Resumos
Passados dez anos da implementação do apoio matricial nas redes de saúde por meio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, ainda sente-se a falta de dados consistentes quanto à consolidação e efetividade desse arranjo. Nesse sentido, este estudo teve como objetivo revisar a bibliografia nacional dos últimos dez anos a fim de identificar os impasses e desafios vivenciados no apoio matricial em saúde mental na Atenção Primária, classificando-os a partir de uma reconstrução teórico-conceitual e fazendo uma articulação destes com os desafios pontuados em congêneres internacionais do apoio matricial. Entre os principais pontos levantados pelo estudo, destacou-se a necessidade de delineamentos claros para prática de matriciamento; investimento maciço em formação e capacitação dos profissionais; e criação de espaços institucionalizados com encontros sistemáticos dos profissionais para discussão dos casos e avaliação conjunta do andamento das atividades.
Apoio matricial; Saúde mental; Atenção primária à saúde
Ten years on from the introduction of matrix support in health networks through the creation of Family Health Support Centers, there is still a lack of consistent data to measure the success of consolidation and effectiveness of this arrangement. With this in mind, we conducted a literature review of national articles produced over the last ten years to identify the bottlenecks and challenges faced by matrix support in mental health in Primary Care. The problems were classified using a theoretical and conceptual reconstruction and drawing on similar experiences with matrix support in other countries. The following key points emerged from the review: the need to provide clear guidelines for matrix support; the need for major investment in training and capacity building; and the need to create institutionalized spaces to foster systematic communication between professionals to discuss cases and promote joint evaluation of the progress of activities.
Matrix support; Mental health; Primary healthcare
Transcurridos diez años desde la implementación del apoyo matricial en las redes de salud por medio de los Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia, todavía no hay datos consistentes en lo que se refiere a la consolidación y efectividad de ese arreglo. En ese sentido, este estudio tuvo el objetivo de revisar la bibliografía nacional de los últimos diez años con el objetivo de identificar los impases y desafíos vividos en el apoyo matricial en salud mental en la Atención Primaria, clasificándolos a partir de una reconstrucción teórico-conceptual y haciendo una articulación de ellos con los desafíos puntuados en congéneres internacionales del apoyo matricial. Entre los principales puntos encontrados por el estudio se destacó la necesidad de delineamientos claros para la práctica matricial, inversión maciza en formación y capacitación de los profesionales y creación de espacios institucionalizados con encuentro sistemático de los profesionales para discusión de los casos y evaluación conjunta del curso de las actividades.
Apoyo matricial; Salud mental; Atención primaria de la salud
Introdução
A provisão de cuidados de qualidade aos usuários com problemas de saúde mental constitui um dos grandes desafios para os sistemas de saúde em todo o mundo. Aspectos como taxas de mortalidade duas a três vezes maiores em relação à população geral e uma expectativa de vida reduzida entre dez e trinta anos 11. Cook JA, Razzano LA, Swarbrick MA, Jonikas JA, Yost C, Burke L, et al. Health risks and changes in self-efficacy following community health screening of adults with serious mental illnesses. PloS One. 2015; 10(4):e0123552. levaram a Organização Mundial da Saúde a pontuar a superação dessas disparidades como um dos desafios do milênio 22. Organização Mundial da Saúde. MhGAP intervention guide for mental, neurological and substance use disorders in non-specialized health settings: Mental Health Gap Action Programme (mhGAP). Genebra: OMS; 2010. .
Entre os fatores contributivos para o estabelecimento desse cenário, destacam-se a baixa integração das redes de saúde e a falta de profissionais preparados para providenciar cuidados adequados em saúde mental na Atenção Primária 33. Thornicroft G, Tansella M. What are the arguments for community-based mental health care? Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2003.,44. Paulon S, Neves R. Saúde mental na atenção básica, a territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina; 2013. . Como desdobramentos desse cenário, há uma baixa capacidade de identificação e manejo dos casos nos níveis primários de atenção, sobrecarga dos serviços especializados, e consequentemente, dificuldade de acesso aos serviços de saúde mental em tempo oportuno 55. Onocko-Campos RT, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, et al. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cienc Saude Colet. 2011; 16(12):4643-52.
