Sobre pandemias, ciência(s) e cuidado: desafios da Saúde Coletiva e do Sistema Único de Saúde (SUS) para a invenção de uma vida outra

On pandemics, science(s) and care: challenges of Colective Health and Brazilian National Health System (SUS) for the invention of another life

Sobre pandemias, ciencia(s) ycCuidado: desafíos de la Salud Coletiva y del Sistema Brasileño de Salud (SUS) para la invención de otra vida

Sérgio Resende Carvalho Sobre o autor
O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer.Nesse claro-escuro surgem os monstros.Nosotros merecemos algo mejor que “Volver a la Normalidad”11 Fundação Bienal de São Paulo. 34ª Bienal de São Paulo: faz escuro, mas eu canto. In: Olse ED, organizador. Catálogo. São Paulo: Bienal de São Paulo; 2021.. (p. 13)

No contexto de dor, angústia, incerteza e desesperança dos tempos que vivemos, o artigo que comento a seguir parece ir ao encontro da proposta que guia preocupações ético-políticas da 34ª Bienal de São Paulo que nos convidam a aceitar o desafio de “remontar o corpo do mundo em torno de políticas da diferença”, produzindo uma “imaginação radical de outros modos de ser do mundo e de ser no mundo”, que entenda que o “corpo é geopolítico e ao mesmo tempo afetivo” – e que é justamente quando este corpo se abre à multiplicidade do mundo” que poderemos “encontrar o caminho para construir sua própria singularidade”11 Fundação Bienal de São Paulo. 34ª Bienal de São Paulo: faz escuro, mas eu canto. In: Olse ED, organizador. Catálogo. São Paulo: Bienal de São Paulo; 2021. (p. 244).

Este convite de abertura para o múltiplo, a diferença e a reinvenção daquilo que pensamos ser me parece se aproximar muito do texto “Pandemia, SUS e Saúde Coletiva: COM-posições e aberturas para mundos outros”22 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Slomp Junior H, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
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quando este se propõe a refletir sobre a invenção de outros possíveis.

O fazem, e isto é interessante notar, buscando a produção de uma escrita não muito comum no campo, na qual se delineia distintos planos de análise do fenômeno/título examinado – que podem ser lidos a parte, mas que ganham consistência e força na leitura do ensaio como um todo – que nos convoca a refletir sobre os efeitos da pandemia Covid-19 no momento em que esta explicita e intensifica tendências históricas de desenvolvimento do social e coloca em análise – e em disputa – projetos radicalmente diferentes da vida em sociedade.

Impossibilitado pela exiguidade do espaço da escrita, opto aqui, entre tantos temas instigantes que o artigo aborda, por tatear e refletir sobre algumas ideias/provocações dos autores na expectativa que esta lhes provoque o desejo de seguir dialogando e aprofundando as reflexões que o texto enseja.

Sobre a(s) ciência(s) e negacionismo(s)

Mais do que criticar o discurso negacionista do atual governo e suas trágicas consequências – como a recém-superada marca de seiscentos mil óbitos por Covid-19 em nosso país – e contrapor-lhe uma ideia de ciência que nos salvaria da barbárie, os autores realizam uma interessante torção nesse debate. O fazem argumentando que, no cenário atual, é possível observar a presença de negacionismos outros que se fazem presentes, por exemplo, nas disputas em torno dos saberes que buscam pautar a nossa vida em sociedade.

Julgo, nesse sentido, de especial relevância a desconstrução que se faz de um determinado discurso das ciências que hoje permeia o debate público no Brasil sustentado por estratégias de enfrentamento da Covid-19 que negam acúmulos e experiências exemplares que o SUS e a Saúde Coletiva construíram ao longo das últimas décadas, entre as quais aquelas que têm como objeto os cuidados na rede básica e no território. Trata-se de uma rede de cuidados que poderia estar hoje cumprindo um papel central no enfrentamento da pandemia, à semelhança do que vem ocorrendo em outros países33 Carvalho SR, Padilha AR, Oliveira CF, Paschoalotte L, Cunha GT. Sistemas públicos universais de saúde e a experiência cubana em face da pandemia de Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25:e210145. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210145.
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, o que vem evitando milhares de mortes.

Nesse processo, acelera-se o desmonte do SUS como um bem público universal, agravando um quadro que se intensificou a partir dos governos pós-golpe de 2016. Desconstrução, portanto, de direitos arduamente conquistados e que teve, cabe notar, entre seus principais operadores o ministro da Saúde do atual governo, que, notável ironia, hoje se perfila como alternativa presidencial nas próximas eleições tendo, como baluarte, a defesa das “ciências” e, pasmem, do SUS!

Crítica à parte, entendo que os autores não se posicionam aqui contra a “ciências”, mas, acima de tudo, têm um entendimento de que esta constitui uma forca (i)material central em disputa por saberes/poderes na sociedade e que, enquanto discurso e prática, têm um caráter performático o qual cabe atenção44 Foucault M. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes; 1972.,55 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003..

Buscando sustentar a produção de linhas de fuga ao hegemônico, entendo que os autores nos convidam, o tempo todo, a atualizar nossas percepções e valores propondo que pautemos nossas premissas que orientam nossas ações em uma perspectiva que afirme sempre, e em qualquer lugar, que toda vida vale a pena.

