Acupuntura na Atenção Primária à Saúde: referenciais tradicional e médico-científico na prática cotidiana

Acupuncture in Primary Health Care: traditional and medical-scientific approaches in everyday practice

Acupuntura en la Atención Primaria de la Salud: referenciales tradicional y médico-científico en la práctica cotidiana

Octávio Augusto Contatore Charles Dalcanale Tesser Nelson Filice de Barros Sobre os autores

Resumos

A acupuntura é a prática integrativa e complementar mais utilizada nos países ocidentais e com maior institucionalização nos sistemas públicos de saúde. Considerando que a medicina chinesa/acupuntura foi absorvida pela prática biomédica na diáspora de seu conhecimento para o Ocidente, questiona-se se suas características autóctones de cuidado continuam presentes na sua aplicação clínica na Atenção Primária à Saúde (APS). Investigou-se qual referencial de cuidado orientava todos os profissionais com formação em Acupuntura (n = 21) da rede básica de saúde de Campinas/SP, Brasil. Todos os entrevistados foram formados nos métodos tradicionais da Acupuntura, atuavam por meio desse referencial, diferenciavam-no da Biomedicina. A acupuntura foi considerada eficaz para atender à integralidade das demandas de cuidado e para a diminuição do uso de fármacos. Porém, constataram-se significativas dificuldades estruturais na oferta da prática da acupuntura.

Palavras-chave
Atenção Primária à Saúde; Medicina chinesa tradicional; Acupuntura


Acupuncture is the most used integrative and complementary practice in western countries and is widely incorporated into public health systems. Considering that Chinese medicine/acupuncture was absorbed by biomedical practice during the diaspora of this type of knowledge in the West, we question whether its autochthonous care characteristics remain present in its clinical application in primary health care. We investigated which care approach guides professionals with training in acupuncture (n = 21) working in primary care services in Campinas/SP, Brazil. All the interviewees trained in traditional methods of acupuncture adopted this approach, differentiating it from biomedicine. Acupuncture was considered effective in meeting the demands of comprehensive care and reducing the use of pharmaceuticals. However, the respondents reported significant structural difficulties in providing acupuncture in primary care services.

Keywords
Primary Health Care; Traditional Chinese Medicine; Acupuncture


La acupuntura es la práctica integradora y complementaria más utilizada en los países occidentales y con mayor institucionalización en los sistemas públicos de salud. Considerando que la medicina china/acupuntura fue absorbida por la práctica biomédica en la diáspora de su conocimiento hacia el occidente, se cuestiona si sus características autóctonas de cuidado continúan presentes en su aplicación clínica en la atención primaria de la salud (APS). Se investigó cuál era el referente de cuidado que orientaba a todos los profesionales con formación en acupuntura (n = 21) de la red básica de salud de Campinas/SP, Brasil. Todos los entrevistados se habían formado en los métodos tradicionales de la acupuntura, actuaban por medio de este referente y lo diferenciaban de la biomedicina. La acupuntura se consideró eficaz para atender la integralidad de las demandas de cuidado y para la disminución del uso de fármacos. Sin embargo, se constataron significativas dificultades estructurales en la oferta de la práctica de la acupuntura.

Palabras clave
Atención Primaria de la Salud; Medicina China Tradicional; Acupuntura


Introdução

A acupuntura é a prática da medicina chinesa mais conhecida na atualidade e a que obteve maior expansão de seu conhecimento e utilização pelo mundo11 Contatore OA. Cuidado, acupuntura e Atenção Primária à Saúde: conceitos em construção e correlação [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020.. Esse processo pode ser analisado como uma diáspora22 Ijaz N, Boon H. Medical pluralism and the State: regulatory language requirements for traditional acupuncturists in english-dominant diaspora jurisdictions. SAGE Open. 2018; 8(2):1-15., cujo conceito frequentemente é usado para descrever o fenômeno migratório de um povo e sua dispersão para novas regiões do mundo. Todavia, pode também ser utilizado para salientar um evento cultural, ao descrever mudanças sofridas no conhecimento original de um povo no decorrer de seu processo migratório, bem como o que esse conhecimento pode causar no local de destino33 Hall S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Brasília: Editora UFMG, Representação da UNESCO no Brasil; 2003..

Dentre os eventos culturais, devem ser incluídos aqueles relacionados ao cuidado à saúde. Os conhecimentos da área que têm se mostrado com maior difusão fora de seu contexto original são os da medicina ocidental moderna e os da medicina chinesa/acupuntura. Na China, por exemplo, desde o século 19 e a primeira metade do século 20, a medicina ocidental ganhou destaque com expressivo recuo dos cuidados à saúde autóctones44 Contatore OA, Tesser CD, Barros NF. Medicina Chinesa/Acupuntura: apontamentos históricos sobre a colonização de um saber. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2018; 25(3):841-858.. No mesmo período, a medicina chinesa, em especial a acupuntura, foi introduzida no Ocidente, sendo a prática de cuidado não biomédica mais utilizada mundialmente55 World Health Organization. Global report on traditional and complementary medicine 2019 [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [citado 27 Maio 2019]. Disponível em: https://www.who.int/traditional-complementary-integrative-medicine/WhoGlobalReportOnTraditionalAndComplementaryMedicine2019.pdf?ua=1
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Diante da influência da medicina ocidental, o conhecimento original da medicina chinesa/acupuntura sofreu alterações na própria China a partir do início do século 20. Esse processo gerou variações conceituais na forma tradicional chinesa de conceber e atuar nos processos de saúde, doença e cuidado, que se acentuaram na prática da acupuntura durante o processo de internacionalização44 Contatore OA, Tesser CD, Barros NF. Medicina Chinesa/Acupuntura: apontamentos históricos sobre a colonização de um saber. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2018; 25(3):841-858.. Na atualidade, é possível encontrar, no Ocidente, várias versões conceituais e técnicas de aplicação das agulhas de acupuntura66 Tavares LARF. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupunctura em Portugal [tese]. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa; 2010.. Destacamos três versões reconhecidas academicamente: a medicina clássica chinesa (MCC), anterior ao século 20 (que poderia ser considerada o conjunto dos conhecimentos originais)77 Souza EFAA. Nutrindo a vitalidade: questões contemporâneas sobre a Racionalidade Médica Chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2008.; a medicina tradicional chinesa (MTC), que se baseia em transformações promovidas por Mao Tse Tung, na metade do século 20, influenciada pelo pensamento científico moderno (embora na quase totalidade seja baseada e estruturada na anterior)44 Contatore OA, Tesser CD, Barros NF. Medicina Chinesa/Acupuntura: apontamentos históricos sobre a colonização de um saber. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2018; 25(3):841-858.; e, por último, a sua versão identificada conceitualmente com a ciência médica ocidental, conhecida na literatura acadêmica como Acupuntura médico-científica (depurada ou que prescinde dos saberes tradicionais)88 Pai HJ. Acupuntura: de terapia alternativa a especialidade médica. São Paulo: Ceimec; 2005.,99 Lin CA. Da medicina tradicional chinesa à prática de acupuntura médica baseada em evidência. Rev Med. 2013; 92(3):213-215..