6. Onocko-Campos RT, Campos GWS, Ferrer AL, Corrêa CRS, Madureira PR, Gama CAP, et al. Avaliação de estratégias inovadoras na organização da atenção primária à saúde. Rev Saude Publica. 2012; 46(1):43-50.
7. Hirdes A. A perspectiva dos profissionais da atenção primária à saúde sobre o apoio matricial em saúde mental. Cienc Saude Colet. 2015; 20(2):371-82.-88. Athié K, Menezes AL, Silva AM, Campos M, Delgado PG, Fortes S, et al. Perceptions of health managers and professionals about mental health and primary care integration in Rio de Janeiro: a mixed methods study. BMC Health Serv Res. 2016; 30(1):532. .
Ao redor do mundo, uma das estratégias utilizadas a fim de superar esse desafio é a implementação de dispositivos de integração de rede que visem fomentar a participação conjunta entre profissionais de Atenção Primária e especialistas. Destacam-se iniciativas realizadas em países como Austrália e Canadá, tais como cuidado compartilhado (shared care) e cuidado colaborativo (collaborative care) 99. Bower P, Gilbody S, Richards D, Fletcher J, Sutton A. Collaborative care for depression in primary care. Making sense of a complex intervention: systematic review and meta-regression. Br J Psychiatry. 2006; 189:484-93.,1010. Smith SM, Allwright S, O’Dowd T. Effectiveness of shared care across the interface between primary and specialty care in chronic disease management. Cochrane Database Syst Rev. 2007; (3):CD004910. .
No Brasil, como congênere dessas iniciativas, surge a proposta de apoio matricial, que visa ampliar as possibilidades de um cuidado integral e da integração dialógica entre distintas especialidades e profissões. Trata-se de um modelo de intervenção pedagógico-terapêutica que visa produzir e estimular padrões de relação que perpassem todos trabalhadores e usuários, favorecendo a troca de informações e a ampliação da corresponsabilização pelo usuário 1111. Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-403. . Destaca-se ainda a atuação das equipes de apoio matricial como uma retaguarda especializada de assistência, evitando, dessa forma, os encaminhamentos desnecessários a outros níveis de atendimento e aumentando a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe de referência.
Ressalta-se que essa estratégia de cogestão para a organização do trabalho interprofissional foi formulada no início da década de 1990 e passou a ser implementada por iniciativa dos profissionais da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) de Campinas-SP na área da Saúde Mental. Tal aspecto talvez seja um dos grandes contribuidores para a consolidação de certa tradição do apoio matricial nessa área, embora, com o decorrer dos anos, tenha havido uma expansão para outras áreas de saber especializado como a Reabilitação Física, a Traumatologia, a Dermatologia, entre outras 1212. Castro CP, Oliveira MM, Campos GWS. Apoio matricial no SUS Campinas: análise da consolidação de uma prática interprofissional na rede de saúde. Cienc Saude Colet. 2016; 21(5):1625-36. .
Como principal marco do processo de incorporação do apoio matricial nas redes de saúde, destaca-se a proposta ministerial de criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), por meio da portaria no 154, de 24 de janeiro de 2008 1313. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria 154, de 24 de Janeiro de 2008. Dispõe sobre a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Diário Oficial da União. 4 Mar 2008. . A esses serviços, conferiu-se o papel de retaguarda clínico-assistencial e apoio técnico-pedagógico, institucionalizando assim o apoio matricial como ferramenta de trabalho na Saúde da Família.
Passados dez anos da implementação dos Nasf, cabe ressaltar que o número de serviços desse tipo aumentou exponencialmente. Enquanto existiam três Nasf no ano de 2008, de acordo com os dados do departamento de Atenção Básica (AB) do Ministério da Saúde, em outubro de 2018 esse número já chegava a 5090 1414. Brasil. Secretaria de Tecnologia da Informação. Distribuição dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF. Brasília: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; 2018 [citado 13 Out 2018]. Disponível em: http://dados.gov.br/dataset/nasf_12
http://dados.gov.br/dataset/nasf_12... . Dessa forma, hoje o Nasf representa a maior aposta de um dispositivo de integração de rede, capaz de fomentar a participação conjunta entre profissionais de Atenção Básica e especialistas de Saúde Mental no país.
Contudo, parece haver ainda algumas limitações no que tange a consolidação e efetividade desses serviços como mediadores do atendimento em Saúde Mental na Atenção Básica, havendo necessidade de avaliar quais são os impasses e desafios que têm dificultado esses processos.
