O Dossiê Diálogo entre as áreas do campo da Saúde Coletiva, de que esta apresentação é parte, nasce de uma preocupação de cunho histórico no âmbito desse espaço social ocupado pela Saúde Coletiva, um espaço a que chamamos mais livremente de campo, embora, ao menos por referência ao conceito de campo na sociologia de Bourdieu, a designação mereça cuidados11. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva? In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 3-12.. A formação de campo, como aponta esse autor22. Bourdieu P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996.,33. Bourdieu P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1974., resulta da relativa autonomia que o espaço social de determinada prática ganha por referência ao seu todo de origem, decorrência da particularização específica dessa prática, sempre substantivamente conectada ao saber que a orienta. É central nesse processo, menos que a especificidade particular da prática na identificação de sua relativa autonomia, a garantia de que seja continuada a reprodução social dessa especificidade: a condição de campo, ao mesmo tempo que é espaço que reproduz o social no qual está inserido, é dependente da contínua reprodução de suas práticas, seus agentes, suas instituições e seu saber. Nesse sentido, cabe a preocupação: a Saúde Coletiva, em sua especificidade no campo da Saúde, vem se reproduzindo como tal?
Lembremos, desde já, a sempre presente tensão da própria Saúde Coletiva no interior da Saúde, como uma vertente que disputa presença e influência nesse campo cujas construção e consolidação na modernidade constituíram-no como espaço social hegemonicamente dominado pelo saber e pela prática da Medicina Biomédica, imprimindo ao campo o importante impacto de duas dinâmicas simultâneas: a marca do pragmatismo em suas ações e a da correspondente tecnociência na produção de seus saberes. Vamos considerar nossa inquietação como uma questão de futuro para a Saúde Coletiva conexa a essa relação com seu passado em torno a essas dinâmicas da Saúde.
Com cerca de cinquenta anos de existência, a Saúde Coletiva consolidou-se, ampliando seu domínio de competências e reunindo grande diversidade em seu interior, a ponto de, com consequente desenvolvimento de relativa independência, estimular o desdobramento interno de três dimensões de atuação que, a princípio, compunham um mesmo todo compreensivo em termos das práticas realizadas e dos saberes implicados. São elas: o padrão populacional de adoecimentos; o padrão coletivo (da esfera pública e daquela individual) dos cuidados assistenciais; e o contexto social e histórico em que esses dois padrões se inscrevem, lembrando que o conjunto é influenciado, de um lado, pelas políticas de Estado e pelo planejamento, gestão e avaliação dos serviços de saúde e, de outro lado, pelos conhecimentos científicos e saberes tecnológicos envolvidos.
Em outros termos, a Saúde Coletiva desdobrou-se em três subáreas de saberes a serem articuladoras de práticas nos serviços de saúde, e de um domínio de saber-fazer tecnológico na formação de seus agentes na direção de uma interdisciplinaridade e de intervenções multiprofissionais. A Epidemiologia, as Ciências Sociais e Humanas em Saúde e o agregado da Política Pública com o Planejamento, a Gestão e a Avaliação dos Serviços de Saúde estariam, nesse sentido, em permanente diálogo e interação, quer na produção teórica, quer naquela tecnológica da intervenção assistencial.
É interessante observar que tais pretensões, conexas aos conceitos de interdisciplinaridade e multiprofissionalismo, são efetivamente consideradas e trabalhadas na produção de caráter epistemológico, bem como naquela historiográfica ou ainda na memorialista que se está produzindo na Saúde Coletiva, mesmo na diversidade de abordagens que essa produção apresenta. Estes estudos reconhecem a riqueza do diálogo interdisciplinar e a interação multiprofissional das práticas resultantes. E atribuem, sobretudo a essa interação entre disciplinas no plano do conhecimento, o potencial crítico da construção que tem feito a Saúde Coletiva11. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva? In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 3-12.,44. Nunes ED. Saúde Coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Saude Soc. 1994; 3(2):5-21. doi: 10.1590/S0104-12901994000200002.
5. Birman J. A apresentação: a interdisciplinaridade na Saúde Coletiva. Physis (Rio J). 1996; 6(1-2):7-13. doi: 10.1590/S0103-73311996000100001.