Em termos político-sociais e epistemológicos, a Biomedicina detém “uma ampla hegemonia, que beira o monopólio, na legitimidade social e acadêmica sobre quem e a partir de que tipo de conhecimento se pode validar práticas e saberes em saúde-doença”1010 Tesser CD. Pesquisa e institucionalização das práticas integrativas e complementares e racionalidades médicas na Saúde Coletiva e no SUS: uma reflexão. In: Luz MT, Barros NF, editores. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS; 2012. p. 251-283. (p. 251). Consequentemente, no Ocidente, a entrada de outras lógicas e práticas de cuidado, como a acupuntura, tem sofrido dependência da aprovação pela Biomedicina. Por outro lado, há tentativas de monopolização da acupuntura pela categoria médica66 Tavares LARF. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupunctura em Portugal [tese]. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa; 2010., o que pode resultar em um processo de colonização dos saberes exógenos1111 Santos BS. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Rev Crit Cienc Soc. 2008; (80):11-43. Doi: https://doi.org/10.4000/rccs.691.
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, com adaptações ou mudanças radicais em seus métodos1212 Souza EFAA, Luz MT. Análise crítica das diretrizes de pesquisa em medicina chinesa. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2011; 18(1):155-174.,1313 Gale N. The sociology of traditional, complementary and alternative medicine. Sociol Compass. 2014; 8(6):805-822.. Tal quadro favoreceu que, no Ocidente, houvesse variações quanto ao grau de “tradicionalidade” implícito na prática da acupuntura, ou mesmo, em um extremo, o simples descarte de suas concepções orientais autóctones de cuidado à saúde.

Contudo, o prestígio dos conceitos e métodos tradicionais da medicina chinesa serviu como referência para a Organização Mundial da Saúde (OMS) apoiar a sua institucionalização na esfera pública55 World Health Organization. Global report on traditional and complementary medicine 2019 [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [citado 27 Maio 2019]. Disponível em: https://www.who.int/traditional-complementary-integrative-medicine/WhoGlobalReportOnTraditionalAndComplementaryMedicine2019.pdf?ua=1
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,1414 Organização Mundial da Saúde. Estratégia de la OMS sobre medicina tradicional 2002-2005. Genebra: OMS; 2001 [citado 20 Ago 2013]. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/hq/2002/WHO_EDM_TRM_2002.1_spa.pdf
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,1515 Organização Mundial da Saúde. Tradicional medicine strategy – 2014-2023 [Internet]. Genebra: OMS; 2013 [citado 14 Mar 2014]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/92455/1/9789241506090_eng.pdf?ua=1
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. Esse mesmo reconhecimento está presente no Brasil, com a criação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares1616 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria 971, de 4 de Maio de 2006. Dispõe sobre a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. (PNPIC), que normatizou a utilização da medicina tradicional chinesa/acupuntura em caráter multiprofissional para as categorias profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS) e que possuam regulamentação em Acupuntura.

Conjuntamente à polarização das concepções tradicional e médico-científica da prática da acupuntura, foi iniciada no Brasil uma disputa jurídica sobre quem estaria qualificado para exercer a Acupuntura. O processo de institucionalização da Acupuntura na Saúde Pública e a sua regulamentação como especialidade por profissões da área da Saúde foram permeados por ações judiciais iniciadas por representantes da categoria médica, visando garantir a exclusividade da sua aplicação11 Contatore OA. Cuidado, acupuntura e Atenção Primária à Saúde: conceitos em construção e correlação [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020.. Tal situação pode ser compreendida como um dos reflexos e tensões desencadeados pela chegada e pela inserção de um referencial de cuidado não hegemônico nos sistemas públicos de saúde, que pode ser abordado pela análise da diáspora do conhecimento da medicina chinesa/acupuntura em direção ao Ocidente11 Contatore OA. Cuidado, acupuntura e Atenção Primária à Saúde: conceitos em construção e correlação [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020.. Nossa pesquisa foi orientada, então, pelo questionamento sobre como ocorre a prática cotidiana dos profissionais que aplicam acupuntura no SUS e, mais especificamente, se a institucionalização da acupuntura na APS vem seguindo mais os referenciais tradicionais chineses, postulados pela OMS e pela PNPIC, ou mais o referencial médico-científico.

