Promoção da saúde e práticas grupais: um debate necessário

Health promotion and group practices: a necessary debate

Promoción de la salud y prácticas grupales: un debate necessário

João Leite Ferreira NetoSobre o autor

Marcos Bagrichevsky et al.11. Bagrichevsky M, Roberto MS, Cacciari M, Meireles AA. “Grupo de hombres” como dispositivo de promoción de la salud: experiencias singulares en prácticas de cuidado. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220585. doi: 10.1590/interface.220585.
https://doi.org/10.1590/interface.220585...
produziram um relato analítico-etnográfico de uma experiência de trabalho com um grupo de homens (GH), usuários de álcool e drogas. Trata-se de um grupo de adultos e idosos, com idades entre quarenta e oitenta anos, com baixa escolarização e baixa renda, e apenas um estava empregado formalmente quando da realização das práticas. É um GH longevo e seus membros demonstram significativa adesão ao projeto. Compõem o cenário, observado e analisado, profissionais de saúde e acadêmicos.

Farei um debate calcado em três aspectos: buscar entender as razões da longevidade e a forte adesão dos participantes do GH ao projeto; analisar as estratégias de condução desta experiência; pensar o tema da promoção da saúde e as práticas grupais por meio da experiência analisada.

Longevidade do grupo e forte adesão dos participantes

Em primeiro lugar, uma estratégia que nos aproxime de um cuidado em saúde integral, com foco na promoção da saúde, é sem dúvida uma ação que merece ser conhecida e analisada. Sabemos, e os autores enfatizam, que existe uma baixa frequência de homens nos serviços da Atenção Primária à Saúde (APS).

O texto não deixa claro qual foi a origem desse grupo. Muitos grupos voltados para práticas promocionais tiveram sua origem em grupos de doença, mas buscaram uma nova organização mediante outras bases quando esse modelo se tornou cansativo para usuários e profissionais, abandonando o foco na doença e/ou na renovação de receitas22. Ferreira Neto JL, Kind L. Promoção da saúde: práticas grupais na estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec; 2011.. Esse GH é capaz de abordar tópicos sensíveis, como o uso frequente de álcool e drogas, sexualidade etc. Os autores relatam percalços, como a rotatividade dos profissionais da unidade e duas situações nas quais as demandas de atendimento por parte dos participantes do GH não foram atendidas.

Reconhecendo esses méritos, gostaria de levantar uma questão que pode soar paradoxal: quanto tempo um grupo deve durar dentro de uma unidade de saúde? Felix Guattari possui uma interessante classificação sobre dois tipos de grupo. O grupo sujeitado, que possui seus procedimentos propostos por outros, considerado um sindicato de defesa mútua; e o grupo sujeito, que não busca sua perpetuação e constrói a si mesmo durante o processo33. Guattari F. Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. São Paulo: Ideias e Letras; 2004.. Um destino possível e mesmo desejável para os grupos na saúde é a sua capilarizarão nos modos de vida e de encontros, para além do espaço formal de trabalho em saúde22. Ferreira Neto JL, Kind L. Promoção da saúde: práticas grupais na estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec; 2011..

O movimento do usuário Sócrates de feitura das camisetas, que visava trazer outros homens para dentro do grupo, é um indicador que pode ser avaliado de diferentes maneiras. Pode ser pensado como ato de “protagonismo” e autonomia diante dos colegas do grupo, mas também como perpetuação e autocentramento grupal. Isso vale para a “evasão” de dez participantes, que não é, necessariamente, sinal de insucesso, porém pode ser sinal de autonomia. Considero importante observar indícios de movimentos de abertura e criação de mudanças na vida extramuros como objetivo maior de nossas intervenções.

