A universidade como reflexo e agente transformador da sociedade: a contradição movendo a história

The university as a reflection and transformative agent of society: the contradiction moving history

La universidad como reflejo y agente transformador de la sociedad: la contradicción que mueve la historia

Deíse Camargo Maito Maria Paula Panúncio-Pinto Fabiana Cristina Severi Elisabeth Meloni Vieira Sobre os autores

A leitura das excelentes contribuições oferecidas pelos textos de Alejandra López, Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira e Stela Meneghel nos permitiu identificar aspectos comuns presentes nos três, com importantes contribuições à compreensão do fenômeno da violência de gênero na universidade e à adoção de ações e diretrizes para seu efetivo enfrentamento.

Em primeiro lugar, cabe destacar o momento atual da sociedade brasileira, que se reflete no cotidiano da universidade. Conforme ponderam nossas interlocutoras, a universidade não é um mundo à parte, não está imune às discriminações sociais e, como instituição social, exprime o modo de funcionamento da sociedade. Como recorte da sociedade, compartilha da mesma cultura e sofre as influências da ideologia dominante. A violência contra mulheres é uma violência estrutural, que se expressa, produz e reproduz transversalmente na sociedade em todos os setores, independentemente de condições socioeconômicas e educacionais. É assim que ela se manifesta na universidade, atingindo estudantes, professoras e funcionárias e afetando suas saúdes, dignidades e vidas de forma geral, contribuindo para a manutenção das iniquidades que afetam as mulheres e outros grupos sociais subalternizados.

Ao olharmos para a história recente do nosso país, percebemos que a universidade brasileira iniciou o processo de rompimento com seu modelo elitista de acesso. Tal processo teve início nos primeiros anos da primeira década deste século, em algumas universidades estaduais do Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. A aprovação da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 201211. Brasil. Presidência da República. Lei n° 12.711, de 29 de Agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União. 30 Ago 2012. , veio garantir a reserva de vagas a estudantes oriundos de escolas públicas, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Entretanto, apenas em 2017 ocorreu a adesão ao sistema de reserva de vagas para negros e indígenas22. Araujo DP. “Inclusão com mérito” e as facetas do racismo institucional nas universidades estaduais de São Paulo. Rev Direito Prax. 2019; 10(3):2182-213. na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP). Temos aqui o segundo ponto que merece destaque.

Conforme apontam nossas interlocutoras, esse processo de rompimento com o modelo elitista se desenvolve em um contexto de retorno do conservadorismo, reforçado por valores religiosos e de retomada da hierarquia patriarcal. Se, por um lado, a convivência do avanço com o retrocesso pode reforçar a resistência a essa nova lógica inclusiva e gerar mais violência contra esses grupos subalternizados, por outro lado, a inclusão desses grupos tem provocado a universidade para que enfrente a violência e a resistência a essa nova ordem inclusiva e de busca por equidade.

Na USP, a atuação da Rede Não Cala33. Cruz F, Almeida HB, Lucas D’Oliveira AFP, Lima EFA, Lago C, Machado AM. Don’t stay silent: network of female professors against gender violence at University of São Paulo (USP). Special Issue ‘Sex and Power in the University’. Ann Rev Critical Psychol. 2018; (15):223-45. , grupo de professoras e pesquisadoras contra a violência de gênero, em conjunto com outros coletivos, fomentou a criação de órgãos administrativos e mobilizou a comunidade para realizar esse enfrentamento. No campus da USP de Ribeirão Preto, por exemplo, o repúdio a canções de baterias universitárias que perpetravam ideias racistas e misóginas foi liderado pelo coletivo de discentes negros e negras do campus 44. Palhares I. Grupo acusa bateria da medicina da USP Ribeirão Preto de racismo. Folha de São Paulo. 2014 Nov 11; Cotidiano. Ribeirão Preto. .

Assim, ao mesmo tempo em que a nova ordem inclusiva provoca uma reação de setores mais conservadores, ela também provoca a universidade para criar mecanismos que garantam a inclusão.

Reiterando, essas violências contra grupos subalternizados se colocam de forma estrutural, dentro de uma ordem social construída de modo a oprimir pessoas negras, indígenas e em situação de pobreza, ou seja, grupos que, assim como as mulheres, foram sistematicamente excluídos da universidade e do processo de produção do conhecimento ao longo da história, como também destacam nossas interlocutoras.