Métodos

Foi realizada uma pesquisa qualitativa e compreensiva com todos os profissionais com especialização em Acupuntura que, no momento do estudo, trabalhavam em Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Campinas/SP. A abordagem compreensiva da realidade1717 Bourdieu P. Understanding. Theory Cult Soc. 1996; 13(2):17-37. Doi: https://doi.org/10.1177/026327696013002002.
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foi escolhida por possibilitar a aproximação com aquele contexto, traçando um panorama acerca da visão dos profissionais sobre o trabalho de acupuntura na APS, com vistas a contribuir com as discussões de tais práticas. O município foi escolhido por ter sido uma das cidades pioneiras na implementação do cuidado à saúde com acupuntura na Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS, sendo, desde 2003, ofertadas várias modalidades de Práticas Integrativas e Complementares (PIC) em UBS1818 Campinas. Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação das Práticas Integrativas e Complementares. Parceria amplia atendimento de acupuntura à população [Internet]. 2004 [citado 28 Mar 2022]. Disponível em: https://saude.campinas.sp.gov.br/noticias/not_03_04/not_02_03_04.htm
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,1919 Sousa IMC, Bdstein RCA, Tesser CD, Santos FAZ, Hortale VA. Práticas integrativas no SUS: oferta e produção de atendimentos no SUS e em munícipios selecionados. Cad Saude Publica. 2012; 28(11):2143-2154.. No início dos anos 2000 foi realizado um convênio com uma escola local de medicina chinesa tradicional para incentivar os profissionais médicos da APS a formarem-se em Acupuntura.

A Secretaria Municipal de Saúde de Campinas/SP forneceu o nome e o local de trabalho de 23 profissionais com especialização em Acupuntura, alocados em 18 das 66 UBS do município. Desses, 21 concederam uma entrevista e dois recusaram participar, alegando não mais praticarem acupuntura. Dos 21 colaboradores entrevistados, eram 15 médicos, quatro enfermeiras, uma dentista e um farmacêutico.

A primeira etapa do trabalho de campo ocorreu entre abril e julho de 2017, quando foram entrevistados 21 profissionais, seguindo um roteiro prévio que abordava: formação técnica em Acupuntura, espaço institucional dedicado à aplicação dessa técnica nas UBS, características do cuidado e se utilizavam os métodos tradicionais da medicina chinesa. Na segunda etapa, realizada entre setembro de 2017 e março de 2018, foram entrevistados 45 usuários, indicados por 12 dos profissionais entrevistados. Este artigo foca na primeira etapa da pesquisa, especificamente com profissionais.

As entrevistas foram analisadas à luz do levantamento de categorias de discussão que contribuíssem para a compreensão de qual referencial de cuidado orientava os profissionais acupunturistas da rede de saúde de Campinas/SP, intencionando o debate acerca da diáspora da medicina chinesa para o Ocidente. Todos os autores deste artigo leram as transcrições das entrevistas e discutiram as categorias que melhor responderiam à questão de pesquisa.

A pesquisa seguiu a regulamentação aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução n. 466/2012), tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da universidade-sede, protocolo 61666016.0.0000.5404 4. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participarem do estudo.

Resultados

Dentre os resultados das entrevistas, três temas foram escolhidos para serem abordados neste artigo, visando compreender a característica predominante do cuidado realizado com acupuntura: tradicional ou médico-científica. São eles: a formação profissional em Acupuntura e sua influência no tipo de acupuntura praticada, a diferenciação entre a medicina tradicional chinesa e a medicina ocidental moderna e sua relação com a formação profissional, a representatividade e a potencialidade da prática da acupuntura por meio da perspectiva institucional, no município estudado.

Inicialmente, questionou-se sobre qual era a formação em Acupuntura dos entrevistados para esclarecer se era predominantemente a tradicional chinesa ou a médico-científica. Todos os 21 entrevistados relataram que sua formação técnica em Acupuntura foi posterior à sua graduação em profissões da área da Saúde (Enfermagem, Farmácia, Odontologia e Medicina). Seus cursos de especialização tinham como base o ensino teórico e prático da medicina tradicional chinesa.

Eu fiz pós aqui pelo Ipema [Instituto de Pesquisa e Ensino Médico em Acupuntura], eu fiz dois anos de medicina tradicional chinesa.

(Profissional 11)

Eu fiz o curso em São Paulo na Amba, Associação Médica Brasileira de Acupuntura, durante dois anos. O curso lá não era só acupuntura, era na verdade medicina tradicional chinesa e falava das agulhas, moxa, auriculoterapia, mas, também, fitoterapia, dietoterapia e os exercícios de alongamento e relaxamento da própria medicina chinesa, Lian Gong.

(Profissional 14)

Houve aqueles que descreveram uma formação em medicina tradicional chinesa com enfoque principal na prática da acupuntura.

Foi um curso de especialização lato sensu, se chama Center AO (Centro de Excelência em Pesquisa e Estudo da Medicina Chinesa e Acupuntura), fica em São Paulo. A abordagem principal era acupuntura, mas abordavam a medicina chinesa como um todo.

(Profissional 19)

Lá a gente fazia só agulha, foi feito algumas vezes moxa, mas muito pouco. Era mais para aprender o agulhamento.

(Profissional 21)

No entanto, houve também relatos de maior diversificação na especialização em Acupuntura, abrangendo outras práticas de cuidado à saúde pertencentes ao conjunto de terapêuticas tradicionais advindas da medicina clássica chinesa.

Um dos nossos professores trabalhava na linha de Tchi Kun, [...] ele trabalhou um pouco sobre a questão de práticas meditativas, que são relativamente simples e que daria para ensinar os pacientes fazer também e práticas corporais, Tchi Kun com alongamento dos meridianos, circulação de energia e de certa forma a gente acaba utilizando bastante isso.

(Profissional 4)

Na especialização eu aprendi moxa tradicional e teve tópicos de dietoterapia chinesa, e sobre isso depois eu fui fazer outro curso também. Fiz Lian Gong, Tai Chi, Tchi Kun, meditação.