6. Nunes ED. Saúde Coletiva: história e paradigmas. Interface (Botucatu). 1998; 2(3):107-16. doi: 10.1590/S1414-32831998000200008.
7. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30. doi: 10.1590/S1413-81232000000200002.
8. Luz MT. Complexidade do campo da Saúde Coletiva: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, e transdisciplinaridade de saberes e práticas - análise sócio-histórica de uma trajetória paradigmática. Saude Soc. 2009; 18(2):304-11.
9. Osmo A, Schraiber LB. O campo da Saúde Coletiva: definições e debates em sua constituição. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:209-22. doi: 10.1590/S0104-12902015S01018.
10. Vieira-Da-Silva LM. O campo da saúde coletiva: gênese, transformações e articulações com a reforma sanitária brasileira. Salvador, Rio de Janeiro: Edufba, Fiocruz; 2018.-1111. Mota A. Tempos cruzados: a saúde coletiva no estado de São Paulo, 1920-1980. São Paulo: Hucitec/Fapesp; 2019.. Podemos bem ilustrar essa consideração em dois excertos escolhidos para aqui representar o conjunto das bibliografias citadas:
O objeto da Saúde Coletiva é construído nos limites do biológico e do social, e compreende a investigação dos determinantes da produção social das doenças, da organização dos serviços de saúde e o estudo da historicidade do saber e das práticas sobre os determinantes. Nesse sentido, o caráter interdisciplinar desse objeto sugere uma integração no plano do conhecimento, e não no plano da estratégia, de reunir profissionais com múltiplas formações1212. Paim JS. Desenvolvimento teórico-conceitual do ensino em Saúde Coletiva. In: Abrasco. Ensino de Saúde Pública, Medicina Preventiva e Social no Brasil. Rio de Janeiro: Abrasco; 1982. p. 4-19.. (p. 18)ddO excerto foi escrito em 1978, época da criação da Saúde Coletiva, como quadro teórico de referência para um dos primeiros cursos de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – o Mestrado em Saúde Comunitária da Universidade Federal da Bahia – e publicado em 1982.
Antes de mais nada, é preciso evocar que a concepção de saúde coletiva transcende em muito o conceito de que foi oriunda, isto é, o de saúde pública. Na derivação daquele do campo inicial da saúde pública foram introduzidos outros referenciais teóricos de leitura do que aqueles provenientes da Medicina e das ciências da vida. Além disto, nesta ramificação criativa foram introduzidas na saúde pública outras perspectivas analíticas sobre as enfermidades e os processos de cura além daquelas até então legitimadas pela Medicina oficial e pelo Estado. Com isto, a posição da Medicina como sendo um conjunto de saberes e práticas clínicas e assistenciais foi relativizada no campo mais vasto da saúde, pois teve de incorporar no seu criar, no seu pensar e no seu fazer os diferentes pontos de vista das diversas ciências humanas e os códigos culturais diferenciados das populações assistidas no que tange às concepções sobre o normal, o anormal e o patológico. [...] Sem pretender explorar aqui todas as dimensões desse processo, gostaria de enfatizar, contudo, a pregnância da pesquisa interdisciplinar neste contexto renovado da saúde coletiva. Vale dizer, a perspectiva interdisciplinar de investigação é o correlato deste remanejamento profundo do campo da saúde, sem o qual esta reestruturação seria impossível. Portanto, a noção de disciplina foi implodida para que o conceito de saúde coletiva pudesse se constituir, sendo esta uma das condições de possibilidade para a invenção de um novo campo sanitário55. Birman J. A apresentação: a interdisciplinaridade na Saúde Coletiva. Physis (Rio J). 1996; 6(1-2):7-13. doi: 10.1590/S0103-73311996000100001.. (p. 7-8)
Contudo, cotejadas essas pretensões da época de criação com a própria consolidação da Saúde Coletiva, não se pode descuidar do fato de que a construção de autonomias relativas de subáreas sofre a tensão própria do movimento de especialização do conhecimento científico e dos saberes tecnológicos, processo típico da modernidade. Essa tensão dirige a especificidade das subáreas no sentido de uma fragmentação, uma independência por referência ao pertencimento original dessas subáreas que se especializam. A especialização poderá descontinuar historicamente o diálogo e a interação entre as subáreas. Nesse sentido, vale o alerta de Campos77. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30. doi: 10.1590/S1413-81232000000200002.:
Repensar a saúde coletiva, aproveitando-se da história e da tradição da saúde pública. Entendê-la tanto como um campo científico quanto como um movimento ideológico em aberto [....]. Um movimento que, sem dúvida, no Brasil, contribuiu decisivamente para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e para enriquecer a compreensão sobre os determinantes do processo saúde e doença. Mas também reconhecer que o modo como vem ocorrendo sua institucionalização tem bloqueado a reconstrução crítica de seus próprios saberes e práticas, provocando uma crise de identidade manifesta em sua fragmentação e diluição como campo científico. (p. 220)
Retomemos à reflexão as mencionadas dinâmicas de constituição progressiva de certo pragmatismo e de desenvolvimento tecnológico das práticas e dos saberes em saúde. A busca por uma capacidade de responder aos problemas práticos da vida social, e o mais prontamente possível, resultou na reorientação do conhecimento com a modernidade como produção científica interessada em obter tais respostas imediatas. A obtenção dessa capacidade de resposta reorientou as ciências de um caráter mais filosófico do conhecer para aquele tecnológico, emergindo as tecnociências.
Assim, as especificidades do conhecimento científico na modernidade são a de ser conhecimento seguro em sua validação de científico, isto é, de conhecimento objetivamente verdadeiro porque é atestado o fundamento de validade de sua produção, e a de ser conhecimento eficaz em termos práticos diante das necessidades que se apresentem. Na Medicina, isso correspondeu ao que o sociólogo Elliot Freidson, em seu clássico estudo acerca da profissão em Medicina1313. Freidson E. Profissão médica: um estudo de sociologia do conhecimento aplicado. São Paulo, Porto Alegre: Unesp, Sindicato dos Médicos; 2009., chamou de pragmatismo da profissão.
Essa condição se traduziu em uma urgência por ‘fazer algo’ mesmo quando não se dispõe, diante do ritmo mais lento do ‘conhecer algo’, de saber específico sobre o problema particular em questão. No entanto, é preciso levar em conta que cientificidade e pragmatismo se entrecruzam efetivamente apenas no momento clínico, qual seja, no uso do conhecimento científico na técnica de intervenção e no momento da produção do trabalho assistencial1414. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2019.,1515. Schraiber LB, Azeredo YN. Poder médico e violência na assistência à saúde: uma recuperação histórica. In: Faria L. Violências e suas configurações: vulnerabilidades, injustiças e desigualdades sociais. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 415-35..
Mas se é preciso fazer algo mesmo diante da falta de conhecimentos científicos acerca do problema a que se deveria responder, e se essa modalidade de resposta pragmática foi a que historicamente se tornou a intervenção desejada e esperada, do ponto de vista assistencial essa escolha histórica acelerou em muito a especialização, com a fragmentação do conhecimento e a criação de recursos tecnológicos materiais.
O impacto dessa escolha foi, entre outros, o de suprimir a atitude clínica da ‘observação’ e de ‘seguir diligentemente o caso’, com a qual a prática em Medicina adentrou a modernidade, mantendo-a para acompanhar os efeitos da intervenção efetuada e avaliar sua eficácia não apenas técnica, mas sobretudo social. O pragmatismo da Medicina moderna, então, ao menos de início e durante todo o período da Medicina liberal já como Medicina da modernidade, estava voltado às condições sociais da vida1414. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2019..
Esse processo de modernização se localizou na segunda metade do século XVIII e se estendeu ao século XIX, épocas de formação dos estados nacionais e de intensificação do processo produtivo industrial sob a marca da produção capitalista, diante das guerras e da necessidade de operários. Uma Medicina das condições agudas e episódicas e terapeuticamente quase ou puramente cirúrgica como referencial para a intervenção técnica na produção assistencial assim se formou1414. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2019., consolidando-se como hegemônica ao longo do século XIX e adentrando o século XX, em permanência até os anos 1950.