O Anuário Estatístico da USP (2019)55. Agopyan V, Hernandes AC, Ferreira JE. Anuário Estatístico da Universidade de São Paulo [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP); 2019 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/anuario/AnuarioControle
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, com base em dados de 2017, ajuda a compor o retrato dessas iniquidades e da contradição: os homens são 52,48% entre os estudantes de graduação, pós-graduação e alunos especiais da USP; em relação à Pós-Graduação, as mulheres superam os homens em número, constituindo 50,87% dos estudantes matriculados. Taxa semelhante se apresenta em relação aos funcionários técnico-administrativos, sendo que 52,95% são homens. As marcas da iniquidade começam a ficar mais claras quando olhamos para o quadro docente da universidade: 62,39% dos docentes são homens, contra 37,61% de mulheres. A disparidade fica maior ainda quando o foco vai para os cargos de gestão – reitoria, superintendências, prefeituras, secretarias, direção de unidades –, nos quais 72% são homens e apenas 28%, mulheres66. Agopyan V, Hernandes AC, Ferreira JE. Dirigentes da USP [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP); 2019 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/urania/obterDirigentes?codmnu=637
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Esses dados nos levam a pensar que, embora as mulheres tenham atingido igualdade de acesso à universidade para trabalhar como técnicas-administrativas ou para estudar, estamos longe da equidade na carreira docente e nos cargos de direção: como parte de uma estrutura social maior, a universidade reproduz, em sua hierarquia, a desigualdade de poder entre homens e mulheres. Nesse contexto de desigualdades e iniquidades, a violência contra mulheres (e contra todos os grupos já citados) emerge como acontecimento que compõe o cotidiano acadêmico.

Situações de violência no cotidiano acadêmico têm sido documentadas por pesquisas recentes. Pesquisa nacional comandada pelo Instituto Avon77. Scavone M. Violência contra a mulher no ambiente universitário [Internet]. São Paulo: Data Popular/Instituto Avon; 2015 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: http://www.ouvidoria.ufscar.br/arquivos/PesquisaInstitutoAvon_V9_FINAL_Bx20151.pdf
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identificou diversas formas de violência contra mulheres, que vão desde formas sutis de machismo e sexismo, passando pelo assédio, até a violência sexual. O escritório USP Mulheres88. Venturi G, Blay E, Pasinato W, Krodi P, Capocchi E, Alves A. Interações na USP: primeiros resultados da pesquisa [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo/Escritório USP Mulheres; 2018 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: http://uspmulheres.usp.br/wp-content/uploads/sites/145/2018/07/INTERA%C3%87%C3%95ES-NA-USP_final_publica%C3%A7%C3%A3o2407.pdf
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também realizou a pesquisa “As interações na USP”, trazendo à tona a presença da violência de gênero no cotidiano universitário, identificando, além da violência de gênero, outras formas de opressão e exclusão, motivadas por raça e renda/classe social. Outro estudo99. Panuncio-Pinto MP, Alpes MA, Colares MFA. Situações de violência interpessoal/bullying na Universidade: recortes do cotidiano acadêmico de estudantes da área da saúde. Rev Bras Educ Med. Forthcoming 2019. recentemente realizado em uma unidade da USP com cursos da área da saúde abordou professores e estudantes, identificando as mesmas formas de violência cotidiana encontradas em outros estudos: na relação veterano-calouro; motivada por características pessoais; motivada pela orientação sexual/gênero; motivada por classe social; racismo; e violência na relação professor-aluno. Tudo isso remete à importância de uma abordagem intersseccional para a violência de gênero, articulando gênero com outras formas de opressão, outro importante ponto de inflexão colocado por nossas interlocutoras.

Assim, a violência contra mulheres na universidade é um acontecimento diário e tem diversas formas, atingindo todas as pessoas que compõem a comunidade universitária: estudantes, professoras e funcionárias. Conforme apontando por nossas interlocutoras, boa parte dos estudos brasileiros sobre o tema tem caráter quantitativo e se refere a escolas da área da saúde. Esses estudos não identificam documentos normativos ou políticas afirmativas nas universidades brasileiras.

Conforme pesquisa que realizamos1010. Maito DC. Parâmetros teóricos e normativos para o enfrentamento à violência contra as mulheres na Universidade de São Paulo [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017. , universidades europeias, norte-americanas e, mais recentemente, latino-americanas avançaram em termos de produzir normas e procedimentos para enfrentar a violência de gênero pautadas na obrigatoriedade legal. No Brasil, as universidades não estão legalmente obrigadas a enfrentar a violência contra mulheres, mas a Lei Maria da Penha1111. Brasil. Presidência da República. Lei n° 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006. protege direitos humanos das mulheres e realiza seu enfrentamento judicial, no âmbito da violência familiar e doméstica. A Lei estabelece princípios para o enfrentamento dessa violência em todos os âmbitos e, ao lado dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, embasou a construção das diretrizes por nós apresentadas.

