Resumos

Introdução

Nos últimos anos se fortalece a ideia de que os interesses produtivos e sociais convergem e podem criar um círculo virtuoso capaz de resolver os problemas de saúde¹1 Vianna CMM, Fermam MKS, Rodrigues MPS, Mosegui GBG. Articulação entre os interesses produtivos e sociais da saúde no Sistema Nacional de Inovação de Saúde: a experiência do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO). Cad Saude Publica. 2016; 32 Suppl 2:e00189414.. Nesse cenário, observa-se que a crise instalada pela pandemia da Covid-19 é um desafio enorme para os setores produtivos e de saúde – em especial o Sistema Único de Saúde (SUS) – e aponta para a necessidade de articulação e diálogo entre esses setores.

Essas mudanças podem estimular a produção de tecnologias inovadoras viáveis à realidade nacional, com foco em segurança e qualidade, sem onerar os cofres públicos, mas também exigem adaptações e expressam-se em termos de necessidade de reorganização dos serviços e processos de trabalho para a assistência e o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS)¹1 Vianna CMM, Fermam MKS, Rodrigues MPS, Mosegui GBG. Articulação entre os interesses produtivos e sociais da saúde no Sistema Nacional de Inovação de Saúde: a experiência do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO). Cad Saude Publica. 2016; 32 Suppl 2:e00189414.

2 Aquino EML, Silveira MH, Pescarini JM, Aquino R, Souza-Filho JA, Rocha AS, et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de Covid-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Cienc Saude Colet. 2020; 25 Suppl 1:2423-2446.^-33 Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC, Sarti TD, Lazarini WS, et al. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela Covid-19? Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(2):1-5..

A busca pela ampliação de novas formas de produzir saúde e empreender esforços para adoção de medidas que fortaleçam a incorporação de tecnologias inovadoras que possibilitem a qualificação da assistência, da educação e da gestão tem sido perseguida conforme os preceitos éticos e legais para o exercício de excelência dessas práticas⁴4 Rezende EJC, Melo MCB, Tavares EC, Santos AF, Souza C. Ética e telessaúde: reflexões para uma prática segura. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):58-65..

Desde 2010, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) recomenda o uso de tecnologias da informação e comunicação (TICs) para o intercâmbio de conhecimentos no setor Saúde; o desenvolvimento de habilidades e competências profissionais; melhor desempenho das funções essenciais de Saúde Pública; e redução das desigualdades de acesso aos serviços de saúde⁵5 Andrade MV, Maia CS, Cardoso MBA, Ribeiro ALP. Custo-benefício do serviço de telecardiologia no Estado de Minas Gerais: projeto Minas Telecardio. Arq BrasCardiol. 2011; 97(4):307-316.^,66 Ruas SSM, Assunção AA. Facilitadores e barreiras à utilização das teleconsultorias off-line: a experiência dos médicos da atenção primária de Belo Horizonte. Rev Eletr Com Inf Inov Saude. 2013; 7(1):1-22..

Na atualidade, observa-se a rápida expansão na aplicação de recursos de telessaúde e seu potencial em contribuir com a indução de mudanças nas práticas de trabalho, alterando a forma convencional de atendimento e as estruturas organizacionais dos serviços de saúde⁴4 Rezende EJC, Melo MCB, Tavares EC, Santos AF, Souza C. Ética e telessaúde: reflexões para uma prática segura. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):58-65.^,77 Gagnon MP, Duplantie J, Fortin JP, Landry R. Implementing telehealth to support medical practice in rural/remote regions: what are the conditions for success? Implement Sci. 2006; 1(18):1-8..

A limitação da atuação presencial de profissionais em virtude da pandemia³3 Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC, Sarti TD, Lazarini WS, et al. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela Covid-19? Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(2):1-5. disparou outras possibilidades em decorrência das mudanças tecnológicas em curso que permitiram aos serviços de saúde a produção do cuidado por meio do uso das telecomunicações e internet, características de uma sociedade-redes⁸8 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Rezende LA, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-3474.

9 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00088920.^-1010 Castells M. A sociedade em rede. 6a Ed. São Paulo: Paz e Terra;1999..