(Profissional 10)

Dos 21 entrevistados, 12 eram graduados em Medicina e sua formação em Acupuntura tradicional chinesa ocorreu em escolas próprias para médicos, balizadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em suas narrativas sobre o processo de especialização em Acupuntura não mencionaram uma certificação específica na acupuntura médico-científica, referencial apoiado por alguns membros filiados aos Conselhos Federal2020 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Para CFM, práticas integrativas incorporadas ao SUS não têm fundamento científico. Brasília: CFM; 2018 [citado 28 Fev 2021]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/para-cfm-praticas-integrativas-incorporadas-ao-sus-nao-tem-fundamento-cientifico/
https://portal.cfm.org.br/noticias/para-...
e Regionais2121 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Acupuntura - Área de atuação: sem área de atuação [Internet]. São Paulo: CREMESP; 2022 [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://cremesp.org.br/?siteAcao=Especialidades&acao=um&esp=66&area=51&acao=dois&campo=hist
https://cremesp.org.br/?siteAcao=Especia...
,2222 Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná. Nota oficial - Acupuntura é prática médica por excelência [Internet]. Curitiba: CRM-PR; 2007 [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://www.crmpr.org.br/Nota-oficial--Acupuntura-e-pratica-medica-por-excelencia-11-1511.shtml
https://www.crmpr.org.br/Nota-oficial--A...
de Medicina e ao Colégio Médico Brasileiro de Acupuntura2323 Colégio Médico Brasileiro de Acupuntura. Esclarecimento sobre o exercício legal da acupuntura no Brasil [Internet]. São Paulo: CMBA; [s/d] [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://cmba.org.br/esclarecimento-sobre-o-exercicio-legal-da-acupuntura-no-brasil/
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, que argumentam ser o conhecimento médico científico ocidental um requisito para a atuação em acupuntura; e por alguns acadêmicos88 Pai HJ. Acupuntura: de terapia alternativa a especialidade médica. São Paulo: Ceimec; 2005.,99 Lin CA. Da medicina tradicional chinesa à prática de acupuntura médica baseada em evidência. Rev Med. 2013; 92(3):213-215.,2424 Lin CA, Hsing WT, Pai HJ. Acupuntura: prática baseada em evidências. Rev Med. 2008; 87(3):162-165. que a diferenciam da tradicional. A entrevistada 21 foi a única que citou algum aspecto do referencial médico-científico em sua formação, especificamente durante a prática ambulatorial.

Lá no Instituto de Ortopedia e Traumatologia como a gente faz? Lá você chega, está com uma dor lombar, já vem tudo na minha cabeça o que pode ser, porém o agulhamento é feito direcionado na patologia.

(Profissional 21)

Esse tipo de intervenção é possível de ser feito em um atendimento emergencial, inclusive por quem tem o conhecimento tradicional. Difere do modo clássico de se aplicar a medicina chinesa/acupuntura porque a aplicação das agulhas visa, sobretudo, ao alívio do sintoma, e não são avaliadas todas as necessidades de cuidado do indivíduo na composição do quadro do adoecimento. A entrevistada, identificada com sua formação no conhecimento tradicional médico chinês e tendo ela como base, frisou utilizar conjuntamente o entendimento tradicional do processo de adoecimento na sua prática clínica.

Mas eu não deixo de fazer os outros meridianos, eu trato a patologia, porém equilibro o rim, o fígado. Por exemplo, a patologia da lombalgia, eu sei que está envolvida com o rim, a bexiga.

(Profissional 21).

Ao serem perguntados sobre por que escolheram aprender acupuntura, os discursos dos entrevistados explicitaram o desejo de buscar novas alternativas para ampliar a sua formação na área da Saúde e ofertar maior resolubilidade aos usuários. Na sua busca por novos métodos de cuidado, foram citados dois pontos de mudança em relação à Biomedicina: a busca pela integralidade no tratamento e a diminuição do uso de fármacos, exemplificados abaixo:

Você não vai ver a doença, você vai ver a pessoa [...]. E a pessoa pergunta: “mas, por que você está fazendo todas estas perguntas?” - “É porque eu preciso me balizar para poder chegar ao porquê você está assim.

(Profissional 5)

Pelo contato que eu tinha com as minhas pacientes, eu vi a necessidade de ter alguma coisa alternativa. [...] A gente vê assim, que os pacientes tomam muito analgésico, anti-inflamatório, tudo droga que pode trazer problema renal, no fígado, no estômago.

(Profissional 20)

Eu não trato uma dor de cabeça com remédio, não trato. Eu faço acupuntura e paciente sai sem dor e não gastei um remedinho, gastei uma agulhinha.

(Profissional 21)

Constatou-se que os entrevistados buscaram a formação na prática tradicional da acupuntura, exercida na sua prática clínica cotidiana.

Em seguida, buscou-se compreender se para os entrevistados havia diferenciação entre a medicina tradicional chinesa e a medicina ocidental moderna. Em comum, eles pontuaram que há significativas diferenças entre as concepções de saúde, doença e cuidado na Biomedicina e na medicina tradicional chinesa/acupuntura, demonstrando que não há uma tentativa de fusão de ambos os conhecimentos, mas sim de oferecer diferentes possibilidades de cuidado.

E aí vem a medicina tradicional chinesa para elucidar que ele tem um distúrbio de energia, de canal ou uma síndrome de frio, de calor, de umidade, e você consegue ver que a medicina chinesa vai um pouco mais além. [...] ela elucida coisas que a alopática para em determinado ponto.

(Profissional 16)

Porque a ocidental você vê só as queixas, trata, medica e você não quer saber o que a pessoa come, se a pessoa dorme bem, como está o relacionamento com a família dela, no trabalho. [...] A medicina ocidental é mais sintomática. [...] Você trata também o paciente, mas eu acho que é mais limitado. Na medicina oriental você vê o paciente como um todo, você consegue tratar mais que os sintomas. (Profissional 20)

As entrevistadas 5 e 21 corroboram com tal ideia, exemplificando as diferenças entre as medicinas no tratamento de dores na região da cabeça.

