico nas aldeias e alterações recentes nas atividades econômicas das famílias têm repercutido negativamente na produção e no acesso aos alimentos tradicionais. Essas mudanças promovem o consumo de alimentos industrializados e o consequente empobrecimento da dieta2323 Garnelo L, Baré GB. Comidas tradicionais indígenas do Alto Rio Negro. Manaus: EDUA; 2009.. É nesse contexto de mudanças que os resultados do presente estudo precisam ser contextualizados e interpretados.
Os resultados da investigação apontaram que os Baniwa enfrentam condições desfavoráveis de renda, com enquadramento de 36,3% dos domicílios no tercil mais baixo do índice de bens. Pode-se questionar o uso de bens de consumo para classificar o perfil socioeconômico de famílias indígenas, porém a manutenção da mesma metodologia utilizada no I Inquérito55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52. propiciou comparação dos achados entre os Baniwa com o conjunto da população indígena que vive em território nacional, do qual 33,4% dos domicílios se enquadram no mesmo tercil. Tal problema se adensa em outras populações indígenas que vivem na Amazônia, pois, também de acordo com o I Inquérito, 50,8% dos domicílios indígenas da região Norte se enquadram no tercil inferior55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52., o que coloca os Baniwa em situação ligeiramente mais favorável do que seua congêneres do Norte.
No que diz respeito às condições físicas das habitações, há diferenças expressivas ao se comparar os Baniwa com o perfil global da população indígena investigada pelo I Inquérito, em que 30,9% das habitações apresentavam piso de terra e 25,4% com cobertura de palha ou madeira55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.. As frequências para essas duas características foram mais do que o dobro nos domicílios Baniwa (75,3% e 61,4%, respectivamente). Entretanto, no caso dos povos indígenas amazônicos, tal caracterização precisa ser relativizada, pois o cenário encontrado indica que os membros do grupo permanecem utilizando recursos naturais disponíveis no seu território para construir moradias. Tal condição garante autonomia no gerenciamento dos meios de vida e permite canalizar os recursos financeiros das famílias para outras necessidades de subsistência2323 Garnelo L, Baré GB. Comidas tradicionais indígenas do Alto Rio Negro. Manaus: EDUA; 2009..
Tal raciocínio não é extensivo à falta de saneamento, que favorece a transmissão de doenças infecciosas e parasitárias associadas à defecação a céu aberto e ao consumo de água de potabilidade duvidosa. A preponderância dos que declararam defecar a céu aberto (97,6%) contrasta com os 30,0% dos respondentes do I Inquérito55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.. Proporção semelhante foi obtida para proveniência da água consumida nos domicílios, com 76,7% dos respondentes informando obtê-la em rios e outros cursos d´água, contra 11,6% dos domicílios indígenas entrevistados no I Inquérito. Nesse quesito, 97,8% dos respondentes de Canadá afirmaram consumir água proveniente de rios e igarapés; em São Joaquim, 73,3%; e em Tunuí, 67,8%, mostrando que a exposição a doenças de veiculação hídrica se agrava em certas localidades. Em pelo menos duas dessas microrregiões, São Joaquim e Tunuí, a diarreia foi a causa mais frequente de internações infantis (64,3% e 65,0%, respectivamente).
Embora não existam estudos representativos sobre a frequência do parasitismo intestinal na população Baniwa como um todo, a investigação de 270 pessoas em duas aldeias Baniwa evidenciou que 100% delas estavam infectadas com protozoários ou helmintos, com predomínio de Giardia intestinalis e Entamoeba spp. em crianças de 0-12 anos, reiterando a necessidade de garantir saneamento adequado2424 Oliveira RA, Gurgel-Gonçalves R, Machado ER. Intestinal parasites in two indigenous ethnic groups in northwestern Amazonia. Acta Amaz 2016; 46(3):241-246..
As barreiras geográficas enfrentadas por populações indígenas na Amazônia têm sido apontadas como fatores limitantes do acesso aos cuidados de saúde, pois restringem a provisão de infraestrutura assistencial e alocação de profissionais de saúde, limitando a qualidade e efetividade necessárias ao cuidado à saúde2525 Garnelo L, Sousa ABL, Silva CO. Regionalização em saúde no Amazonas: avanços e desafios. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1225-1234.. Nas terras Baniwa, a grande extensão geográfica e 14 grandes cachoeiras no território encarecem o deslocamento, dificultam a interiorização das políticas públicas e a provisão regular da assistência. Essas condições também impactaram a coleta de dados dessa pesquisa, sendo difícil o acesso às aldeias mais distantes. Tais condições contribuem para incrementar as internações por condições sensíveis à atenção primária, como a diarreia, repercutindo negativamente no estado nutricional das crianças.