No ano anterior à promulgação da portaria no 154/2008, Campos e Domitti 1515. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. publicaram uma reconstrução teórico-conceitual da metodologia de gestão do trabalho em saúde baseada em equipes de referência e apoio matricial como base para apoiar pesquisas que avaliassem limitações e potências dessa modalidade organizacional. Dentre os desafios antecipados pelos autores, destacavam-se obstáculos estruturais, éticos, políticos, culturais, epistemológicos e subjetivos ao desenvolvimento desse tipo de trabalho integrado em saúde.
Nesse sentido, este estudo teve como objetivo revisar a bibliografia nacional dos últimos dez anos a fim de identificar os impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em Saúde Mental na Atenção Primária por meio dos Nasf, classificando-os a partir da reconstrução teórico-conceitual realizada por Campos e Domitti 1515. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. e fazendo uma articulação destes com os desafios pontuados em congêneres internacionais do apoio matricial.
Metodologia
A fim de identificar os impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em Saúde Mental na Atenção Básica por meio dos Nasf, foi realizada uma revisão bibliográfica integrativa. A busca visou captar estudos que tivessem trabalhado com os atores implicados nas ações desses serviços – usuários, trabalhadores e gestores – e foi orientada pela seguinte questão norteadora: quais os impasses e desafios vivenciados no apoio matricial em Saúde Mental?
A busca ocorreu no mês de agosto de 2018 e rastreou estudos publicados nos últimos dez anos – 2008 a 2018 – realizados no contexto brasileiro. As bases de dados utilizadas para buscar estudos foram PubMed (Publisher Medline) e SciELO.org (Scientific Electronic Library Online). Os termos utilizados para a busca foram: Atenção Primária à Saúde; Programa de Saúde da Família; Estratégia de Saúde da Família; Nasf e Apoio Matricial. Para a busca, todos os termos foram traduzidos para língua inglesa, a saber: Primary Health Care; Family Health Program; Family Health Strategy; Nasf e Matrix Support. Os filtros considerados na busca foram: “estudos publicados nos últimos dez anos” e “publicados em língua inglesa”, “portuguesa” ou “espanhola”.
Dado o critério de inclusão “estudos conduzidos com usuários, trabalhadores ou gestores dos serviços da Atenção Primária ou Nasf”, todos os artigos rastreados foram avaliados primeiramente por seus títulos e resumos. Nessa etapa, foram excluídos os estudos que não se encaixavam no escopo desta revisão ou se constituíam como revisões de literatura e reflexões teóricas. Todos os artigos que atenderam os critérios de inclusão ou não apresentavam elementos suficientes para determinar sua exclusão foram obtidos na íntegra e avaliados de acordo com o seguinte critério de exclusão: Não pontuar quais os impasses e/ou desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em Saúde Mental na Atenção Primária por meio dos Nasf.
Optou-se por realizar a categorização dos desafios e impasses identificados nos estudos rastreados de acordo com os tópicos sugeridos por Campos e Domitti 1515. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. em sua reconstrução teórico-conceitual da metodologia de gestão do trabalho em saúde baseada em equipes de referência e apoio matricial, a saber: obstáculos estruturais, éticos, políticos, culturais, epistemológicos e subjetivos.
Para essa categorização, os autores se orientaram pelo modelo de análise de conteúdo categorial temático de Minayo 1616. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5a ed. São Paulo: Hucitec, Abrasco; 1998. . Ou seja, a análise foi conduzida em etapas, sendo a primeira relacionada às operações de desmembramento dos textos em unidades e em categorias e a segunda relacionada ao reagrupamento analítico por meio da organização das mensagens a partir dos elementos repartidos. Para esse segundo momento, cada item foi discutido a fim de estabelecer um consenso quanto à sua alocação nos tópicos propostos.
Os aspectos éticos foram atendidos neste estudo, na medida em que as informações e as ideias dos autores foram respeitadas, assegurando-se autoria e citação nas referências.