São diferentes atuações. [...] no diagnóstico de cefaleia e enxaqueca, a base para medicina chinesa é outra, a medicina convencional é um medicamento que você vai dar. Nós temos uma diversidade grande na medicina tradicional chinesa de diagnósticos, então a sua enxaqueca é diferente da minha. A medicina tradicional vê o indivíduo mais integrado, vê ele mais como um todo; a gente tem que ver toda a ancestralidade de onde vem o Tchi.

(Profissional 5)

O médico comum fala: ah, você está com dor de cabeça? Ele não vai perguntar onde é a sua dor de cabeça, ele vai pedir um raio X do crânio ou uma tomografia, ver se tem um tumor, alguma coisa, e se não tem nada ele vai dar medicação. E não funciona. Diferente da medicina tradicional chinesa que você vai tentar definir por que você está tendo isso. É por um problema de estômago? É localizado aqui? [...] então eu vou tratar o estômago, não vou tratar o fígado ou o rim. Eu estou com dor temporal então é uma vesícula, dor no fundo do olho é fígado.

(Profissional 21)

Houve, nos discursos dos entrevistados, referência a aspectos da visão tradicional de entender a vitalidade do corpo e sua influência na saúde das pessoas, pontos que foram absorvidos e considerados válidos, mesmo diferindo radicalmente ou sendo refutados pela racionalidade médica moderna.

Eu vejo a medicina chinesa como uma medicina energética, que trata da energia, que trata do ser, não como corpo físico, eu acho que é um ser mais global, talvez espiritual, não sei se é essa definição, mas é um ser energético que depende daquela energia para sobreviver e para viver.

(Profissional 12)

Agulhamento é você fazer a sua energia estar boa para passar para o paciente, você pode ir agulhar o mesmo ponto que eu, se a sua energia não estiver boa não vai melhorar. Acupuntura não é só assim, põe um pouquinho ali que funciona, não é assim, você tem que estar bem, você tem que estar estável energeticamente, para poder ajudar o próximo, o paciente.

(Profissional 21)

A profissional 21 detalhou algumas diferenças de visão quanto à origem dos processos de adoecimento.

Hoje eu sei que o vento frio, pela medicina tradicional chinesa, pode aumentar as suas dores articulares, pode piorar. Então os antigos falavam coisas que talvez eles não tivessem o conhecimento, mas aprenderam de algum lugar. E a gente, agora depois que você faz a medicina tradicional chinesa, entende que isto realmente é verdade. Por que dá torcicolo? Porque bateu o vento, você lavou o cabelo e o vento bateu aqui, onde tem o canal da bexiga e é exatamente na região de pescoço. [...] Alguns tipos de alimento, muito frio, quando você é muito yin que você é mais gelado, você tem a tendência de comer alimentos mais quentes. Quando você é o inverso você adora uma aguinha gelada, porque você é mais yang.

(Profissional 21)

Contudo, apesar de conceber que há lógicas diferentes entre ambas as medicinas, a entrevistada 21 argumentou que só pessoas graduadas em Medicina estão aptas a aplicar acupuntura, posicionando-se em concordância com os argumentos postulados pelos representantes das associações médicas.

É completamente diferente uma da outra. [...] e não adianta querer ajustar a medicina oriental à ocidental que não vai. Eu acho que tem que crescer sim a acupuntura, mas com médicos formados e que realmente saibam o que estão fazendo. [...] a população tem que se conscientizar que a acupuntura é do médico.

(Profissional 21)

Os entrevistados foram questionados se sua formação prévia em profissões da área da Saúde (biomédica) lhes trouxe vantagens para o entendimento da MTC. Todos relataram que seus conhecimentos anteriores não contribuíram para seu exercício como acupunturista, explicitando uma visão de que há referenciais distintos entre ambas as medicinas.

Senti muita dificuldade, é muito oposto da medicina ocidental, e olha que eu já tinha tentado fazer homeopatia quando eu era estudante, mas não consegui porque você tem que parar a medicina (ortodoxa).

(Profissional 3)

Nos primeiros seis meses do curso eu pensei em desistir, eu falava: que coisa louca um mundo completamente fora e à parte. Mas aí o meu professor falou: agora pensa na lógica chinesa, pensa que é uma outra medicina que você está fazendo.

(Profissional 4)

Os entrevistados não traçaram paralelos entre as duas medicinas nem consideraram fundamental a formação prévia em medicina ocidental (ou outras profissões da saúde) para entender a lógica ou exercer a prática da medicina chinesa.

Por fim, buscou-se conhecer como se realizava a prática da acupuntura pelos profissionais para compreender a sua implantação institucional. Foram observadas distintas e variadas restrições para a aplicabilidade do cuidado com acupuntura por parte dos 21 profissionais. Quatro profissionais (três médicos e uma dentista) relataram não aplicar acupuntura devido à coordenação do serviço não disponibilizar horários para tal e/ou a UBS não ter espaço físico disponível para esse tipo de atendimento.

Eu preciso de pelo menos dez minutos para pontuar, conversar um pouquinho. Mais 20 a 25 minutos para ele ficar repousando e mais cinco para tirar as agulhas e ver se está tudo bem. [...] A Acupuntura acaba sendo vista como um luxo, como um tempo perdido, como pacientes que eu deixo de atender.