Nesse contexto, o telemonitoramento e o teleatendimento estrategicamente se constituem uma inovação disruptiva por possibilitar a construção de alternativas tecnológicas às práticas tradicionais de saúde por meio da melhoria de indicadores de desempenho e da elaboração de protocolos clínicos e de gestão⁹9 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00088920..

A teleconsultoria é um dispositivo de apoio às atividades de gestão, atenção e educação para ampliação da capacidade resolutiva e de responsabilidade da APS, baseada nas melhores evidências científicas e adaptada às realidades locorregionais em conformidade com os princípios do SUS¹¹11 Alkmim MBM, Marcolino MS, Figueira RM, Sousa L, Nunes MS, Cardoso CS, et al. Factors associated with the use of a teleconsultation system in Brazilian primary care. Telemed J E. Health. 2015; 21(6):473-483.^,1212 Maeyama MA, Calvo MCM. A integração do telessaúde nas centrais de regulação: a teleconsultoria como mediadora entre a atenção básica e a atenção especializada. Rev Bras Educ Med. 2018; 42(2):63-72..

As ações de teleorientação, telemonitoramento e teleducação têm permitido soluções inovadoras por possibilitar: a) atendimento aos usuários portadores de doenças crônicas e comorbidades preexistentes, entre outros grupos vulneráveis; b) estratificação de risco da população; c) coordenação dos recursos existentes, facilitando acesso às diretrizes orientadoras da gestão do cuidado, necessárias ao gerenciamento da situação de saúde⁴4 Rezende EJC, Melo MCB, Tavares EC, Santos AF, Souza C. Ética e telessaúde: reflexões para uma prática segura. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):58-65.; e d) monitoramento dos casos sintomáticos, leves e moderados de Covid-19.

O “Produção de vidas no contexto de Covid-19” é um projeto de articulação interinstitucional e intersetorial no campo da extensão, ensino e pesquisa, que envolveu universidades e institutos públicos, organizações não governamentais, o Ministério Público do Trabalho e a Telessaúde BA, constituindo uma rede de apoio, interdisciplinar, interprofissional e estratégica para organizar as atividades a distância no auxílio ao enfrentamento da crise, caracterizada como teleconsultoria de gestão.

Desse modo, o artigo teve por objetivo compartilhar uma análise crítica e reflexiva a partir de uma experiência de extensão-ensino-serviço e comunidade no contexto da pandemia de Covid-19.

Metodologia

Baseia-se na técnica de “relato de experiência” de um estudo multiterritorial, de construção teórico-prático de uma experiência no campo da Extensão, Ensino e da Pesquisa Universitária, envolvendo docentes de diferentes instituições de ensino superior inseridos no projeto “Produção de vidas no contexto de Covid-19”.

As ações articularam programas e projetos de diversos setores das instituições de ensino e dos serviços (IES) e atenderam aos aspectos éticos, com aprovação pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da CAE n. 3860120.7 0000 5526.

A teleconsultoria (de gestão) foi criada por meio de uma rede de apoio diversificada, formada por um grupo interdisciplinar e interprofissional, que desenvolveu, de forma transversal, intra e intersetorial e remotamente, um conjunto de projetos de intervenção e operações de auxílio aos municípios no enfrentamento da crise sanitária da Covid-19. A constituição dos grupos de trabalho se deu a partir da necessidade de organizar as demandas municipais e distribuí-las de acordo com a expertise dos grupos, a fim de que as ações implementadas fossem resolutivas.

A operacionalização dessa proposta se deu a partir da constituição de uma rede de apoio integrada pelas instituições, a saber: Universidade Estadual de Santa Cruz; Universidade Federal do Sul da Bahia; Universidade Estadual de Feira de Santana; Instituto Federal da Bahia (campus Ilhéus); Núcleo Regional de Saúde-Sul (NRS-Sul); Conselhos Municipais de Saúde (CMS); Secretarias Municipais de Saúde (SMS); Telessaúde/SESAB; Associação dos Municípios do Sul, Extremo Sul e Sudoeste da Bahia (AMURC); Ministério Público de Itabuna e Ilhéus; e Ministério do Trabalho (MPT).