Resultados
Um total de 595 estudos foram rastreados nas buscas, sendo 233 da SciELO e 362 da PubMed. Destes, 493 estudos foram descartados por estarem fora da temática proposta por essa revisão. Outros 43 estudos foram descartados por estarem duplicados, sete por se tratarem de revisões de literatura, cinco por serem reflexões teóricas e dois por serem resumos de tese. Dessa forma, foram obtidos 45 estudos para leitura na íntegra, dos quais sete foram descartados por não responderem a questão norteadora da busca, restando 38 estudos que foram incluídos nesta revisão. A figura 1 apresenta por meio de fluxograma o percurso para seleção dos artigos.
Os estudos selecionados podem ser observados no quadro 1 , no qual estão caracterizados por seus títulos, autores, local de realização, população estudada, tipo de abordagem do estudo e ano de publicação, além de código próprio atribuído a fim de facilitar sua identificação no agrupamento por categorias.
Relação dos estudos selecionados de acordo com seus títulos, autores, local de realização, população, tipo de abordagem e ano de publicação
Como pode ser observado no quadro 1 , os estudos rastreados se caracterizam por terem sido publicados majoritariamente no ano de 2012 (21% – n=8), 2013 (15,8% – n=6), 2011 (13,2% – n=5) e 2016 (13,2% – n=5). Tratavam-se em sua grande maioria de estudos qualitativos (92,1% – n=35), havendo somente três (8%) estudos mistos e nenhum estudo quantitativo. Envolveram de dois a 137 participantes, havendo 16 (42%) estudos com até dez participantes, 16 estudos (42%) com 11 a trinta participantes e seis (15,8%) estudos com mais de trinta participantes. A realização dos estudos se deu principalmente na região sudeste do país (50% – n=19), seguida da região nordeste (31,6% – n=12), sul (15,8% – n=6) e centro-oeste (2,6% – n=1). Nenhum dos estudos havia sido conduzido na região norte.
Por meio da leitura dos estudos, foram identificados 25 itens relativos a impasses ou desafios para consolidação e efetividade do Apoio Matricial em Saúde Mental na Atenção Básica. Desses itens, nove foram alocados na categoria referente a “obstáculos estruturais”, constituindo esta como a categoria com maior número de itens identificados. Destaca-se ainda a categoria “obstáculos subjetivos e culturais” com cinco itens, seguida das categorias “obstáculos decorrentes do excesso de demanda e da carência de recursos” e “obstáculos epistemológicos”, com quatro itens cada, e, por fim, a categoria “obstáculos políticos e de comunicação”, com três itens. Cada um dos impasses/desafios identificados por meio dos estudos de acordo com sua alocação nas categorias adotadas está disposto na tabela 1 .
Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial na atenção básica identificados nos estudos selecionados
Discussão
As propostas para o estabelecimento de uma maior integração entre os serviços especializados e as equipes de atenção primária constituem uma tendência em diversos países do ocidente 5151. Oliveira MM, Campos GWS. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Cienc Saude Colet. 2015; 20(1):229-38. . Além de países como Reino Unido, Irlanda e Espanha, cabe destaque para o contexto canadense e australiano, onde são registradas iniciativas voltadas especialmente para qualificação do cuidado em saúde mental 5252. Vingilis E, Paquete-Warren J, Kates N, Crustolo A, Greenslade J, Newman S. Descriptive and process evaluation of a shared primary care program. Internet J Allied Health Sci Pract. 2007; 5(4):1-10.,5353. Kelly BJ, Perkins DA, Fuller JD, Parker SM. Shared care in mental illness: a rapid review to inform implementation. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:31. .
Nesses contextos, o cuidado compartilhado/colaborativo é definido pela participação conjunta de profissionais da atenção primária e especialistas no planejamento dos projetos terapêuticos. Suas práticas são mediadas por arranjos organizacionais que visam ao estabelecimento do papel de coordenação dos casos pela Atenção Primária, a introdução de mecanismos para vinculação entre os profissionais e o desenvolvimento de estratégias para coletar e compartilhar informação sobre o progresso dos usuários 5151. Oliveira MM, Campos GWS. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Cienc Saude Colet. 2015; 20(1):229-38. .
A rigor, a proposta de apoio matricial brasileira vai além e incorpora ainda o compromisso com a construção de relações democráticas a partir da cogestão e da construção compartilhada do cuidado. Nesse sentido, é previsto que os serviços facilitem as relações comunicativas e dialógicas entre os profissionais de saúde e, sobretudo, entre estes e os usuários, para que os últimos possam participar ativamente da elaboração dos seus projetos terapêuticos 5151. Oliveira MM, Campos GWS. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Cienc Saude Colet. 2015; 20(1):229-38. .