O percentual de sobrepeso (26,3%) e obesidade (4,6%) entre mulheres Baniwa foi inferior aos níveis usualmente sinalizados na literatura nacional para populações indígenas nesse segmento etário2626 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra Jr CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.
27 Lourenço AEP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra Jr CEA. Nutrition transition in Amazonia: Obesity and socioeconomic change in the Suruí Indians from Brazil. Am J Hum Biol 2008; 20(5):564-571.
28 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697.
29 Gimeno SGA, Rodrigues D, Canó EN, Lima EES, Schaper M, Pagliaro H, Lafer MM, Baruzzi RG. Cardiovascular risk factors among Brazilian Karib indigenous peoples: upper Xingu, Central Brazil, 2000-3. J Epidemiol Community Health 2009; 63(4):299-304.-3030 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.. Porém, os valores percentuais de sobrepeso e obesidade são semelhantes aos números encontrados no I Inquérito para mulheres indígenas na região Norte do Brasil55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52..
Em contrapartida, a anemia atingiu mais de metade das mulheres Baniwa (52,3%), ratificando os achados de elevadas prevalências desse agravo entre mulheres indígenas na região Norte do Brasil3131 Borges MC, Buffarini R, Santos RV, Cardoso AM, Welch JR, Garnelo L, Coimbra Jr CEA, Horta BL. Anemia among indigenous women in Brazil: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Womens Health 2016; 16:7.. Os valores encontrados no presente estudo são quase o dobro da prevalência de anemia em mulheres não indígena no país3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Pesquisa nacional de demografia e saúde da criança e da mulher: PNDS 2006, dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. 1. ed. Brasília: MS; 2009..
No Brasil, existem poucas investigações sobre a concomitância de anemia materna e infantil, impossibilitando o delineamento de um quadro geral sobre o tema. Entretanto, estão bem estabelecidas as consequências da anemia para a saúde da mãe e da criança em longo prazo3333 Perez EM, Hendricks MK, Beard JL, Murray-Kolb LE, Berg A, Tomlinson M, Irlam J, Isaacs W, Njengele T, Sive A, Vernon-Feagans L. Mother-infant interactions and infant development are altered by maternal iron deficiency anemia. J Nutr 2005; 135(4):850-855.. Os poucos dados disponíveis apontam para a importância desta associação, como entre mulheres Suruí com mais de um filho anêmico com idade entre 6 e 35 meses, que têm três vezes mais chances de serem anêmicas do que aquelas sem filhos anêmicos3434 Orellana JDY, Cunha GM, Santos RV, Coimbra Jr CEA, Leite MS. Prevalência e fatores associados à anemia em mulheres indígenas Suruí com idade entre 15 e 49 anos, Amazônia, Brasil. Rev Bras Saude Mater Infant 2011; 11(2):153-161.. Estudo de abrangência nacional derivado do I Inquérito também encontrou concomitância de anemia em 29,4% de mulheres em idade reprodutiva e suas crianças3131 Borges MC, Buffarini R, Santos RV, Cardoso AM, Welch JR, Garnelo L, Coimbra Jr CEA, Horta BL. Anemia among indigenous women in Brazil: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Womens Health 2016; 16:7.. No Acre3535 Oliveira CSM, Cardoso MA, Araújo TS, Muniz PT. Anemia em crianças de 6 a 59 meses e fatores associados no Município de Jordão, Estado do Acre, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):1008-1020. foi encontrada maior prevalência de anemia entre crianças cujas mães eram anêmicas. Entre famílias não indígenas tampouco existem informações de abrangência nacional, mas estudo realizado em Pernambuco apontou coexistência de 16,4% de mães anêmicas e prevalência de anemia de 34,4% entre seus filhos, havendo também associação positiva com condições de baixa renda, grande número de moradores e precariedade nos domicílios estudados3636 Miglioli TC, Brito AM, Lira PIC, Figueroa JN, Batista Filho M. Anemia no binômio mãe-filho no Estado de Pernambuco, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(9):1807-1820..
Entre os Baniwa, a distribuição da anemia em mulheres, segundo microrregiões, foi mais elevada em Canadá, onde mães e crianças partilham percentuais de anemia de 71,5% e 72,1%, respectivamente. Essa microrregião tem maior número de moradores (mediana de 8) por domicílio e quase a metade dos domicílios analisados (44,4%) se enquadra no pior tercil do índice de bens. Os indicadores socio sanitários da microrregião Canadá mostram-se globalmente mais comprometidos, quando comparados aos das demais. As variáveis selecionadas para o estudo não permitiram apontar razões mais detalhadas para explicar tais achados.