Apesar da existência de parâmetros normativos e teóricos, do aumento de estudos sobre a temática da violência contra mulheres na universidade e do aumento da visibilidade para os casos, ainda é flagrante a necessidade de se estabelecer uma clara agenda de investigação que permita dimensionar o problema e gerar condições para seu enfrentamento. Isso aponta para ações que realizem o acolhimento e a atenção integral às vítimas, a responsabilização dos agressores, a prevenção, a sensibilização e a educação. Alguns dados foram produzidos pelos comitês criados na USP, como o relatório final de gestão da Comissão, para apurar denúncias de violência contra mulheres e gêneros – CAV Mulheres USP-RP1212. Comissão para Apurar Denúncias de Violência contra Mulheres e Gêneros (CAV Mulheres) USP-RP. Relatório Final de Atividades. Gestão 2016-2018. Análise dos esforços para o enfrentamento à violência contra as mulheres e gêneros no campus de Ribeirão Preto-SP. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2018. . Entretanto, até o momento não há a perspectiva de sua incorporação para a definição de políticas afirmativas.

Conforme apontado por nossas interlocutoras e também na pesquisa que desenvolvemos, a universidade precisa assumir seu papel, deixando de ser “parte do problema” e passando a ser agente em sua solução. Para tanto, é necessário definir mecanismos institucionais claros para prevenção, atenção e reparação integral às vítimas e responsabilização dos agressores. Para romper o silêncio, ainda falta desenhar e implementar estratégias institucionais; e criar mecanismos protegidos de denúncia e investigação, garantindo formação adequada para quem lida com isso.

A atenção com a formação é crucial, uma vez que a universidade se coloca como agente de ensino, pesquisa e extensão. Enfrentar seus problemas em sua própria institucionalidade é assumir seu papel de produção de um saber que se mostre comprometido com a sociedade à qual ele serve.

Referências

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    Brasil. Presidência da República. Lei n° 12.711, de 29 de Agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União. 30 Ago 2012.
  • 2
    Araujo DP. “Inclusão com mérito” e as facetas do racismo institucional nas universidades estaduais de São Paulo. Rev Direito Prax. 2019; 10(3):2182-213.
  • 3
    Cruz F, Almeida HB, Lucas D’Oliveira AFP, Lima EFA, Lago C, Machado AM. Don’t stay silent: network of female professors against gender violence at University of São Paulo (USP). Special Issue ‘Sex and Power in the University’. Ann Rev Critical Psychol. 2018; (15):223-45.
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    Palhares I. Grupo acusa bateria da medicina da USP Ribeirão Preto de racismo. Folha de São Paulo. 2014 Nov 11; Cotidiano. Ribeirão Preto.
  • 5
    Agopyan V, Hernandes AC, Ferreira JE. Anuário Estatístico da Universidade de São Paulo [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP); 2019 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/anuario/AnuarioControle
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  • 6
    Agopyan V, Hernandes AC, Ferreira JE. Dirigentes da USP [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP); 2019 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/urania/obterDirigentes?codmnu=637
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  • 7
    Scavone M. Violência contra a mulher no ambiente universitário [Internet]. São Paulo: Data Popular/Instituto Avon; 2015 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: http://www.ouvidoria.ufscar.br/arquivos/PesquisaInstitutoAvon_V9_FINAL_Bx20151.pdf
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  • 8
    Venturi G, Blay E, Pasinato W, Krodi P, Capocchi E, Alves A. Interações na USP: primeiros resultados da pesquisa [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo/Escritório USP Mulheres; 2018 [citado 14 Set 2019]. Disponível em: http://uspmulheres.usp.br/wp-content/uploads/sites/145/2018/07/INTERA%C3%87%C3%95ES-NA-USP_final_publica%C3%A7%C3%A3o2407.pdf
    » http://uspmulheres.usp.br/wp-content/uploads/sites/145/2018/07/INTERA%C3%87%C3%95ES-NA-USP_final_publica%C3%A7%C3%A3o2407.pdf
  • 9
    Panuncio-Pinto MP, Alpes MA, Colares MFA. Situações de violência interpessoal/bullying na Universidade: recortes do cotidiano acadêmico de estudantes da área da saúde. Rev Bras Educ Med. Forthcoming 2019.
  • 10
    Maito DC. Parâmetros teóricos e normativos para o enfrentamento à violência contra as mulheres na Universidade de São Paulo [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.
  • 11
    Brasil. Presidência da República. Lei n° 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006.
  • 12
    Comissão para Apurar Denúncias de Violência contra Mulheres e Gêneros (CAV Mulheres) USP-RP. Relatório Final de Atividades. Gestão 2016-2018. Análise dos esforços para o enfrentamento à violência contra as mulheres e gêneros no campus de Ribeirão Preto-SP. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2018.

  • Errata

    No artigo A universidade como reflexo e agente transformador da sociedade: a contradição movendo a história, com número DOI: 10.1590/Interface.190711, publicado em Interface – Comunicação, Saúde, Educação 2019; 23: e190711:
    Onde se lê:
    (d) Departamento de Medicina Social, FM-Ribeirão Preto, USP. Ribeirão Preto, SP, Brasil. <alopez@psico.edu.uy>
    Leia-se:
    (d) Departamento de Medicina Social, FM-Ribeirão Preto, USP. Ribeirão Preto, SP, Brasil. <bmeloni@fmrp.usp.br>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2019
  • Aceito
    01 Out 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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