Contudo, tanto no contexto brasileiro quanto no internacional, parece não estarem claros quais seriam os aspectos imprescindíveis para a efetividade desses arranjos, ocasionando uma grande variedade de conteúdo e intensidade destes. Embora essas variações tenham relação com o aspecto de plasticidade, essencial para adaptação da proposta em diferentes cenários, os resultados deste estudo apontam para uma falta de clareza dos profissionais quanto ao papel dos serviços aos quais estão vinculados e quanto à sua atuação em tais serviços.
Ressalta-se que, dos 38 estudos selecionados, 12 traziam esse aspecto em seus resultados e, ao contrário do que se poderia supor, não se tratam apenas de estudos relativos ao período mais inicial da proposta, mas sim estudos pulverizados ao longo dos anos, cujas publicações abrangem desde o ano de 2009 a 2017. Dessa forma, ao levar em conta os dez anos do estabelecimento do Nasf como vetor do apoio matricial nas redes de saúde, evidencia-se a necessidade avaliar esse processo, buscando estabelecer prioridades para as agendas de pesquisa e intervenção a partir desses serviços.
Nesse sentido, as próximas sessões discutem os impasses e desafios para a consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental de acordo com sua categoria, a saber: obstáculos estruturais, obstáculos subjetivos e culturais, obstáculos decorrentes do excesso de demanda e da carência de recursos, obstáculos epistemológicos e obstáculos políticos e de comunicação.
Obstáculos estruturais
Para além da falta de clareza dos profissionais quanto ao papel dos serviços e quanto à sua atuação, do ponto de vista estrutural, cabe ainda destacar a falta de uniformidade na estruturação dos serviços, citada por cinco dos estudos rastreados. Ressalta-se que não se tratam apenas de desigualdades regionais, já que, em alguns casos, essas desigualdades são observadas dentro do mesmo município.
Embora a proposta de apoio matricial preveja certa plasticidade que permita aos serviços se adequarem às disparidades de cada território, parece não ser essa a questão que permeia as desigualdades no desempenho da proposta. Cabe destacar que a negligência da territorialização foi citada por 11 dos estudos rastreados.
Nesse sentido, assim como no estudo de Starfield 5454. Starfield B. William Pickles lecture. Primary and specialty care interfaces: the imperative of disease continuity. Br J Gen Pract. 2003; 53(494):723-9. conduzido no Reino Unido, os dados levantados chamam atenção para a necessidade de se esclarecer o papel dos profissionais – especialistas e generalistas – dentro da proposta. Semelhante ao encontrado neste estudo, Starfield 5454. Starfield B. William Pickles lecture. Primary and specialty care interfaces: the imperative of disease continuity. Br J Gen Pract. 2003; 53(494):723-9. indica que a inserção dos especialistas como suporte para atenção primária acontecia de forma variável, abrangendo desde consultas breves e intervenções pontuais à adoção total dos cuidados de alguns usuários.
Além da definição clara dos papéis de cada serviço dentro da proposta, é imprescindível que sua operacionalização seja viabilizada. Nesse sentido, destaca-se que o apoio matricial pressupõe o compartilhamento dos casos e a corresponsabilização pelo cuidado dos usuários. Contudo, a fragmentação da rede com baixa integração ou burocratização do fluxo entre os serviços, citada por 11 dos estudos rastreados, apresenta-se como uma dificuldade para o alcance desses pressupostos. Como resultado deste cenário, tem-se, além de uma perpetuação da lógica do encaminhamento, a falta de continuidade das ações entre os níveis de atenção, evidenciada por 18 dos estudos rastreados.
Por fim, cabe destacar que tanto a proposta de territorialização quanto a demanda de corresponsabilização pelo cuidado dos usuários só pode ser viabilizada pelo estabelecimento de vínculo entre os trabalhadores e o local onde atuam e a sua clientela. Contudo, os resultados deste estudo indicam a persistência de uma alta rotatividade de profissionais vinculados tanto aos serviços de matriciamento quanto aos serviços de Atenção Primária. Esse aspecto esteve presente em nove dos estudos rastreados e diz respeito a uma realidade incompatível com a proposta de matriciamento. A necessidade de um plano claro e definido para contratação dos profissionais, com previsão de estratégias de capacitação e fixação, já foi apontada na perspectiva do cuidado compartilhado em saúde mental na Austrália. Kelly et al 5353. Kelly BJ, Perkins DA, Fuller JD, Parker SM. Shared care in mental illness: a rapid review to inform implementation. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:31. defendem que esse é um dos “ingredientes principais” para a efetivação desse tipo de proposta.