Para as crianças Baniwa < 60 meses, o déficit de peso-para-idade, com prevalência de 11,2%, é o dobro do percentual de 5,9% encontrado no I Inquérito para o conjunto da população infantil indígena do país55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52., porém, é um valor próximo ao reportado para crianças indígenas da região Norte (11,4%)3737 Horta BL, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Santos JV, Assis AMO, Lira PC, Coimbra Jr CE. Nutritional status of indigenous children: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Int J Equity Health 2013; 12:23.. Por outro lado, as crianças Baniwa apresentam prevalência de baixo peso até quatro vezes maior do que as crianças não indígenas11 Castro IRR, Anjos LAD, Lacerda EMA, Boccolini CS, Farias DR, Alves-Santos NH, Normando P, Freitas MB, Andrade PG, Bertoni N, Schincaglia RM, Berti TL, Carneiro LBV, Kac G. Nutrition transition in Brazilian children under 5 years old from 2006 to 2019. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00216622.. Esse valor percentual entre os Baniwa supera os achados entre crianças indígenas do Centro-Oeste, do Sul e do Nordeste3838 Ferreira AA, Welch JR, Santos RV, Gugelmin SA, Coimbra Jr CEA. Nutritional status and growth of indigenous Xavante children, Central Brazil. Nutr J 2012; 11(1):3.
39 Kühl AM, Corso ACT, Leite MS, Bastos JL. Perfil nutricional e fatores associados à ocorrência de desnutrição entre crianças indígenas Kaingáng da Terra Indígena de Mangueirinha, Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(2):409-420.-4040 Campos SBG, Menezes RCE, Oliveira MAA, Silva DAV, Longo-Silva G, Oliveira JS, Asakura L, Costa EC, Leal VS. Short stature in children of Karapotó ethnic background, São Sebastião, Alagoas, Brazil. Rev Paul Pediatr 2016; 34(2):197-203., entre as crianças Kaingang na região Sul (com 9,2%)3939 Kühl AM, Corso ACT, Leite MS, Bastos JL. Perfil nutricional e fatores associados à ocorrência de desnutrição entre crianças indígenas Kaingáng da Terra Indígena de Mangueirinha, Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(2):409-420. e as Suruí (8,5%), em Rondônia1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.. O déficit ponderal das crianças Baniwa é quase quatro vezes maior do que o encontrado na população infantil brasileira (2,9%) e na população infantil não indígena da região Norte com idade equivalente (2,6%), segundo a pesquisa nacional ENANI-201911 Castro IRR, Anjos LAD, Lacerda EMA, Boccolini CS, Farias DR, Alves-Santos NH, Normando P, Freitas MB, Andrade PG, Bertoni N, Schincaglia RM, Berti TL, Carneiro LBV, Kac G. Nutrition transition in Brazilian children under 5 years old from 2006 to 2019. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00216622..
O déficit da estatura-para-idade (52,5%) entre as crianças Baniwa supera em duas vezes o valor reportado para as crianças indígenas no Brasil (25,7%), além de superar a frequência reportada para a amostra da região Norte, segundo o I Inquérito (40,8%)3737 Horta BL, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Santos JV, Assis AMO, Lira PC, Coimbra Jr CE. Nutritional status of indigenous children: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Int J Equity Health 2013; 12:23.. A prevalência de desnutrição crônica nas crianças Baniwa supera os valores percentuais em comunidades indígenas nas regiões Norte e Centro-Oeste, como entre os Suruí (38,6%)1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388., os Xavante (29,9%)3838 Ferreira AA, Welch JR, Santos RV, Gugelmin SA, Coimbra Jr CEA. Nutritional status and growth of indigenous Xavante children, Central Brazil. Nutr J 2012; 11(1):3. e os Wari’ (45,8%)88 Escobar AL, Santos RV, Coimbra Jr CEA. Avaliação nutricional de crianças indígenas Pakaanóva (Wari'), Rondônia, Brasil. Rev Bras Saude Mater Infant 2003; 3(4):457-461.. Nas crianças não indígenas do Brasil, a prevalência de baixa estatura-para-idade é de 7,0%11 Castro IRR, Anjos LAD, Lacerda EMA, Boccolini CS, Farias DR, Alves-Santos NH, Normando P, Freitas MB, Andrade PG, Bertoni N, Schincaglia RM, Berti TL, Carneiro LBV, Kac G. Nutrition transition in Brazilian children under 5 years old from 2006 to 2019. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00216622..