Para tanto, foram criados o Grupo de Trabalho Gestor (GTG) – coordenação do projeto; o Grupo de Demanda Municipal (GDM), formado pelos coordenadores dos grupos de trabalho (GTs); o Grupo de Atenção à Saúde (GTAS), formado pelos GTs de atenção à saúde da mulher, atenção à saúde do idoso, saúde mental e população em situação de rua e de condições crônicas não transmissíveis; o Grupo de Trabalho de Vigilância em Saúde, formado pelas vigilâncias epidemiológica, saúde ambiental, saúde do trabalhador e sanitária; e, por fim, o Grupo de Trabalho de Serviço Social e participação e controle social.

Ademais, foram mobilizados discentes dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu e stricto sensu e da residência multiprofissional em saúde da família, especialistas nas áreas de epidemiologia, clínica, gestão, planejamento, educação, informação e comunicação em saúde, assim como membros da sociedade civil organizada por meio de seus representantes – sindicatos, associações e conselhos.

A consultoria foi desenvolvida pela articulação entre os sujeitos teleconsultores e as equipes gestoras dos municípios, mediada pelas TICs (Webconf, Google Meet, Zoom, Telessaúde/BA e WhatsApp). Nesses encontros, para os problemas identificados e priorizados foram desenvolvidas ações e atividades para impulsionar o atendimento na APS, que se encontravam paralisadas devido à ausência de governança em nível local.

A teleconsultoria de gestão (figura 1) foi disparada a partir de encontros síncronos, por meio de rodas de conversas virtuais com a participação de trinta municípios que aderiram ao chamamento do projeto, organizados em grupos conforme Regiões de Saúde de Itabuna ou de Ilhéus.

Dentre as medidas propostas destacaram-se: as ações de mitigação da Covid-19, o acompanhamento de indicadores de saúde locais, a organização dos fluxos de atendimentos nas unidades saúde da família (USF) e o monitoramento e a avaliação dos casos suspeitos, confirmados e recuperados de Covid-19.

Produção de grupos de trabalho em uma perspectiva integradora: possibilidades e desafios

A produção de grupos de trabalhos intersetoriais, interdisciplinares e interprofissionais tem se constituído em um desafio para seus idealizadores na implementação de ações, em especial, as programáticas, nas atividades no âmbito da APS dos trinta municípios que compõem as Regiões de Saúde de Itabuna e de Ilhéus do projeto de extensão “Produção de vidas no contexto de Covid-19” e de pesquisa Teleatendimento e Telemonitoramento como Estratégia de Organização da Produção do Cuidado na APS.

Esse desafio se articula à gênese desses grupos e dos processos institucionais internos e externos que engendraram sua potência e criatividade; e permitiu a reflexão acerca da micropolítica do processo de trabalho das equipes de saúde da família e o seu papel na recolocação dos problemas que estão em jogo para produção do cuidado no âmbito da APS em tempos de pandemia.

Nesse relato, considera-se grupo como um conjunto de indivíduos que representam uma totalidade ou unidade diferenciada de qualquer outro grupo e, durante certo tempo interação, desenvolveu um sistema de códigos, tradições e referências, em função de certos objetivos. A sua constituição relaciona-se, sobretudo, com o indivíduo em ação e em relação, e quando os indivíduos e suas subjetividades são menos importantes do que códigos, estruturas e regulamentos, prevalecem as instituições em vez dos grupos¹³13 Ávila LA. O Grupo como Método. Psicol Rev. 1999; 9:61-74.^,1414 Baremblitt G. Grupos: teoria e técnica. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2009..

Analisar a constituição de grupos na perspectiva do institucionalismo permitiu acompanhar os acontecimentos ocorridos decorrentes da evolução do capitalismo mundial integrado a partir da década de 1970 e os efeitos produzidos no desenvolvimento da teoria e dinâmica de grupos e de instituição expressos pelo retraimento e desaparecimento de toda experiência crítica, ativa e instituinte, articulada à noção de contrainstituição dos processos grupais de tendência política anti-institucional e socioanalítica, em que um grande grupo constituído por todos os grupos envolvidos se coloca em situação de intervenção, ou seja: Assembleia Geral (AG)¹⁵15 Lourau R. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Editora Hucitec; 2004..