Obstáculos subjetivos e culturais
Outro aspecto importante levantado por Kelly et al 5353. Kelly BJ, Perkins DA, Fuller JD, Parker SM. Shared care in mental illness: a rapid review to inform implementation. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:31. , no que diz respeito à necessidade de um plano claro e definido para contratação dos profissionais, tem relação com a aptidão e disposição desses profissionais para o trabalho em saúde mental. Ressalta-se que a resistência por parte de alguns profissionais para o cuidado ao usuário com transtornos mentais e necessidades em saúde mental ainda é muito presente no país. Embora nas últimas décadas tenha-se avançado muito do ponto de vista político, poucas ações foram direcionadas para fora dos serviços no que diz respeito ao enfrentamento do estigma vivenciado por essa população 5555. Nunes M, Torrenté M. Estigma e violências no trato com a loucura: narrativas de centros de atenção psicossocial, Bahia e Sergipe. Rev Saude Publica. 2009; 43 Suppl 1:101-8. .
Para além dessa realidade, não se pode deixar de levar em conta que os indivíduos possuem aspirações profissionais próprias e maior identificação com determinadas áreas de sua profissão. Nesse sentido, é importante que se estabeleçam processos seletivos claros, direcionados e sensíveis à captação de profissionais qualificados para trabalho em saúde mental em detrimento aos processos que vêm comumente acontecendo no país. São frequentes os editais que preveem a contratação de trabalhadores baseados apenas em suas categorias profissionais para subsequente alocação em algum serviço, à revelia das aptidões do candidato.
O desfecho dessa perspectiva pode ser observado nos resultados deste estudo, uma vez que 11 dos estudos rastreados citaram a dificuldade ou negativa dos profissionais em lidar com as questões relacionadas à saúde mental. Ressalta-se que não se trata uma realidade restrita aos serviços da atenção primária, havendo relatos mesmo entre profissionais de serviços especializados.
Outro aspecto que pode ter uma relação com essa perspectiva é a perpetuação de um tratamento médico e/ou fármaco-centrado. Embora dois estudos relatem que os próprios usuários muitas vezes apresentam uma demanda fármaco-dependente, 14 estudos pontuaram o predomínio de práticas medicalizantes tanto nos serviços de atenção primária quanto nos serviços especializados.
Por fim, cabe destacar como um importante obstáculo subjetivo o distanciamento e/ou desprestígio entre as categorias profissionais. Este obstáculo foi recorrente em 12 dos estudos rastreados e se reflete em diversas situações, cabendo destaque para aquelas em que determinadas categorias profissionais, como os agentes comunitários de saúde, são desconsideradas nas discussões dos casos e em situações em que o matriciamento é visto como uma atividade secundária e de menor importância. Neste último caso, são recorrentes os relatos de esvaziamento das reuniões de matriciamento e ausência de categorias específicas, em especial a médica.
Nesse sentido, cabe destacar que, na meta-análise realizada por Foy et al 5656. Foy R, Hempel S, Rubenstein L, Suttorp M, Seelig M, Shanman R, et al. Meta-analysis: effect of interactive communication between collaborating primary care physicians and specialists. Ann Intern Med. 2010; 152(4):247-58. sobre o cuidado compartilhado, a comunicação interprofissional emergiu como um importante fator associado à efetividade do modelo. Para os autores, é importante que as equipes criem coordenadas organizacionais a fim de superar as dificuldades para realização de encontros, manifestadas, por exemplo, pela falta de tempo nas agendas. Dessa forma, seria garantida a possibilidade de comunicação interativa entre os profissionais e sua consequente aproximação.
Obstáculos decorrentes do excesso de demanda e da carência de recursos
Como pontuado anteriormente, é imprescindível que os serviços sejam viáveis à execução da proposta de apoio matricial para que ele possa de fato ser efetivado. Isso inclui a garantia de recursos mínimos para operacionalização da proposta, como locais adequados para as reuniões de equipes e atendimento dos usuários, número adequado de profissionais e compatibilidade das demandas de atendimento e das atividades-meio com a capacidade de cada equipe.