Diante dela, construiu-se muitas vezes, ao longo do subsequente tempo até nosso presente no século XXI, uma forma de ‘agudização’ e ‘delimitação episódica’ de adoecimentos de longa duração ou permanentes, que foram os padrões de adoecer que emergiram na segunda metade do século XX, com o aumento progressivo da longevidade das populações. Poderíamos indicar, nesse sentido, a própria criação da modalidade assistencial do pronto-atendimento nos anos 1980-1990 como forma massiva de acesso à assistência para doentes agudos ou crônicos1616. Nemes MIB. Prática programática em saúde. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 48-65.,1717. Schraiber LB, Vilasbôas ALQ, Nemes MIB. Programação em saúde e organização das práticas: possibilidades de integração entre ações individuais e coletivas no Sistema Único de Saúde. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 83-93. e, por vezes, o único cuidado recebido.
Também corroboraram nesse processo, é claro, as mudanças institucionais e de mercado operadas no próprio sistema assistencial, como as novas articulações produtivas entre os setores público e privado de provimento de serviços, tornando ainda mais radicais as tendências de transformações terapêutico-assistenciais desenvolvidas e orientadas pelos saberes clínicos operatórios das práticas de intervenção do campo da Saúde1414. Schraiber LB. El médico y la medicina: autonomia e y vínculos de confianza en la práctica profesional del siglo XX. Buenos Aires: Editorial Lugar; 2019..
Esse movimento colocou em questão, como vemos no presente, a própria qualidade dessa pronta resposta da prática em Medicina como equivalente à prática em saúde e como qualidade de eficácia em sua intervenção. Em outros termos, ficou claro que essa capacidade de resposta é uma modalidade voltada a um êxito de caráter mais técnico-científico do que social.
Emergiram, então, consequências nem sempre tão bem-sucedidas e em conflito assistencial na sua capacidade de ser uma resposta que, para além do êxito técnico, também se mostrasse um êxito que contemplasse as condições sociais e as subjetivas dos doentes, na importante distinção conceitual feita por Ayres1818. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2009. entre ‘êxito técnico’ e ‘sucesso prático’, em termos, respectivamente, da aplicação do conhecimento científico como técnica correta de intervenção e da aproximação dessa técnica às possibilidades concretas e particulares de cada caso de se reinserir em seu cotidiano de vida social.
Para apenas ilustrar, tomemos a complexidade desse sucesso prático representada pelas dificuldades assistenciais de adesão às terapêuticas propostas na abordagem dos casos de doenças crônicas e degenerativas, ou nos desafios crescentes diante do espantoso aumento dos sofrimentos e adoecimentos mentais nos dias atuais. Atesta também esse processo, que vimos considerando até aqui, o que se apresenta neste dossiê nos distintos textos que o compõem.
Guilherme Loureiro Werneck1919. Werneck GL. Epidemiologia e pandemia de Covid-19: oportunidades para rever trajetórias e planejar o futuro. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220340. doi: 10.1590/Interface.220340., em seu texto, aproveita muito bem o contexto da pandemia de Covid-19 para explorar as possibilidades e tensões na interação entre as subáreas de conhecimento da Saúde Coletiva. Embora, como aponta o autor, nesse complexo cenário de crise sanitária, fosse essencial o emprego de abordagens interdisciplinares para sua análise e enfrentamento, foi a Epidemiologia que ganhou enorme evidência. O autor destaca a relevância desse diálogo interdisciplinar, em especial em torno da desigualdade socioeconômica e seu impacto nas populações mais vulneráveis, e alguns esforços empreendidos para um diálogo interdisciplinar na Saúde Coletiva.
O texto de Gastão de Sousa Campos2020. Campos GWS. Semblantes da Saúde Coletiva: tendências e perspectivas. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220465. doi: 10.1590/Interface.220465. traz uma abordagem ainda pouco presente na Saúde Coletiva ao se apoiar nos congressos mais recentes do campo para explorar suas tendências e perspectivas mediante análise das três subáreas da Saúde Coletiva: Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestão em Saúde. Esse ensaio de reflexão, fundado na experiência do autor, complementa o dossiê com a singularidade de testemunho e produção de narrativa histórica.