Em todas as formações sociais observa-se que os movimentos e acontecimentos são (re)produzidos a partir de um conjunto de indivíduos entremeados pelas instituições – formas estruturadas das relações sociais –, partícipes de uma totalidade social em que o trabalho grupal, a partir de sua ação na realidade social, poderá forjar uma trajetória mais dialética, flexível e transversal capaz de disparar diferentes acontecimentos e movimentos de ruptura, manutenção e reprodução, produtores de autonomia¹⁵15 Lourau R. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Editora Hucitec; 2004..

No que pese a realidade social, que envolve operar por meio de problemas complexos e mal-estruturados, as instituições continuam a se organizar por setores, comitês e grupos de trabalhos para enfrentá-los, instrumentalizados por um saber departamentalizado produzido nas universidades¹⁶16 Matus C. Teoria do jogo social. São Paulo: FUNDAP; 2005.^,1717 Ferreira VSC. Intersetorialidade em Saúde: um estudo de caso. In: Hartz ZMA, Vieira da Silva L, organizadoras. Avaliação em Saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Fiocruz; 2005. p. 103-150., o que tem dificultado uma visão mais ampla acerca dos problemas presentes nesses territórios.

Romper com os modos de operar processos de trabalho centrados na fragmentação e na divisão da sociedade em setores e departamentos requer decisão política e reorganização da composição de forças, assim como a análise de como se estrutura o poder no setor Saúde¹⁸18 Testa M. Planificación Estratégica en el Sector Salud. Caracas: CENDES/UCV; 1981., visto que operam de forma hierárquica, setorial e centralizada; e ensejam a competitividade e desacumulação do substrato que fortalece a coesão e os processos molares territorializados¹⁹19 Ferreira VSC. Intersetorialidade em Saúde: um estudo de caso. [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2000.^,2020 Rolnik S. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Sulina, Editora UFGRS; 2006..

Essa fragmentação do real no plano teórico-prático advém das correntes positivistas, cujo tratamento proposto a esses problemas perpassam pelo seu isolamento e fragmentação, para analisá-lo em suas dimensões mais imediatas, impossibilitando o aprofundamento do olhar para além dos fatos mais visíveis²¹21 Testa M. Pensar em Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992..

Sabe-se que em diversos e diferentes momentos os GTs desenvolveram interesses e objetivos diferentes aos do grupo, por vezes contraditórios e particulares que direcionavam e definiam suas ações, forjando movimentos de decomposição que enfraqueciam o papel transversalizador e agregador do grupo.

Em momentos outros, apresentavam movimentos de composições e compartilhamento, colocando-os em dobra, pois conviver nesses territórios exigiu a produção de processos de subjetivação capazes de abalar as estruturas molares das máscaras e de criar linhas de fugas para atuar em um território que pedia passagem para elementos de outras composições inovadoras e democráticas²⁰20 Rolnik S. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Sulina, Editora UFGRS; 2006..

As relações de poder estabelecidas intra e intergrupo atravessavam os modos de agir grupal rizomaticamente²²22 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2a Ed. Rio de Janeiro: Editora 34; 2004. v. 1., indo se plasmar e direcionando saberes e fazeres mais ou menos coletivos, compartilhados e de cogestão. Esse poder, ao se ramificar, atuou muitas vezes reproduzindo e mantendo o status quo de determinados grupos, impossibilitando uma visão mais ampla das necessidades dos gestores, equipe gestora e profissionais de saúde dos municípios.

Os resultados do estudo de Ferreira¹⁷17 Ferreira VSC. Intersetorialidade em Saúde: um estudo de caso. In: Hartz ZMA, Vieira da Silva L, organizadoras. Avaliação em Saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Fiocruz; 2005. p. 103-150. sobre a implantação das ações intersetoriais dos grupos de trabalho estadual (GTIE), regional (GTIR) e municipal (GTIM) apontaram dificuldades no processo de trabalho dos grupos, relacionados à incorporação do projeto, expresso pelo discurso de externalidade e distanciamento em relação ao mesmo, o qual não foi incorporado em seus planos operativos (adesão formal) quando demandados pelos municípios, implicando em baixa institucionalização pelos GTs.