As altas prevalências de anemia não diferem daquelas apontadas por outros estudos com crianças indígenas77 Ferreira AA, Santos RV, Souza JAM, Welch JR, Coimbra CEA. Anemia e níveis de hemoglobina em crianças indígenas Xavante, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(1):102-114.,1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.,4141 Leite MS, Cardoso AM, Coimbra CE, Welch JR, Gugelmin SA, Lira PCI, Horta BL, Santos RV, Escobar AL. Prevalence of anemia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Nutr J 2013; 12:69.. Trata-se de crianças que vivem em uma região com elevada mobilidade populacional, que sofre os impactos ambientais do garimpo predatório e da ocupação desordenada do espaço, com acesso insuficiente aos serviços de saúde e condições econômicas limitadas55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.,1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.,1212 Escobar AL, Coimbra CE Jr, Welch JR, Horta BL, Santos RV, Cardoso AM. Diarrhea and health inequity among Indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Public Health 2015; 15(1):191.,4242 Barreto CTG, Cardoso AM, Coimbra Jr CEA. Estado nutricional de crianças indígenas Guarani nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(3):657-662..
Um dos últimos inquéritos nacionais que avaliaram o estado nutricional de crianças não indígenas no Brasil sinalizou frequência de 10,1% de anemia entre as crianças < 60 meses no Brasil e de 17,0% na região Norte para mesma faixa etária22 Freitas MB, Castro IRR, Schincaglia RM, Carneiro LBV, Alves-Santos NH, Normando P, Andrade PG, Kac G. Characterization of micronutrient supplements use by Brazilian children 6-59 months of age: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00085222.. Tais resultados sugerem melhora global desse indicador de saúde no país, em que pese os achados entre comunidades mais pobres na Amazônia3535 Oliveira CSM, Cardoso MA, Araújo TS, Muniz PT. Anemia em crianças de 6 a 59 meses e fatores associados no Município de Jordão, Estado do Acre, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):1008-1020. apontarem prevalências elevadas de anemia, sugerindo a persistência de desigualdades intrarregionais e interétnicas, já que os dados disponíveis para a população indígena mostram prevalências ainda maiores desse agravo.
Na terra indígena dos Baniwa, mais da metade das crianças < 60 meses tem anemia (68,3%). Na distribuição por microrregiões, evidencia-se que em duas delas (Tunuí e Canadá) o percentual de crianças acometidas ultrapassa os 70%. São valores muito superiores aos 51,2% de crianças anêmicas encontradas no conjunto da população infantil indígena no Brasil e aproximado da prevalência de anemia na população indígena da região Norte (66,4%)4141 Leite MS, Cardoso AM, Coimbra CE, Welch JR, Gugelmin SA, Lira PCI, Horta BL, Santos RV, Escobar AL. Prevalence of anemia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Nutr J 2013; 12:69.. Os achados entre os Baniwa se aproximam dos resultados de outras pesquisas em comunidades indígenas específicas, com prevalências que ultrapassam 60% das crianças na mesma faixa etária na macrorregião Norte, como no caso dos Suruí1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.. Também vão ao encontro de achados entre indígenas do Centro Oeste (Kamaiurá4343 Mondini L, Canó EN, Fagundes U, Lima EES, Rodrigues D, Baruzzi RG. Condições de nutrição em crianças Kamaiurá: povo indígena do Alto Xingu, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2007; 10(1):39-47. e Terena44 ) e Nordeste77 Ferreira AA, Santos RV, Souza JAM, Welch JR, Coimbra CEA. Anemia e níveis de hemoglobina em crianças indígenas Xavante, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(1):102-114.,4545 Pereira JF, Oliveira MAA, Oliveira JS. Anemia em crianças indígenas da etnia Karapotó. Rev Bras Saude Mater Infant 2012; 12(4):375-382.. São índices muito superiores aos 40% que, segundo critérios internacionais adotados pela OMS1919 World Health Organization (WHO). Physical status:the use of and interpretation of anthropometry. Geneva: WHO; 1995., permitem enquadrar tais achados como grave problema de saúde pública.