(Profissional 16)

Outros cinco entrevistados (quatro enfermeiras e um farmacêutico) não atuavam por não serem autorizados pela coordenação das Práticas Integrativas da Secretaria Municipal de Saúde, em consequência de uma ação judicial movida pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CRM-SP) que reivindicava a exclusividade médica da prática da acupuntura11 Contatore OA. Cuidado, acupuntura e Atenção Primária à Saúde: conceitos em construção e correlação [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020.. Portanto, apenas os profissionais graduados em Medicina atuavam com acupuntura no município de Campinas/SP no período em que se efetuou esta pesquisa. Dos 15 médicos entrevistados, nove declararam ter um dia específico para atendimento; três optaram por utilizar a acupuntura apenas em uso emergencial nos seus atendimentos, tendo dois deles se exonerado de seus cargos durante a pesquisa; três não aplicavam por decisão da coordenação de seus serviços, assim como, pela mesma razão, o profissional dentista não atuava como acupunturista. Os enfermeiros e o farmacêutico não realizavam acupuntura por não serem autorizados pela coordenação das Práticas Integrativas da Secretaria Municipal de Saúde. Portanto, ao final da pesquisa, apenas sete profissionais mantinham uma prática clínica regular.

Observou-se ainda uma grande assimetria nas condições em que os profissionais aplicavam acupuntura, havendo desigualdade no apoio ofertado pela coordenação dos serviços, o que se refletia nas condições de espaço físico disponível e em limitações de agenda. Apenas um profissional podia escolher quando atender; todos os outros dispunham de um período, um dia por semana para atuar com acupuntura: “eu não faço mais alopatia há anos. (...) Só faço homeopatia e acupuntura, graças a Deus (risos). Eu não queria mais fazer alopatia, morro de medo de perder esse privilégio, porque é um privilégio”. (Profissional 2).

Entre os entrevistados, três dispunham de salas privativas para os atendimentos de acupuntura nos serviços, o que permitia aos usuários ficarem deitados durante a aplicação; dois atendiam individualmente os usuários no consultório, mas, após aplicarem as agulhas, eram encaminhados ao lado de fora da sala, no corredor, para esperarem sentados até o momento de retirada das agulhas; dois faziam atendimento em grupo e utilizavam uma grande sala do Centro de Saúde, que comportava muitas pessoas, e cada usuário recebia a aplicação das agulhas sentado em uma cadeira e, após o agulhamento, deslocavam-se para outra cadeira e esperavam o profissional chamá-los para a retirada das agulhas.

O quadro acima exemplificou dificuldades institucionais e limitações para a aplicação da acupuntura com amplitude em Campinas/SP, especialmente pelo pouco espaço físico e pela disponibilidade de agenda dos profissionais para praticarem a acupuntura, além da influência exercida pela categoria médica para a monopolização da prática naquele município.

Discussão

Três temáticas destacaram-se como resultado desta pesquisa. A primeira foi a constatação de que o referencial de cuidado utilizado na prática da acupuntura na APS de Campinas/SP vem sendo majoritariamente a forma tradicional da medicina chinesa. Esse achado responde à principal indagação deste artigo: com quais características de cuidado, predominantemente tradicional ou médico-científico, a prática da acupuntura está ocorrendo? A explícita diferenciação apresentada pelos profissionais entre a medicina chinesa e a Biomedicina, dos pontos de vista conceitual e prático, corroborou a constatação de que o referencial tradicional da acupuntura era o predominantemente praticado na APS de Campinas/SP. Essa diferenciação influenciou os profissionais a escolherem a prática da acupuntura tradicional por atender à sua busca de exercer um cuidado integral e contribuir para a diminuição do uso de fármacos.

A segunda temática foi a inexistência da prática clínica da acupuntura médico-científica e a sua aparente não relevância na escolha profissional pela formação em Acupuntura, constatadas nas entrevistas, sobretudo dos médicos. Isso conflitou com o discurso da corporação médica, que indica a prática da acupuntura como uma especialidade médica baseada em evidências científicas, sem referências à sua fundamentação tradicional. Entretanto, os médicos não manifestaram o uso clínico ou o interesse conceitual pela vertente biomédica de aplicar as agulhas. Eles eram os únicos profissionais que tinham permissão para atuar com acupuntura naquele momento nas UBSs de Campinas/SP.

A terceira temática refere-se às limitações e dificuldades que permeiam a prática da acupuntura na APS do município, não advindas dos profissionais e com possível influência da hegemonia dos procedimentos biomédicos perante outras lógicas de cuidado.

As três temáticas sinalizam mais do que as particularidades da aplicação da acupuntura na APS em Campinas/SP, pois mostram que a incorporação de um cuidado diverso da lógica biomédica não é totalmente compatível com a estrutura vigente dos serviços de saúde públicos, independentemente de sua introdução estar em consonância com as diretrizes traçadas pela PNPIC1515 Organização Mundial da Saúde. Tradicional medicine strategy – 2014-2023 [Internet]. Genebra: OMS; 2013 [citado 14 Mar 2014]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/92455/1/9789241506090_eng.pdf?ua=1
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
e do interesse dos técnicos em adotá-lo. A falta de apoio institucional, espaço físico adequado e espaço nas agendas para que pudessem aplicar a acupuntura se mostraram entraves significativos para a sustentação e a ampliação de sua oferta na APS municipal.

Como a Biomedicina não foi relatada como referencial de saber pelos entrevistados para a prática de acupuntura, não é possível afirmar se essa vertente teria maior legitimidade e apoio institucional do que a Acupuntura tradicional. Talvez isso pudesse ocorrer, já que a Acupuntura médico-científica tem apoio de alguns influentes atores sociais na área médica, filiados a associações médicas2020 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Para CFM, práticas integrativas incorporadas ao SUS não têm fundamento científico. Brasília: CFM; 2018 [citado 28 Fev 2021]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/para-cfm-praticas-integrativas-incorporadas-ao-sus-nao-tem-fundamento-cientifico/
https://portal.cfm.org.br/noticias/para-...

