Subjetividades sintéticas: apontamentos sobre transformações corporais e subjetivas via intervenções biotecnológicas

Synthetic subjectivities: notes on body and subjective transformations via biotechnological interventions

Subjetividades sintéticas: apuntes sobre transformaciones corporales y subjetivas a través de intervenciones biotecnológicas

Fabíola Rohden Sobre o autor

O artigo “Nós, pós-humanos: da gênese à liberdade”, de Chiara Pussetti11 Pussetti C. Nós, pós-humanos: da génese à liberdade. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200306. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200306.
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, nos conduz por um caminho reflexivo de muita profundidade acerca da própria natureza do humano e de sua incontornável plasticidade e autotransformação, inclusive da própria biologia. Para além de demonstrar esse caráter “pós-humano” como constitutivo da nossa própria experiência em qualquer tempo, a autora nos leva a questionar, então, quais as possíveis especificidades dos processos contemporâneos de transformação corporal e subjetiva ancorados nas novas biotecnologias. Tomando esse aspecto como ponto de partida, pretendo desenvolver algumas reflexões embasadas nos resultados do projeto “Novas formas de circulação de conhecimento e de acesso a tecnologias biomédicas: cenários contemporâneos para transformações corporais e subjetivas” (apoiado pelo CNPq). Em especial, considero dados oriundos de dois domínios de intervenção: cirurgias de colocação de próteses de silicone nos seios e as chamadas “cirurgias íntimas”, entre as quais a labioplastia tem sido a mais frequente.

No caso dos implantes de silicone, chama a atenção o fato de que muitas mulheres explicitam que preferem resultados “bem marcados”, que indiquem de forma evidente que os novos contornos foram resultado de seus investimentos – em todos os sentidos, inclusive no financeiro –, na busca pelo aperfeiçoamento corporal e pela conquista de uma melhor autoestima. Não se trata de uma intervenção a ser escondida, mas sim de uma trajetória de conquistas a ser valorizada, de algo a ser mostrado, inclusive com imagens de “antes e depois” ou mesmo daqueles corpos idealizados e tomados como padrão a ser alcançado. E, nesse sentido, o caráter a princípio artificial das próteses (que pode ser evidenciado pelo tamanho ou formato) não é um problema. Ao contrário, conjuga-se às práticas (inclusive narrativas) de valorização da capacidade de transformação de si via todos os recursos biotecnológicos disponíveis22 Rohden F, Silva JB. ‘Se não for pra causar nem quero’: a visibilidade das transformações corporais e a produção de feminilidades por meio das cirurgias plásticas”. Cad Pagu. 2020; 59:e205914. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449202000590014.
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Quanto às cirurgias íntimas, muitas mulheres revelam todo o processo de investimento da cirurgia, despendendo tempo, dinheiro, esforço físico e mental ao passar pela intervenção. Novamente aqui, a dimensão da realização pessoal ou da melhora da autoestima surgem como categorias centrais, associadas à ideia de aprimoramento pessoal e corporal, de conquista (a ser) alcançada. Frequentemente, apresentam-se os contornos da genitália ideal (descrita notadamente por adjetivos como pequena, delicada, clara, rosada) associada a corpos que passaram pelo redesenho cirúrgico. Ou seja, se reconhece que o padrão desejado não é o “natural” ou mais comum entre as mulheres, mas aquele que foi “operado” e que aparece inclusive em fotos e vídeos na internet e na pornografia convencional33 Rohden F, Cavalheiro CS. Esculpindo corpos e criando normalidades: as cirurgias estéticas íntimas na produção científica da cirurgia plástica. In: Rohden F, Pussetti C, Roca A, organizadores. Biotecnologias, transformações corporais e subjetivas: saberes, práticas e desigualdades. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS; Forthcoming 2021.. Dessa maneira, entra em cena uma lógica circular na qual o ideal é substancializado em novos desenhos anatômicos, retratados em descrições e imagens que, por sua vez, passam a inspirar novos desejos de “perfeição” ou ajustamento.