Hospitalização por infecções respiratórias também são consideradas indicativos de baixa efetividade de ações de atenção primária1111 Cardoso AM, Horta BL, Santos RV, Escobar AL, Welch JR, Coimbra CE Jr. Prevalence of pneumonia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Int Health 2015; 7(6):412-9.. Entre as crianças indígenas do Norte, a proporção de internações por esse agravo foi de 54,4%, ao passo que 47,6% das internações de crianças indígenas, para o Brasil como um todo, tiveram a mesma causa1111 Cardoso AM, Horta BL, Santos RV, Escobar AL, Welch JR, Coimbra CE Jr. Prevalence of pneumonia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Int Health 2015; 7(6):412-9.. Esses valores superam o percentual de internação de crianças Baniwa por infecções respiratórias (35,2%), não sendo possível distinguir se tal diferença decorre de menor frequência desses agravos nas crianças da etnia ou do menor acesso à internação nessa terra indígena.
A hospitalização de crianças por diarreia foi da ordem de 45,1%. A diarreia é associada a condições precárias de saneamento4646 Caldas ADR, Nobre AA, Brickley E, Alexander N, Werneck GL, Farias YN, Garcia Barreto Ferrão CT, Tavares FG, Pantoja LDN, Duarte MCDL, Cardoso AM. How, what, and why: housing, water & sanitation and wealth patterns in a cross-sectional study of the Guarani Birth Cohort, the first Indigenous birth cohort in Brazil. Lancet Reg Health Am 2023; 21:100496. e considerada um agravo sensível a intervenções na atenção primária55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.,1212 Escobar AL, Coimbra CE Jr, Welch JR, Horta BL, Santos RV, Cardoso AM. Diarrhea and health inequity among Indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Public Health 2015; 15(1):191.,4747 Paiva RFPS, Souza MFP. Association between socioeconomic, health, and primary care conditions and hospital morbidity due to waterborne diseases in Brazil. Cad Saude Publica 2018; 34(1):e00017316.. Trata-se de percentual superior às internações pela mesma causa encontradas para o conjunto de crianças indígenas em território nacional (37,1%) e ligeiramente inferior ao encontrado entre indígenas da região Norte (48,4%), segundo o I Inquérito55 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13(1):52.,1010 Orellana JDY, Coimbra Jr CEA, Lourenço AEP, Santos RV. Estado nutricional e anemia em crianças Suruí, Amazônia, Brasil. J Pediatr 2006; 82(5):383-388.,1111 Cardoso AM, Horta BL, Santos RV, Escobar AL, Welch JR, Coimbra CE Jr. Prevalence of pneumonia and associated factors among indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. Int Health 2015; 7(6):412-9..
Considerações finais
O estudo reporta análises com representatividade para o conjunto de uma etnia, evidenciando situações de vulnerabilidade econômica, alimentar e sanitária que expressam comprometimento das condições de vida indígena no contexto amazônico e apontam para falta de interiorização das políticas públicas, limitação de oportunidades e profunda desigualdade em comparação com população não indígena.
A elevada prevalência de desnutrição crônica e anemia em crianças menores de 60 meses associadas a insegurança alimentar, falta de saneamento, insuficiência de renda e inefetiva atenção básica são evidenciadas pelo expressivo percentual de internações decorrentes de agravos sensíveis à atenção primária.
Doenças carenciais como anemia e desnutrição não devem ser vistas apenas do ponto de vista biológico, pois expressam desigualdades sociais e em saúde que incidem de modo profundo na população Baniwa, ainda que não se limitem a ela. Pelo contrário, são eventos disseminados entre as populações amazônicas indígenas e não indígenas.
Os resultados do estudo apontam para uma situação de alerta, que demanda o reconhecimento dos transtornos nutricionais como problema de saúde a ser priorizado pelas famílias e pelo subsistema de atenção à saúde indígena. Sua superação demanda o desenvolvimento de ações em diversos níveis, não se restringindo aos serviços de saúde, pois sustentabilidade ambiental, segurança alimentar e acesso a renda são elementos de ordem intersetorial.
Adicionalmente, deve-se relembrar que o estudo foi conduzido antes que se percebesse de forma aguda a influência da mudança climática global sobre o regime de cheias dos rios e, consequentemente, sobre o suprimento de alimentos. Os recentes acontecimentos relativos às estiagens na Amazônia demandam a intensificação de ações mitigadoras das vulnerabilidades aqui descritas.
Agradecimentos
Agradecemos a CEA Coimbra Jr. e MS Leite, que contribuíram no processo de construção da proposta de estudo e das versões preliminares do manuscrito. À FOIRN, ao DSEI-ARN, à FAPEAM e ao CNPq.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 - Data do Fascículo
Dez 2024
Histórico
- Recebido
15 Set 2023 - Aceito
29 Fev 2024 - Publicado
25 Abr 2024