Apesar de uma suposta clareza quanto a essas questões, foram recorrentes nos estudos rastreados aspectos que vão na contramão desse entendimento. Destaca-se em especial o excesso de demandas que têm sobrecarregado os serviços, tanto de atenção primária quanto especializados, tendo sido citado em oito dos estudos rastreados.
Obstáculos epistemológicos
Os resultados deste estudo indicaram uma forte prevalência de obstáculos epistemológicos para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental. Dentre esses obstáculos, destacam-se dois fatores que são relacionados às condições estruturantes da proposta: a falta de delineamentos claros sobre as estratégias para prática do matriciamento; coordenação dos casos e seguimento longitudinal; e a falta de conhecimentos e/ou habilidades e/ou formação específicas para o desenvolvimento do trabalho a ser realizado. O primeiro foi citado por oito dos estudos rastreados e o segundo, por vinte estudos.
Dada a persistência desses obstáculos, não é inesperado que uma série de outras fragilidades e desdobramentos negativos esteja presente. Destaca-se que a definição clara do arranjo e a formação para sua operacionalização são recorrentes nos estudos internacionais que tratam de metodologias semelhantes, seja na perspectiva do cuidado colaborativo ou compartilhado.
Kelly et al 5353. Kelly BJ, Perkins DA, Fuller JD, Parker SM. Shared care in mental illness: a rapid review to inform implementation. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:31. , por exemplo, destaca como necessidade para efetivação da proposta de cuidado compartilhado em saúde mental na Austrália o estabelecimento de um acordo para a definição do modelo clínico e do monitoramento dos pacientes. Uma perspectiva semelhante é apontada por Foy et al 5656. Foy R, Hempel S, Rubenstein L, Suttorp M, Seelig M, Shanman R, et al. Meta-analysis: effect of interactive communication between collaborating primary care physicians and specialists. Ann Intern Med. 2010; 152(4):247-58. . Para esses autores, é indispensável que se pactuem as coordenadas organizacionais para as equipes que trabalham nessa lógica. Nesse sentido, Starfield 5454. Starfield B. William Pickles lecture. Primary and specialty care interfaces: the imperative of disease continuity. Br J Gen Pract. 2003; 53(494):723-9. aponta ainda para a demanda de definir claramente o papel dos profissionais, generalistas e especialistas, no arranjo.
Ressalta-se que o delineamento claro das estratégias de matriciamento e do papel dos profissionais é o primeiro passo para orientar as ações de formação e capacitação dos profissionais. Nesse sentido, para além de investimentos maciços na formação dos profissionais da saúde que trabalharão segundo a lógica desse cuidado, incluindo mudanças nos currículos de graduação e de residência, é necessário que se estabeleçam ações de educação permanente para capacitação de profissionais já inseridos nos serviços.
Conforme apontado por Kates e Craven 5757. Kates N, Craven M, Collaborative Working Group of the College of Family Physicians of Canada, Canadian Psychiatric Association. Shared mental health care. Update from the collaborative working group of the college of family physicians of Canada and the Canadian Psychiatric Association. Can Fam Physician. 2002; 48:936. ao avaliarem a perspectiva do cuidado compartilhado em saúde mental no Canadá, os gestores em geral têm começado a aceitar os princípios dessa lógica de atenção. Contudo, somente a partir de uma aproximação estratégica com os profissionais da ponta questões como a perpetuação do entendimento biológico sobre o processo saúde-doença em detrimento do olhar biopsicossocial (citada por 14 dos estudos rastreados) e a compartimentalização das ações de saúde em especialidades (citada por 16 dos estudos rastreados) serão superadas.
Obstáculos políticos e de comunicação
A aproximação dos profissionais diretamente ligados à assistência dos usuários com ofertas sistemáticas de capacitação e supervisão, além de potente reorientadora das práticas, é estratégica para sustentabilidade da proposta. Ressalta-se que um ponto importante a ser considerado é a instabilidade do contexto político sanitário brasileiro, historicamente associada à descontinuidade administrativa e aos dilemas, práticas e contradições que surgem na administração pública a cada mudança de governo e troca de dirigentes 5858. Nogueira FA. Continuidade e descontinuidade administrativa em governos locais: fatores que sustentam a ação pública ao longo dos anos [tese]. São Paulo: Escola de Administração de Empresas de São Paulo; 2006. .