Ligia Maria Vieira da Silva2121. Vieira-da-Silva LM. Subcampos e espaços na Saúde Coletiva: fronteiras e integração. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220380. doi: 10.1590/Interface.220380., em seu artigo, realiza uma leitura de cunho historiográfico sobre as possibilidades e os obstáculos à integração entre as subáreas da Saúde Coletiva, apoiando-se no pensamento sociológico de Bourdieu. Partindo dos processos de institucionalização do campo e em especial das subáreas, a autora reconhece que o tema da integração se fez presente em diferentes momentos. Também realiza revisão de estudos que na Saúde Coletiva abordaram, ao longo do tempo, essa interação como interdisciplinaridade.
Rita Barata Barradas2222. Barata RB. As dinâmicas dos campos de saberes e práticas e seus objetos indisciplinados. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220362. doi: 10.1590/Interface.220362. traz texto que se funda em complexa discussão epistemológica, resgatando e analisando diferentes pensadores que circulam na Saúde Coletiva e representam importantes referências no campo. Após uma didática exposição do pensamento central dessas referências, o texto completa-se com considerações acerca da Epidemiologia no campo e a fragmentação da Saúde Coletiva em suas subáreas. Trata-se de uma reflexão bem fundamentada e bastante interessante sobre a gênese e a sedimentação das fragmentações, sugerindo a importância da temática da interação entre as subáreas da Saúde Coletiva.
José Ricardo Ayres2323. Ayres JRCM. A Saúde Coletiva e suas áreas: territórios ou aldeamentos? Interface (Botucatu). 2023; 27:e220520. doi: 10.1590/Interface.220520. traz novas questões à pluralidade epistêmica e metodológica vigente na Saúde Coletiva, abordando-a sob a noção de ‘aldeamento’, em contraste com territorializações definidas pela configuração da pluralidade em disciplinas autônomas, de âmbito e limites rígidos entre o interno e o externo como se fossem situações independentes. Trabalhando no referencial hermenêutico, o texto nos conduz a uma nova perspectiva, um novo olhar para a pluralidade e a possibilidade da convivência, no mesmo espaço social da Saúde Coletiva, das diferenças, dos conflitos e das interações, apontando, contudo, a inevitável e desejável interação. O texto, além de enriquecer o dossiê, trará uma nova trilha de pensamento crítico para a Saúde Coletiva.
Denise Coviello Martin e Pedro Paulo Pereira2424. Martin D, Pereira PPG. Repensar a Saúde Coletiva e o papel das Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220395. doi: 10.1590/Interface.220395. apresentam texto reflexivo em que, partindo do campo interno à produção em Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS) como subárea da Saúde Coletiva, articulam esse interno com as duas outras subáreas do campo. Estruturando o manuscrito em termos das partes que o compõem, o texto aponta conflitos e potencialidades nas relações entre as subáreas, examinando as relações sempre relativamente à própria CSHS. Também em tom bastante otimista aponta possibilidades futuras de mudança nas relações hoje existentes entre as subáreas, valendo-se de interessantes, pertinentes e muito atualizadas referências bibliográficas.
Não obstante, por outro lado, importa considerar que essa fragmentação – a especialização e o tecnicismo resultante – correspondeu a respostas bem-sucedidas à época ao configurar uma delimitação precisa, exata, do alvo da intervenção, corporificado na complexidade tecnológica seja do equipamento, seja de seu saber de operação, êxito fundado ao mesmo tempo em uma simplificação do ponto de vista social dessa mesma intervenção por meio da redução das determinações do problema a ser respondido pela intervenção.
Será nesta fórmula da “complexificação tecnológica e simplificação reparadora” que se situa nossa preocupação histórica: nessa força que move à especialização e ao tecnicismo, com a esperança de facilitar o êxito da intervenção, ainda que um tipo de êxito socialmente localizado e de caráter mais restrito da perspectiva vital. Esse caráter sociovital – o menor desse tipo de êxito e, simultaneamente, o maior do ponto de vista mercantil na relação produção-consumo – é o que marca sua contribuição para a ampliação das desigualdades de acesso e a diminuição das garantias de maior qualidade dos cuidados assistenciais. A Saúde Coletiva, então, está sob tais tensões, historicamente; daí nossa preocupação igualmente histórica quanto a seu futuro.