O reconhecimento da incorporação e/ou institucionalização do projeto por parte de alguns grupos pode significar acumulação de poder para o “Produção de vidas no contexto de Covid-19”. Por outro lado, pode refletir também que essa percepção pode ser ampliada pelo fato de alguns GTs considerarem que o projeto atribuiu pouca importância às ações e atividades desenvolvidas pelo seu grupo, o que poderia provocar um efeito pororoca²³23 Silva ALA. Produção de subjetividade e gestão em saúde: cartografias da gerência [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004..

A constituição de redes e relações de poder na construção de sujeitos coletivos

A constituição de redes no projeto assume um desenho rizomático e molecular²⁴24 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 7a Ed. Petrópolis: Vozes; 2005., seus fluxos seguem diversas e possíveis trajetórias e, em nosso caso, articularam-se com a produção dos GTs, potencializando composições e conexões, atravessadas por inovações, comunicações rápidas, interações humanas, relações e articulações sociais, características da sociedade em rede¹⁰10 Castells M. A sociedade em rede. 6a Ed. São Paulo: Paz e Terra;1999..

Essas redes conformadoras de teias rizomáticas se distribuíram em um conjunto heterogêneo que englobou diversas formas discursivas, instituições, organizações, leis, normas, medidas administrativas, fatos e enunciados²⁵25 Foucault M. Microfísica do poder. 22a Ed. Rio de Janeiro: Editora Graal; 2006., que se ramificaram e incorporaram princípios como a solidariedade, diversidade, intersetorialidade, equidade, universalidade e respeito às diferenças.

Nessa direção, refletir acerca de sua conformação em um mundo que enfrenta escassez de profissionais para o enfrentamento da pandemia, acrescidos ao processo de transição epidemiológica, demográfica, tecnológica e nutricional requer dos formuladores de políticas e programas estratégias inovadoras acerca de questões sanitárias estruturantes, que mobilizam a força de trabalho a nível locorregional e global.

Reconhecer a existência de serviços de saúde fragmentados, com dificuldades para gerenciar as necessidades sociais e problemas de saúde, aponta para uma janela de oportunidade na qual a educação e os sistemas de saúde atuam de forma articulada e revelam as relações de micropoderes e de disputa existentes nesses territórios.

No que pese a importância de a educação interprofissional (EIP) e da prática colaborativa possibilitarem solução ancorada na colaboração interprofissional, para o fortalecimento do desempenho dos sistemas de saúde e melhoria dos seus resultados, continuam impregnadas de relações de conflitos e de um poder que se exerce e existe na própria relação²⁶26 Barr H. Interprofessional education. Today, yesterday and tomorrow. A review. Centre for the Advancement of Interprofessional Education. Oxford: Blackwell Publishing Ltd; 2005..

Em situações de crise sanitária e conflitos, é fundamental uma resposta emergencial planejada e fomentar a colaboração interprofissional e intersetorial, essencial para o enfrentamento de crises como a pandemia causada pelo SARS-coV-2, visando ao seu efetivo gerenciamento. Essas práticas requerem a tomada de decisões compartilhadas, utilizando vários mecanismos de comunicação, seja reunião híbrida, negociação na alocação de recursos ou mediação de conflitos, imprimindo uma nova cultura de trabalho, na qual todos participam²⁶26 Barr H. Interprofessional education. Today, yesterday and tomorrow. A review. Centre for the Advancement of Interprofessional Education. Oxford: Blackwell Publishing Ltd; 2005..

Realizar uma aproximação entre o saber-saber (acadêmico), o saber-fazer (serviços) e o saber-ser (ético/político), por meio da proposta de teleconsultoria em gestão não é fácil, sobretudo se considerarmos o modo como se organizam na sociedade as relações de forças que inscrevem uma batalha silenciosa que não atinge apenas as instituições, as desigualdades geradoras de iniquidades e a linguagem, mas sobretudo os corpos dos indivíduos e grupos, direcionando as formas possíveis de colaboração entre profissionais e trabalhadores e entre instituições.