Nota-se uma disjunção entre o que seria este desejado “normal”, que pode ser feito, fabricado, conquistado, e o “natural”, primário, original que parece deixar de ser a referência central. Esse deslocamento indica uma ideia de natureza problemática, no sentido de algo original que não atente às expectativas e que precisa passar por um processo de readequação. Se em algum momento, considerando o cenário das cirurgias plásticas, pode ter havido uma contraposição binária entre natural-normal-desejável e artificial-anormal-desvalorizado (porque resultado de trabalho e manipulação e não de alguma espécie de essência ou herança), atualmente o quadro parece bem mais confuso. O termo artificial, em sua possível conotação negativa, não serve para indicar o que está em jogo. Ou, dito de outra forma, o normal que se busca pode ser profundamente artificial ou sintético, no sentido de que não mais mimetiza uma normalidade-natureza que existiria originalmente ou in natura.

Tais constatações levam à necessidade de discutir sobre que tipo de subjetividade estaria associado a essas possíveis reconfigurações da natureza. Heys44 Heys CJ. Self-transformations: Foucault, ethics, and normalized bodies. Oxford: Oxford University Press; 2007. sugere que a busca pelas melhorias “externas” estaria conectada com o imperativo de um eu (self) interior que deveria ser traduzido da melhor forma possível na imagem do(a) sujeito(a). A lógica que embasa esses projetos de intervenção é precisamente a ideia de que no seu “interior” todas as pessoas seriam boas e bonitas e todos(as) deveriam investir para revelar o melhor de si mesmos(as) e fazer corresponder as aparências a essa bela interioridade.

Contudo, considerando as pistas trazidas pelos dois casos citados, a referência a esse eu interior não parece estar presente da mesma forma. Noções de satisfação, realização pessoal e autoestima certamente estão em cena, mas isso não é da mesma ordem que o predomínio “senhorial” do eu sobre o corpo, como indica Heys44 Heys CJ. Self-transformations: Foucault, ethics, and normalized bodies. Oxford: Oxford University Press; 2007. para o contexto norte-americano estudado. Aqui não parece haver uma ideia de correspondência necessária que exigiria determinados ajustes corporais para adequação a essa boa natureza interior. Não se nota uma inquirição constante sobre o eu interiorizado. Em contraste, o constante nas narrativas é uma busca pela realização e pela satisfação pessoal que passa por descobrir e executar as transformações necessárias e, de preferência, rapidamente, com impactos imediatos e eficazes como bem prometem os cirurgiões.

Entre os resultados pretendidos ou alcançados, teríamos duas ordens de acontecimentos: as transformações concretas e percebidas “imediatamente” nos contornos corporais; e a satisfação por ter realizado o projeto de investimento em si própria (que requer muitas vezes enfrentar medos, desafios, preconceitos, procurar informação, participar de grupos em redes sociais para compartilhar desejos e experiências, além de lidar com os procedimentos invasivos em si mesmos). Certamente, pode-se pensar em distintos processos de subjetivação aí presentes. Entretanto, não se reduzem ou se circunscrevem à narrativa centrada na busca por uma verdade interior que prevaleceria e exigiria as readequações estéticas. Assim como essa retórica da transformação também não está subsumida à procura ou à manutenção de uma natureza original e essencial.

Em contraste, parece-me útil pensar em um modelo que chamo aqui de “subjetividade sintética”. Mais do que qualquer aproximação com um caráter artificial, sintético, nesse caso remete à ideia de síntese, composição ou mesmo engajamento corporal-subjetivo. Essa síntese ocorre por meio da incorporação de diferentes tipos de elementos, a princípio reconhecidos como externos (próteses, recortes na própria carne ou mesmo o uso de substâncias químicas). Tal subjetividade incorporada, nesse cenário passa a ser reconhecida por essas composições ou acréscimos. E esse processo de adição ou transformação, mesmo utilizando elementos protéticos, não “originais” ou “naturais”, é valorizado em si mesmo, inclusive por essas características aditivas – como se nota, por exemplo, pelo uso constante do termo investimento. Como alerta Rose55 Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press; 2007., a lógica é sempre correr atrás de mais aperfeiçoamento e otimização. Contudo, se a noção de indivíduo somático55 Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press; 2007. já dava conta da incorporação das biotecnologias nas subjetividades, estou salientando aqui um aspecto mais particular que não estaria encarnado, por exemplo, em uma verdade ou mesmo aprimoramento molecular, ainda comprometido com uma forte ideia de natureza biológica. A aposta com o uso do termo sintético remete mais ao que parece ser um certo descompromisso com essa verdade interior do self, mas também com a verdade essencial de uma natureza biológica, profunda e molecular. A síntese é, por definição, a junção integrada de elementos diversos, e também se refere à brevidade, rapidez e concisão, aspectos que parecem centrais quando as mulheres descrevem os resultados esperados com as intervenções cirúrgicas.