Por fim, no sentido de fundamentar ainda melhor essa preocupação, retomemos a afirmação acima de que essa modalidade de resposta pragmática foi a que historicamente se tornou a intervenção desejada e esperada, do ponto de vista assistencial, no campo da Saúde, pelas escolhas históricas efetuadas por seus agentes e legitimadas, em sua reprodução contínua no campo, por todos os que dele participam como agentes da saúde, lembrando sempre que nem todos os agentes o fazem na mesma intensidade nem contam com a mesma extensão de aprovação em suas reproduções históricas. Afinal, o campo é sempre espaço de disputas.
Mas, no sentido dessa escolha histórica como cultura profissional legítima tal qual nos apresenta Mendes-Gonçalves2525. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 192-250., na passagem da Higiene à Epidemiologia moderna ocorre a progressiva hegemonia da Clínica Anatomopatológica com sua criação do ‘caso individual’, escolhendo-se essa via de modernização para a prática sanitária em detrimento da prática voltada a coletivos, a que se chamou de Medicina Social. Nas palavras do autor:
A primeira prática de saúde do capitalismo diferia da prática clínica em um ponto essencial: utilizava como instrumento de trabalho um conceito de ‘doença’ diverso, porque coletivo em vez de individual. No decorrer da história essa oposição parcial de perspectiva foi “acomodada” teoricamente e na prática através da institucionalização diversa e complementar dos dois modelos, na Saúde Pública e na assistência médica. [....] Esse modelo de conhecimento de prática que, acompanhando sua própria autodesignação mais consistente será aqui chamado Medicina Social, foi capaz de circunscrevê-la [a doença] de modo explicativo e de modo tecnologicamente eficaz no espaço do coletivo2525. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 192-250.. (p. 44-5)
[...] os higienistas da primeira metade do século XIX não apenas participaram a seu modo de reconstrução da sociedade francesa, mas, o que é mais importante, desenvolveram nessa luta e através dela uma tecnologia relativamente original. Tratou-se da sistematização de investigações sobre as relações entre saúde e sociedade que tomaram por problemas o trabalho infantil, as condições de trabalho, habitação e nutrição e temas conexos2525. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 192-250.. (p. 47-8)
Os excertos desse período das medicinas francesa e inglesa, apresentados na história da Epidemiologia traçada por Ayres2626. Ayres JRCM. Epidemiologia e emancipação. São Paulo: Hucitec; 1995., ilustram muito bem a diferença entre a chamada Medicina Social e a moderna Saúde Pública colonizada pelos referenciais da Medicina Biomédica:
O tema tratado nas páginas que se seguem é de grande importância para esta nação, cuja frota é a mais poderosa do mundo e cujo comércio é mais florescente que qualquer outro. Já se disse que os exércitos têm perdido mais homens por doença que pela espada. Mas essa afirmação tem sido verificada muito mais em nossas frotas e esquadrões, nos quais o escorbuto apenas, durante a última guerra, resultou em um inimigo mais destrutivo e que acabou com mais vidas valiosas que os esforços unidos das armas francesas e espanholas... Mas me lisonjeia pensar que com o seguinte tratado se poderá evitar a calamidade e eliminar o perigo desse destrutivo mal; e não cabe dúvida de que todos os esforços para pôr fim a uma peste tão terrível receberão uma favorável acolhida do público. [James Lind. “Uma investigação sobre a natureza, as causas e a cura do escorbuto”. Inglaterra, 1753] (p. 118)
Não existe nenhuma doença exclusiva de certo número de oficinas, mas há algumas doenças que se produzem com maior frequência por causa das condições em que vivem os operários. Nas fiações de algodão, a tosse, as inflamações pulmonares e a temível tuberculose afetam a muitos operários que se ocupam do pisão ou das primeiras operações de cardação. Segundo a informação que eu tenho, essas doenças afetam ainda mais aos que se encarregam de varrer os locais e separar a lã, que respiram pó e penugem de algodão, e aos tecelões manuais. Ainda que sejam numerosas as vítimas das inflamações pulmonares e da tuberculose, sua morte prematura não me parece mais deplorável que a escrófula da maioria dos trabalhadores das manufaturas. Esse acesso, que produz inchação, cicatrizes, fissuras e deformações horríveis em crianças e jovens, é comum, especialmente