Pensar na constituição de sujeitos coletivos no contexto de GT remoto nos leva a considerar a oferta de Mario Testa²⁷27 Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação: o caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995. acerca de sua preocupação com o comportamento dos atores sociais e a categorização que faz, a saber: atores individuais e atores coletivos. “O ator individual é um sujeito que tem interesses no setor saúde e que ocupa uma posição que o coloca em situação de peso dentro do mesmo”²⁷27 Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação: o caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995., (p. 49). Já “o ator coletivo é um agrupamento de sujeitos sociais individuais transformados em ator social”²⁷27 Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação: o caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995. (p. 49).

Ainda de acordo com este autor²⁷27 Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação: o caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995., o elemento fundamental que amalgama a constituição desses atores individuais ou coletivos é o processo de trabalho articulado ao processo de ideologização que se produz por meio das condições gerais em que se realiza o trabalho, aqui considerado como relação de poder ou social.

Os atores individuais se transformam em sujeitos sociais em virtude do componente abstrato do trabalho geral e da transformação de um sujeito social em um sujeito coletivo – grupo ou classe a depender dos interesses comuns do conjunto e das circunstâncias geradas nas condições específicas em que se realiza o trabalho em seu componente concreto.

Chama atenção o fato de que sujeitos sociais coletivos se transformam em atores sociais em decorrência de sua participação nas relações de poder, problematizando as relações sociais, reivindicando espaços de poder e participando nas lutas por transformações estruturais na sociedade.

A ideia de sujeito social para Testa é o indivíduo (pessoa) ideologizado, como consequência de seu trabalho abstrato. Assim, a ideologização é uma forma de andar, entender a vida, uma orientação do sujeito por meio de seus valores, ideias e princípios – o sujeito da vida e da sua episteme²⁷27 Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação: o caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995..

A crise sanitária possibilitou ao projeto “Produção de vidas” ampliar suas ações enquanto sujeito coletivo, em busca de respostas às necessidades apontadas pelos municípios integrantes do projeto. Novos sujeitos individuais foram sendo inseridos na teleconsultoria de gestão, ampliando o poder de articulação, planejamento, organização e resolubilidade dos problemas de saúde da população.

A constituição de sujeitos e espaços coletivos só foi possível em um ambiente favorável ao exercício da democracia. A democracia é produto da práxis de Grupos Sujeitos (GS) e produtora de Sujeitos em processos de intervenção-ação²⁸28 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições ? O método da roda. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2005.. Trabalhar na perspectiva de GS significa ser capaz de contrapor-se à constituição de serialidade e ser capaz de lidar com certa autonomia com os constrangimentos impostos pela história e o contexto de sua constituição no âmbito local²⁹29 Guattari F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense; 1977..

Nesses espaços coletivos, o poder encontrava-se presente e o jogo relacional possibilitou analisar os problemas e operacionalizar as deliberações demandadas pelos municípios aos grupos de trabalho.

Reconstruir as estruturas fundantes da racionalidade gerencial hegemônica, as linhas de produção de subjetividade e os métodos de gestão vigente requer mudanças na constituição dos espaços e dos sujeitos coletivos a partir da superação da visão instrumental que orienta os processos de gestão organizacional das instituições e a produção de sistemas de cogestão orientadores do saber-fazer dos grupos sujeitos que se instituem com a habilidade e a potência de produzir consensos e alianças; e de implementar projetos.

Apoiando-se na definição de hegemonia de Gramsci³⁰30 Gramsci A. Cadernos do cárcere., Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 2002. v. 5., observou-se o quão é importante refletir sobre a constituição de grupos e de sujeitos; e sobre as implicações da utilização de práticas coercitivas de dominação, sejam elas ativas ou passivas. Assim, a construção de sistemas de cogestão e institucionalização da democracia institucional é uma forma concreta de diminuir a distância entre universidade e serviços, saber científico e o popular, governantes e governados²⁸28 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições ? O método da roda. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2005..

Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde como dispositivo para o alcance dos resultados intermediários

A incorporação do uso de serviços eletrônicos no campo da saúde é incentivada pela Organização Mundial da Saúde desde 2004, em especial na Atenção Primária à Saúde (APS) com foco voltado para qualificação das condutas e das ferramentas de colaboração e ação a distância³¹31 Word Health Organization. Telemedicine: opportunities and developments in Member States: report on the second global survey on eHealth. Genebra: WHO; 2009..

A telessaúde, em especial, nos países em desenvolvimento, tem o potencial de solucionar grandes desafios da saúde, seja no âmbito de ampliação do acesso a serviços especializados; na melhoria da qualidade da atenção à saúde; na redução do tempo gasto entre o diagnóstico e a terapia; ou na racionalização de custos e no apoio à vigilância epidemiológica, auxiliando na identificação e no rastreamento de problemas de Saúde Pública³²32 Maldonado-Torres N. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Soc Estado. 2016; 31(1):75-97..

O Brasil tem se destacado como líder na implementação de projetos de grande escala de telessaúde com o propósito de reduzir as desigualdades de acesso aos serviços de saúde e aumentar a resolutividade da Atenção Primária³³33 Marcolino MS, Alkmim MB, Assis TGP, Sousa LAP, Ribeiro ALP. Teleconsultorias no apoio à atenção primária à saúde em municípios remotos no estado de Minas Gerais, Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2014; 35(5/6):345-352.^,3434 Pessoa C, Sousa L, Ribeiro A, Oliveira T, Silva JL, Alkmim MB, et al. Description of Factors Related to the use of the Teleconsultation System of a Large Telehealth Service in Brazil – the Telehealth Network of Minas Gerais. J Int Soc Telemed eHealth. 2016; 4:e4 (1-9)., por meio de atividade multiprofissional, mediada por TICs, para possibilitar cuidados à saúde nas situações em que o acesso a bens e serviços é um fator crítico⁴4 Rezende EJC, Melo MCB, Tavares EC, Santos AF, Souza C. Ética e telessaúde: reflexões para uma prática segura. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):58-65.^,3535 Wen CL, Miranda DJ. Tecnologías de telemedicina aplicadas a la educación. In: Santos AF, Fernández A, editores. Desarrollo de la telesalud en América Latina. Santiago: CEPAL; 2013. p. 277-287., e apoiada nos serviços/atividades de teleducação, Telediagnóstico, Segunda Opinião Formativa e Teleconsultoria.

A teleducação no âmbito da teleconsultoria de gestão para o enfrentamento da Covid-19, ancorada na Educação Permanente em Saúde (EPS), é reconhecida como uma importante estratégia político-pedagógica de formação/qualificação interprofissional em saúde, amparada na tríade ensino-serviço-comunidade, visando à transformação das práticas em saúde, à melhoria dos serviços prestados e, consequentemente, ao fortalecimento do (SUS)³⁶36 Rodrigues PMA. Educação permanente em saúde por teleducação: o caso do Programa Telessaúde Brasil Redes sob a perspectiva dos usuários [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019..

O telemonitoramento é uma estratégia importante para potencializar a eficácia e a eficiência dos programas de atenção e acompanhamento dos casos de agravos à saúde. Caracteriza-se como método de prestação de serviços de saúde que utiliza a tecnologia em situações nas quais o profissional e o usuário não se encontram no mesmo local, mas podem se comunicar em tempo real de forma segura para produzir o cuidado³⁷37 Ferreira Oliveira AE, Freitas VP, Campos KS, Luz HDH, Fernandes BG, Silva KRSE, et al. Telemonitoramento em pacientes com fatores de risco para desenvolverem eventos cardiovasculares. Sinapse Multipla. 2019; 8(2):222-225..

Os serviços de teleatendimento, considerados imprescindíveis no atual cenário, têm se tornado um dispositivo de integração de tecnologias de telefonia e informática. Apesar de os protocolos figurarem com princípios neotayloristas, baseados em formas de controle exacerbadas, deve-se considerar a subjetividade dos trabalhadores em prol de objetivos mais cuidadores e integrais⁴4 Rezende EJC, Melo MCB, Tavares EC, Santos AF, Souza C. Ética e telessaúde: reflexões para uma prática segura. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):58-65.^,99 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00088920..