21 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Acupuntura - Área de atuação: sem área de atuação [Internet]. São Paulo: CREMESP; 2022 [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://cremesp.org.br/?siteAcao=Especialidades&acao=um&esp=66&area=51&acao=dois&campo=hist
https://cremesp.org.br/?siteAcao=Especia...

22 Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná. Nota oficial - Acupuntura é prática médica por excelência [Internet]. Curitiba: CRM-PR; 2007 [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://www.crmpr.org.br/Nota-oficial--Acupuntura-e-pratica-medica-por-excelencia-11-1511.shtml
https://www.crmpr.org.br/Nota-oficial--A...
-2323 Colégio Médico Brasileiro de Acupuntura. Esclarecimento sobre o exercício legal da acupuntura no Brasil [Internet]. São Paulo: CMBA; [s/d] [citado 31 Jan 2022]. Disponível em: https://cmba.org.br/esclarecimento-sobre-o-exercicio-legal-da-acupuntura-no-brasil/
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e ao meio acadêmico88 Pai HJ. Acupuntura: de terapia alternativa a especialidade médica. São Paulo: Ceimec; 2005.,99 Lin CA. Da medicina tradicional chinesa à prática de acupuntura médica baseada em evidência. Rev Med. 2013; 92(3):213-215.,2424 Lin CA, Hsing WT, Pai HJ. Acupuntura: prática baseada em evidências. Rev Med. 2008; 87(3):162-165.. Por meio de suas ações políticas e institucionais, tais atores deram destaque aos estudos biomédicos que avaliam a eficácia, a segurança da acupuntura e a sua qualificação perante o meio científico. A cientificidade da prática da acupuntura justifica e dá suporte para a sua utilização por profissionais médicos88 Pai HJ. Acupuntura: de terapia alternativa a especialidade médica. São Paulo: Ceimec; 2005.,99 Lin CA. Da medicina tradicional chinesa à prática de acupuntura médica baseada em evidência. Rev Med. 2013; 92(3):213-215.,2424 Lin CA, Hsing WT, Pai HJ. Acupuntura: prática baseada em evidências. Rev Med. 2008; 87(3):162-165..

Pressões variadas sobre a prática tradicional da acupuntura têm sido relatadas fora do Brasil, sobretudo em ambientes em que prepondera a lógica biomédica de compreender os processos de saúde e doença. Naqueles locais, acupunturistas médicos têm dificuldade em falar sobre sua prática perante os colegas e buscam dar um contorno científico à acupuntura, em função da posição de menor valor do método tradicional2525 Shuval JT, Gross R, Ashkenazi Y, Schachter L. Integrating CAM and biomedicine in primary care settings: physicians’ perspectives on boundaries and boundary work. Qual Health Res. 2012; 22(10):1317-1329.,2626 Keshet Y. Dual embedded agency: physicians implement integrative medicine in health-care organizations. Health (London). 2013; 17(6):605-621.. Atualmente, na China, médicos que recebem dupla formação, em medicina chinesa e medicina ocidental, têm dificuldade em lidar com as diferenças entre as concepções de cuidado e tendem para a Biomedicina, pelo respaldo que a ciência moderna lhes confere2727 Hua M, Fan J, Dong H, Sherer R. Integrating traditional Chinese medicine into Chinese medical education reform: issues and challenges. Int J Med Educ. 2017; 8:126-127.. Na Europa também houve a tentativa de desvalorizar a prática tradicional e criar um monopólio médico da prática da acupuntura66 Tavares LARF. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupunctura em Portugal [tese]. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa; 2010..

Apenas uma das pressões citadas acima foi observada nos relatos dos entrevistados não médicos: a monopolização da prática da acupuntura pela categoria médica. Alguns participantes não tinham autorização para atuar com acupuntura em razão de uma ação judicial movida pelo CRM-SP para que só médicos aplicassem acupuntura no município. Aparentemente, o único intuito do CRM-SP era garantir que somente médicos aplicassem acupuntura. Não havia discriminação do tipo de acupuntura que deveriam utilizar: tradicional ou médico-científica.

Essa suposição tem como base a liberdade com que os entrevistados médicos se referiram à sua formação e à prática clínica pela acupuntura tradicional chinesa, o que dá indícios de haver ambivalência e suspeição no discurso publicizado por representantes da categoria médica. Isso se confirma quando esses representantes afirmam que “a acupuntura, quando praticada como especialidade médica, é feita de maneira completamente diferente do que está colocado no SUS como uma prática integrativa, ou seja, é feita com base em evidências científicas e atinge alto grau de complexidade”2020 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Para CFM, práticas integrativas incorporadas ao SUS não têm fundamento científico. Brasília: CFM; 2018 [citado 28 Fev 2021]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/para-cfm-praticas-integrativas-incorporadas-ao-sus-nao-tem-fundamento-cientifico/
https://portal.cfm.org.br/noticias/para-...
. E não deixam transparecer que escolas certificadas pelo CFM formam médicos em Acupuntura tradicional chinesa. Supõe-se, portanto, que o discurso contrário à acupuntura tradicional só tem efeito prático quando tenta coibir outras categorias profissionais de atuarem com acupuntura.

Mesmo considerando que historicamente, já na China, houve supressões de conceitos ou noções da medicina chinesa polêmicos ou estranhos ao pensamento científico moderno, ainda assim seus preceitos não conseguem ser enquadrados ou mesmo comparados aos biomédicos. Tais aspectos foram explicitados pelos entrevistados ao abordarem a teoria e a prática da medicina chinesa/Acupuntura. Todavia, a distância entre os conceitos e métodos das duas medicinas não foi o suficiente para afetar a opinião dos profissionais, que avaliaram positivamente o potencial de cuidado da acupuntura tradicional praticada, sobretudo por atender expectativas de contemplar a integralidade do cuidado e diminuir o uso de fármacos. O município de Campinas/SP inter-relacionou a oferta de PIC na APS com a redução do consumo de medicamentos anti-inflamatórios1717 Bourdieu P. Understanding. Theory Cult Soc. 1996; 13(2):17-37. Doi: https://doi.org/10.1177/026327696013002002.
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.