É bom lembrar que a imagem da síntese de diferentes componentes pode também ser usada para pensar a respeito do uso de tecnologias visuais digitais de apresentação de si, tão em voga atualmente e que remetem a uma junção entre a pele (e a imagem corporal) e a tela dos diferentes dispositivos tecnológicos empregados66 Jones M. Expressive surfaces: the case of the designer vagina. Theory Cult Soc. 2017; 34(7-8):29-50.. Não há dúvidas de que também tais incorporações passam a compor de forma muito enfática a configuração das formas de subjetividade contemporâneas.

A provocação feita aqui, por meio da formulação desta ideia de subjetividade sintética, tem como foco, exatamente, apontar esses desafios e o deslocamento de uma certa ideia de ancoragem no suporte da natureza. Porém, ao mesmo tempo, não se pode deixar de notar, no que se refere ao gênero, que as aspirações pela satisfação pessoal e a conquista da autoestima, no caso de muitas mulheres que têm buscado as intervenções cirúrgicas, continuam passando por uma centralidade das exigências com o corpo e com a aparência. Contudo, em sintonia com o que argumenta Pussetti em seu texto, se levamos a sério a ideia de uma composição sintética ou protética, em contraste com a busca de uma natureza primária, ressalta-se o fato de que todas as produções corporais e subjetivas seriam também sintéticas. Ou, como diria Haraway77 Haraway D. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Haraway D, Kunzru H, Tadeu T, organizadores. Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p. 37-129., indicariam a constatação de que todas e todos, afinal, somos ciborgues. Ao contrário de uma oposição entre natural-verdadeiro e artificial-falso, que deixa de ter lugar privilegiado, o que emerge é a qualidade sintética, compósita e contingente de qualquer subjetividade-corporalidade. Explicitar essas características contingenciais e, portanto, históricas e sociais pode talvez ajudar a compreendermos os padrões de corpos e realização pessoal idealizados e materializados contemporaneamente.

  • Rohden F. Subjetividades sintéticas: apontamentos sobre transformações corporais e subjetivas via intervenções biotecnológicas. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210065 https://doi.org/10.1590/interface.210065

Referências

  • 1
    Pussetti C. Nós, pós-humanos: da génese à liberdade. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200306. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200306.
    » https://doi.org/10.1590/interface.200306
  • 2
    Rohden F, Silva JB. ‘Se não for pra causar nem quero’: a visibilidade das transformações corporais e a produção de feminilidades por meio das cirurgias plásticas”. Cad Pagu. 2020; 59:e205914. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/18094449202000590014.
    » https://doi.org/10.1590/18094449202000590014
  • 3
    Rohden F, Cavalheiro CS. Esculpindo corpos e criando normalidades: as cirurgias estéticas íntimas na produção científica da cirurgia plástica. In: Rohden F, Pussetti C, Roca A, organizadores. Biotecnologias, transformações corporais e subjetivas: saberes, práticas e desigualdades. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS; Forthcoming 2021.
  • 4
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  • 5
    Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press; 2007.
  • 6
    Jones M. Expressive surfaces: the case of the designer vagina. Theory Cult Soc. 2017; 34(7-8):29-50.
  • 7
    Haraway D. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Haraway D, Kunzru H, Tadeu T, organizadores. Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p. 37-129.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    17 Fev 2021
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