Não contentes em explorar paradoxos e contradições apontadas, os autores cutucam onças com a vara curta – corpos onças, que, à semelhança daquele que me constitui, pautam suas vidas pela militância no SUS e se veem como devedores e admiradores de uma construção teórico-prática sui generis na curta história dos direitos em nosso país – quando nos provocam a questionar se, afinal, em tempos de intensificação da crise do campo e do SUS; e explicitação dos paradoxos e problemas da vida em sociedade é possível afirmar que a Saúde Coletiva tem enfrentado suas fragilidades e constitutividades. Dialogam com essa questão preconizando que, talvez, aqui se encontre parte de nossas dificuldades e desafios, indagando se não estaria ocorrendo aqui, também, novos negacionismos, quando não reconhecemos que muito do que construímos como competência para agir e viver, no mundo em que vivíamos, já não produz efeitos tão efetivos no momento mesmo em que não temos conseguido sair dos “duros referenciais de Ciência de Estado e de suas concepções de teorias políticas já inaplicáveis”22 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Slomp Junior H, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
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(p. 3).

Embora me aproxime dessa leitura, pergunto-me se, aqui, os autores não generalizam um diagnóstico e/ou mesmo simplificam uma realidade e um campo plural no qual, inclusive, fazem-se presentes pensamentos minoritários que sempre foram – e seguem sendo – constituintes da Saúde Coletiva.

Por outro lado, seria interessante ouvir dos autores se consideram que estaria ocorrendo, na intensidade e complexidade da crise que vivemos (e, não menos importante, na ação de ’novos autores/sujeitos que entram em cena’ afirmando políticas e lutas de resistência – de gênero, étnicas, raciais, das ruas, entre outras –), uma não sensibilizando maior daqueles que habitam o campo da Saúde Coletiva à multiplicidade do mundo e a políticas da diferença que aponte para devires outros?

Sobre o cuidado e a reinvenção da rede básica de saúde

Ainda neste diálogo com o campo, os autores nos questionam: “Que avisos não estamos escutando, vindos das comunidades, das ruas, dos usuários-cidadãos e dos trabalhadores da saúde?”. Não teria o movimento sanitário brasileiro facilitado a cristalização da realidade hoje vivenciada pela rede básica – enfraquecida e subsumida à lógica biomédica/hospitalar?

“Sim e não”, eu, mineiramente, responderia.

Não, por entender que o SUS, diferente de como o sonhamos e o construímos, sofre um processo acelerado de desconstrução no pós-golpe de 2016, no qual operaram vetores externos ao próprio campo não apenas nacionais, mas também internacionais, resultantes de uma estratégia capitalística de destruição da vida – humana e não humana –, com importantes dobras/interferências em nosso país.

Sim – e aqui gostaria de estender-me um pouco – por termos talvez, entre outros fatores, ficado muito reféns de discursos/intervenções superficiais de promoção, prevenção, cura e reabilitação, de elogio fácil à Atenção Primária/Primitiva a Saúde (APS), à Alma-Ata, a Estratégias como a Saúde da Família e a práticas de vigilância e intervenções sobre os corpos, escaparam a nós, ou não demos a devida atenção, algumas questões centrais a um projeto radicalmente comprometido com a (re)invenção/defesa da vida.

Entre estas, julgo relevante mencionar a problemática do cuidado que, como nos convida autores como Foucault66 Foucault M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Foucault M. Ditos & Escritos V - ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2004. p. 265-287., tem uma profunda vinculação com o tema das práticas da liberdade e invenção da vida no limite do possível. Um cuidado que faz referência a um cuidar do outro e, não menos importante, ao cuidado de si que reconhece a diferença como um espaço de afirmação intercessora do viver e da produção do comum.

Entendo, aproximando-me dos autores, que tomar essa questão como um marcador permite-nos, talvez, colocar em questão formulações e práticas buscando, por exemplo, discernir aquilo que nelas se interdita e se disciplina o agir/pensar daquilo que subsidia e sustenta uma rede básica de cuidado. Uma rede, viva, que afirme a centralidade dos territórios existenciais e reconhece, sempre e de antemão, que, ao falarmos de cuidado, remetemo-nos à vida, mais do que à saúde, sem com isso deixar de reconhecer a importância e o alcance do setor Saúde para a afirmação da vida no limite do possível.

É nesse contexto que temos, como muitos, testemunhado e vivenciado em investigações/interferências e parcerias a riqueza e potência para o diálogo e atualização do SUS, na forma, por exemplo, de parcerias com aqueles que vivem em territórios marginais de produção de vida77 Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Rede Unida; 2019. e que, a todo momento, colocam em análise teorias e práticas que viemos construindo ao longo da curta/longa trajetória de construção do SUS. Caminho sem dúvida potente, como os muitos indicados pelos autores de um projeto de reinvindicação de uma comunidade que ainda não somos, disputando, no processo, memórias de um passado e buscando construir um hoje e um futuro diferente deste que agora nos invade.

  • Carvalho SR. Sobre pandemias, ciência(s) e cuidado: desafios da Saúde Coletiva e do Sistema Único de Saúde (SUS) para a invenção de uma vida outra. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210680 https://doi.org/10.1590/interface.210680

Referências

  • 1
    Fundação Bienal de São Paulo. 34ª Bienal de São Paulo: faz escuro, mas eu canto. In: Olse ED, organizador. Catálogo. São Paulo: Bienal de São Paulo; 2021.
  • 2
    Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Slomp Junior H, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210491. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210491.
    » https://doi.org/10.1590/interface.210491
  • 3
    Carvalho SR, Padilha AR, Oliveira CF, Paschoalotte L, Cunha GT. Sistemas públicos universais de saúde e a experiência cubana em face da pandemia de Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25:e210145. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.210145.
    » https://doi.org/10.1590/interface.210145
  • 4
    Foucault M. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes; 1972.
  • 5
    Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.
  • 6
    Foucault M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Foucault M. Ditos & Escritos V - ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2004. p. 265-287.
  • 7
    Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Rede Unida; 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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