Destaca-se que a suscetibilidade e variação das condições diretivas e dos investimentos conforme a decisão política dos atores municipais foi um aspecto evidenciado nos resultados deste estudo. Da mesma forma, surgiram ainda as questões relativas ao comissionamento dos cargos de gestão, aspecto que dificulta o seguimento das ações por meio da alternância de governos e, em alguns casos, atribui o papel de gestão do arranjo a indivíduos sem competência técnica para tal. Indicativos dessa realidade foram evidenciados por seis dos estudos rastreados.
Cabe destacar ainda os problemas relativos à comunicação, em alguns casos relacionados aos modelos verticalizados de gestão (conforme citado por seis dos estudos rastreados), e, em outros, relacionados à deficiência ou inexistência de serviços de contrarreferência (conforme citado por oito dos estudos rastreados). Em ambos os casos, tratam-se de situações que inviabilizam a efetividade da proposta, uma vez que, assim como pontuado por Vingilis et al. 5252. Vingilis E, Paquete-Warren J, Kates N, Crustolo A, Greenslade J, Newman S. Descriptive and process evaluation of a shared primary care program. Internet J Allied Health Sci Pract. 2007; 5(4):1-10. ao avaliar os processos de um programa de cuidado colaborativo no Canadá, a comunicação é um ponto-chave para a construção conjunta dos projetos terapêuticos, bem como para o estabelecimento de soluções aos entraves na operacionalização do arranjo.
Vingilis et al 5252. Vingilis E, Paquete-Warren J, Kates N, Crustolo A, Greenslade J, Newman S. Descriptive and process evaluation of a shared primary care program. Internet J Allied Health Sci Pract. 2007; 5(4):1-10. advogam que um dos elementos para o sucesso do cuidado colaborativo seria o que os trabalhadores acessados chamam de “política de portas abertas”. Nesse modelo, todos os profissionais sabem onde os generalistas e especialistas estão alocados e têm liberdade para procurá-los nos momentos em que forem mais oportunos para o tratamento de algum caso. Já Kelly et al 5353. Kelly BJ, Perkins DA, Fuller JD, Parker SM. Shared care in mental illness: a rapid review to inform implementation. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:31. , ao tratarem do cuidado compartilhado em saúde mental na Austrália, citam a necessidade da provisão de encontros sistemáticos para revisão dos casos como um dos elementos para esse tipo de trabalho. Nesse sentido, independente do tipo de logística adotada, fica evidente a importância de superar as dificuldades de comunicação a fim de alcançar a efetividade desse tipo de arranjo.
Considerações finais
Passados dez anos da promulgação da portaria que institui o apoio matricial nas redes de saúde por meio do Nasf, fica evidente o crescimento das produções acerca da temática. Contudo, os resultados deste estudo sugerem que ainda é preciso avançar nos estudos de avaliação dessa política, especialmente a partir dos estudos quantitativos e mistos. Para isso, recomenda-se que os pesquisadores busquem definir um quadro comum de indicadores para avaliação da proposta, bem como lançar mão de desenhos cada vez mais participativos, tanto em amplitude quanto em profundidade.
Destaca-se que os impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental encontrados neste estudo se relacionam, em sua grande maioria, com resultados encontrados nos estudos internacionais acerca dos congêneres dessa proposta.
Nesse sentido, entre os aspectos que precisam ser levados em conta na qualificação dos serviços já implementados, bem como na implementação de novos serviços, sugere-se: a) Definição de delineamentos para prática de matriciamento, coordenação dos casos e seguimento longitudinal com atribuição clara do papel dos profissionais da atenção primária e especialistas; b) Investimento maciço em formação e capacitação dos profissionais, especialmente aqueles envolvidos diretamente na prestação dos cuidados, para atuar na lógica do compartilhamento e corresponsabilização dos casos; e c) criação de espaços institucionalizados com encontro sistemático dos profissionais para discussão dos casos e avaliação conjunta do andamento das atividades.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo financiamento parcial desta pesquisa por meio de bolsa de estudos concedida ao autor principal deste artigo – Código de financiamento 001.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Jun 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
08 Nov 2018 - Aceito
08 Fev 2019