Desse modo, o uso das TICs, quando ajustado às necessidades em saúde, permite soluções inovadoras em cenários de crise sanitária, além de possibilitar o atendimento aos usuários e a outros grupos vulneráveis; a estratificação de risco da população; e a coordenação dos recursos existentes, facilitando acesso às diretrizes orientadoras da gestão do cuidado, necessárias ao gerenciamento da situação de saúde e monitoramento dos casos sintomáticos, leves e moderados de Covid-19⁹9 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00088920..

Apesar do aumento da difusão da telessaúde como um componente integral do sistema de saúde, a sua incorporação plena ainda representa um grande desafio, revelado nos limites concretos no seu uso, principalmente na assistência quanto ao diagnóstico. A consulta mediada por TIC pode não ser apropriada para pacientes com incapacidade de usar a tecnologia⁹9 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00088920..

No projeto “Produção de vidas”, a teleconsultoria utilizou-se extensivamente de atividades síncronas, operadas em uma relação dialógica entre teleconsultores e trabalhadores, profissionais e gestores da saúde, extrapolando as atividades de teleassistência; fomentando a incorporação de princípios como a solidariedade, diversidade, intersetorialidade e respeito às diferenças; e estimulando o trabalho multiprofissional, a interprofissionalidade e a interdisciplinaridade.

Sabe-se que essas tecnologias não deveriam operar marginalmente na rede de atenção ou apenas em períodos de enfrentamento de pandemias. Sua implementação adequada pode gerar resultados positivos em termos de acesso; resolubilidade e abrangência de cuidados; comodidade para as pessoas; e qualificação do monitoramento, como visto nos resultados intermediários do projeto “Produção de vidas”³3 Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC, Sarti TD, Lazarini WS, et al. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela Covid-19? Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(2):1-5..

A figura 1 apresenta, de forma sintética, a organização das práticas de teleconsultoria de gestão em Saúde, indicando os objetivos correspondentes às ações por componentes. Revela ainda as ações desenvolvidas nos GTs para enfrentamento da Covid-19, além dos produtos parciais e resultados intermediários que levaram ao controle dos riscos, danos e sequelas causadas pelo vírus. Vale destacar o papel transversal assumido pela teleducação na teleconsultoria de gestão.

Os resultados intermediários ilustrados na figura 1 podem ser destacados na ação coordenada e articulada entre as diferentes instituições no enfrentamento da Covid-19; nas ações de tele-educação e teleorientação para profissionais da saúde, usuários do sistema e população em geral, voltadas para a assistência e adesão às medidas de proteção individual e coletiva; e no telemonitoramento dos casos suspeitos e confirmados, na perspectiva da detecção precoce e redução da mortalidade.

Considerações finais

Conforme análise crítica e reflexiva da experiência de extensão-pesquisa-ensino-serviço e comunidade no contexto da pandemia de Covid-19, constatou-se que as dificuldades enfrentadas pelos gestores e profissionais da saúde e educação, decorrentes da crise sanitária, viabilizaram a articulação de sujeitos individuais e coletivos, para seu enfrentamento, por meio da teleconsultoria.

O uso das TICs se constituiu na principal estratégia para o levantamento de necessidades e demandas, construção e implementação de intervenções, visando priorizar e solucionar os problemas para o desenvolvimento de ações na APS, paralisadas devido à ausência de governança em nível local.

Por fim, acredita-se que os elementos da teleconsultoria de gestão devem ser incorporados à prática cotidiana dos profissionais de saúde e da gestão, e cabe aos gestores promover as condições estruturais, de recursos tecnológicos e humanos e infraestrutura e organização de Unidades Básicas de Saúde; e prover a Educação Permanente em Saúde para e no trabalho como estratégia de qualificação profissional e melhoria da qualidade da atenção e da gestão como substrato fomentador da produção do cuidado articulado às redes de atenção à saúde municipal.

Agradecimentos

A FABESB, pelo apoio a operacionalização do projeto de pesquisa Teleatendimento e telemonitoramento como estratégia de Organização da Produção do Cuidado na Atenção Primária à Saúde.

Referências

Datas de Publicação

Histórico