nas grandes cidades, entre os trabalhadores apinhados em ruas estreitas e mal ventiladas, onde não penetram raios de sol, e afeta particularmente aos tecelões e suas famílias. A estes tristes efeitos, cabe acrescentar a baixa estatura, a delgadeza e a debilidade das pessoas com escrófula. Se se compara essas pessoas, recurvadas diariamente sobre os teares, crescendo à sombra e murchando como se fossem plantas, com os demais habitantes do mesmo lugar, ou com os agricultores que vivem e trabalham ao ar livre, sob o sol ardente, a diferença é surpreendente. [Louis de Villermé. “Resenha do estado físico e moral dos trabalhadores das indústrias de algodão, lã e seda”. França, 1832] (p. 125)
Mas como aponta Mendes-Gonçalves2525. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 192-250., na atualização modernizante da Epidemiologia:
[...] o que se verificou de fato na história, apesar de ser muito menos satisfatório em termos lógicos e científicos, foi a subordinação inversa [...] o modelo de organização tecnológica baseado na concepção instrumental de ‘doença’ próprio da Clínica anatomo-patológica [...] foi que apareceu subordinando o modelo baseado na concepção de doença como fenômeno trans-individual e supra-biológico, portanto histórico e social. (p. 53-4)
E a relevância de apontarmos essas questões aqui também decorre do fato histórico de que a Saúde Coletiva foi, em sua criação, uma busca inspirada na Medicina Social de estabelecer para as práticas de saúde uma relação explícita e substantiva com o social, reafirmando a complexidade sociovital das determinações dos adoecimentos, bem como aquelas da produção dos cuidados, e reconfigurando, inclusive, esse último na produção assistencial. É também dessa perspectiva que o pensamento da Saúde Coletiva apresentou-se como corrente crítica à medicalização do social desencadeada pela Medicina Biomédica.
Diante desse complexo processo de consolidação da Saúde Coletiva, então, há que se reafirmar aqui a dialética entre o que é específico e o que é comum nesse desenvolvimento de suas subáreas internas, reconhecendo, de um lado, o bem-vindo crescimento do leque das temáticas próprias a cada subárea, e ao mesmo tempo, de outro, a importância da interação entre elas. Assim, entendendo que as subáreas possuem objetos, métodos e metodologias particulares, em termos do conhecimento científico que será referência para as práticas assistenciais e científicas, enfatiza-se que essa diversidade requer um olhar integrador e uma disposição dialógica como virtudes da Saúde Coletiva.
Esse crescimento da Saúde Coletiva como um campo construído pela articulação de diversidades coloca também novos desafios a cada uma das grandes subáreas no sentido de não recusar os dilemas sociais no contemporâneo. A renovação da Saúde Coletiva e de suas subáreas se faz necessária para enfrentar as mudanças ambientais, a emergência de novas doenças e pandemias e para manter viva a capacidade de intervenções eficazes em prol da saúde das comunidades. Talvez, neste conturbado início de milênio, se torne evidente como nunca antes a necessidade de articulação de novas categorias e teorias para pensar o social em diálogo permanente com os avanços no campo biomédico.
Pensamos que o dossiê que aqui apresentamos oferece algumas linhas promissoras para enfrentarmos os desafios do contemporâneo, respeitando a pluralidade e o compromisso com o coletivo.
Referências
- 1Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva? In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 3-12.
- 2Bourdieu P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996.
- 3Bourdieu P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1974.
- 4Nunes ED. Saúde Coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Saude Soc. 1994; 3(2):5-21. doi: 10.1590/S0104-12901994000200002.
- 5Birman J. A apresentação: a interdisciplinaridade na Saúde Coletiva. Physis (Rio J). 1996; 6(1-2):7-13. doi: 10.1590/S0103-73311996000100001.
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- dO excerto foi escrito em 1978, época da criação da Saúde Coletiva, como quadro teórico de referência para um dos primeiros cursos de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – o Mestrado em Saúde Comunitária da Universidade Federal da Bahia – e publicado em 1982.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Maio 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
14 Fev 2023 - Aceito
29 Mar 2023