Quanto às limitações encontradas para a aplicabilidade da acupuntura na APS de Campinas/SP, apenas sete dos 21 profissionais tinham agenda regular para acupuntura; e somente três deles tinham espaço físico adequado para posicionamento do corpo durante as sessões. Isso lhes propiciava utilizar maior variedade de técnicas da medicina chinesa e uma gama maior de pontos de acupuntura, ampliando as possibilidades de tratamento e relaxamento do usuário durante a aplicação. Os outros quatro profissionais, por falta de espaço físico adequado, eram obrigados a deixar as pessoas sentadas, com severas restrições em sua atuação.

A dinâmica adaptativa necessária vai além das condições físicas dos serviços; indica as dificuldades em se articular uma prática não hegemônica em um ambiente predominantemente organizado para realizar atendimentos clínicos biomédicos. Em tais locais, o espaço físico e a ação profissional foram pensados para uma intervenção rápida, centralizada no diagnóstico e no tratamento da doença, com pouca singularização do cuidado2828 Tesser CD. A verdade na biomedicina, reações adversas e efeitos colaterais: uma reflexão introdutória. Physis. 2007; 17(3):465-484.. Em contraposição, a medicina chinesa/acupuntura necessita de um tempo maior desde a primeira consulta, quando é efetuado o diagnóstico diferencial. A cada aplicação das agulhas ou de técnicas coadjuvantes da medicina chinesa, são avaliadas as necessidades pessoais do usuário, requerendo tempo para a escolha e a aplicação do tratamento, que pode variar em cada sessão2929 Tesser CD. Medicinas complementares: o que é necessário saber: homeopatia e medicina tradicional chinesa/acupuntura. São Paulo: Editora Unesp; 2010..

As considerações acima mostram algumas ambivalências decorrentes da diáspora da medicina chinesa/acupuntura em direção ao Ocidente, visto que, do ponto de vista macroinstitucional, a credibilidade e o apoio dados pela OMS à tradição médica chinesa foram fundamentais para a introdução mundial da Acupuntura na Saúde Pública. Porém, sua expansão tem sido atrelada à validação da Acupuntura perante a Biomedicina, o que resultou em uma disputa conceitual entre dois referenciais para a aplicação das agulhas: o saber tradicional e o saber médico-científico moderno ocidental. Essa disputa está caracterizada pela polarização, impossibilitando a complementaridade entre esses dois saberes.

Do ponto de vista microinstitucional, a expansão na Saúde Pública dessa prática só foi possível pela adesão de profissionais. No entanto, as instituições e seus profissionais são vinculados e certificados hegemonicamente pela medicina ocidental contemporânea, o que leva à predominância da reprodução de seus conceitos e métodos3030 Camargo Jr KR. A biomedicina. Physis. 2005; 15 Supl:177-201.. Como consequência, fica impactada a adoção e a livre utilização de métodos de cuidado não biomédicos, pois há uma pressão para que sejam adaptados à lógica dominante para existirem institucionalmente1313 Gale N. The sociology of traditional, complementary and alternative medicine. Sociol Compass. 2014; 8(6):805-822.. Porém, à revelia das pressões institucionais e da colonização biomédica da acupuntura, que desvalorizam os métodos tradicionais, nossos dados empíricos mostraram que o cuidado pela acupuntura tradicional está presente na APS e desperta interesse dos profissionais em utilizá-lo. Inferimos que isso ocorre pela disputa contra-hegemônica no cotidiano dos serviços. Parece que os profissionais se afastam relativamente dos discursos padronizados pela Biomedicina e se adaptam às diferentes realidades locais, criando espaços de resistência e sobrevida das bases autóctones da medicina chinesa.

Destacamos, por fim, que este estudo foi realizado em apenas um município e, por isso, não permite generalização para outras cidades. Esperamos que novas pesquisas em outros locais possam esclarecer quanto nossos resultados podem ser generalizados para a realidade da APS brasileira.

Conclusão

A formação em Acupuntura e a prática cotidiana dos profissionais que a aplicam na APS em Campinas/SP estão referenciadas na medicina tradicional chinesa, em acordo com as indicações da PNPIC, não tendo sido relatado o uso da acupuntura médico-científica. O cotidiano investigado dos serviços de APS exemplifica a existência de uma pluralidade epistêmica advinda da manutenção e da aplicação de princípios da medicina chinesa. Tal fato enriquece a prática em Saúde Pública por meio de uma diversidade de abordagens para a gama complexa de problemas manejados na APS. Isso possibilita aos usuários o acesso a outras lógicas de cuidado, para além da hegemônica Biomedicina. Todavia, há dificuldades institucionais (tempo na agenda, espaço físico, acomodações) para a introdução de conhecimentos exógenos à Biomedicina na APS, trazendo o questionamento acerca das possibilidades de continuidade e desenvolvimento da Acupuntura tradicional na esfera pública. Mesmo assim, é possível (e desejado pelos profissionais que aplicam a acupuntura) introduzir e exercer os saberes da medicina chinesa tradicional para a consecução de outras formas de cuidado que possam contribuir com a saúde da população atendida na APS.

Agradecimento

À profa. Ana Paula Malfitano pela colaboração para a publicação deste artigo.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Código 001.
    Charles DalcanaleTesser recebeu bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, processo 313822/2021-2. Nelson Filice de Barros recebeu bolsa de produtividade em pesquisa modalidade: PQ Categoria/Nível: 1D, processo 308452/2019-4, demanda/chamada: chamada CNPq 06/2019.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Aceito
    23 Mar 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br