Estratégias de condução do GH

O segundo aspecto que trago ao debate são as estratégias de condução desta experiência. Trata-se de um manejo assentado na clínica ampliada, com equipe multiprofissional e preocupação com a condição de vida dos participantes. A primeira estratégia utilizada foi o nome do grupo, que abandonou o caminho do grupo-doença, evitando a denominação mais evidente de “grupo de alcoolistas” e focalizou nas pessoas e suas condições de vida. Evidentemente, isso não teria o mesmo efeito se não houvesse uma segunda estratégia que foi a preocupação em sustentar uma “escuta qualificada”, favorecendo a plena expressão dos participantes, sem emissão de juízos de valor até onde isso fosse possível.

Uma terceira estratégia foi a própria formação do grupo composto por diferentes categorias profissionais junto com acadêmicos, que frequentemente trazem um ânimo e frescor ao ambiente de trabalho. A quarta foi a variação das atividades planejadas desde o encontro sobre a sexualidade, que teve a contribuição de uma acadêmica, até os dois encontros na quadra de futebol. Aliás, os autores deixam clara a importância do futebol para esses homens atribuindo a eles o nome de jogadores brasileiros de reconhecida importância.

A quinta estratégia foi a atenção aos processos e efeitos vividos pelo GH, provavelmente potencializados pelo fato de haver, durante os trinta encontros, uma pesquisa-intervenção em curso, com pesquisadores compartilhando e interagindo com os participantes. Por exemplo, entre outros, os efeitos dos dois jogos no encontro seguinte do grupo. Assim, o que observamos é que não houve uma chave mestra que determinou a força dessa experiência, mas o trabalho diligente, atento, reflexivo, acolhedor dos usuários e da diversidade dos participantes do empreendimento.

O debate da promoção da saúde e as práticas grupais

A real importância da promoção da saúde é um consenso intelectual, especialmente entre os pesquisadores de diversas áreas, mas sua efetivação sofre entraves poderosos. Isso é verdadeiro mesmo quando observamos o país que trouxe à cena esse debate contemporâneo, o Canadá. Trata-se de um país rico, com um sistema de saúde com boa regulação. Contudo, a avaliação feita por pesquisadores canadenses é que a promoção da saúde continua marginal no seu sistema de saúde. Existe uma luta por espaço em relação ao modelo biomédico e curativo, dominante nas práticas de cuidado, na pesquisa e na política, além de contar com o apoio da opinião pública44. O’Neill M, Rootman I, Dupéré S, Pederson A. Health promotion in Canada: critical perspectives. 2nd ed. Toronto: Canadian Scholars Press; 2007.. Ou seja, a promoção perde em todos os campos, inclusive na opinião pública. Nesse aspecto geral, não somos diferentes.

Eu nuançaria essa ideia do choque entre dois modelos, o biomédico e o promocional, ideia forte também entre nós. Não se trata, no momento, de haver uma superação do modelo biomédico pelo modelo promocional. Não se trata de ‘ou’, mas sim ‘e’. É importante avaliar que o modelo médico baseado em prescrição e adesão, sem espaço de negociações, tem evidentes limites de efetividade no cuidado, e a promoção da saúde possui recursos para lidar com esses limites, como demonstra o artigo.

No Brasil, tivemos, desde 2005, avanços no campo da promoção da saúde devido ao financiamento de organismos internacionais para ações voltadas à alimentação saudável, à atividade física e a práticas corporais, além da formulação da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) em 2006. A Academia da Saúde, espalhada pelo território nacional, foi um começo importante. Outras ações específicas têm ocorrido, porém nada disso tem grande escala. A Estratégia Saúde da Família (ESF), nosso desenho da APS, possui escala em todo o território nacional e, quando operacionalizada adequadamente, carrega consigo o interesse na promoção dentro do princípio da integralidade. Considero essa a nossa melhor aposta.

Contra essa aposta temos, além do subfinanciamento do nosso sistema de saúde, a condição de pobreza e baixa escolarização da maioria dos usuários do SUS. Sabemos que escolaridade e renda são elementos facilitadores para a promoção da saúde55. Fleming ML, Baldwin L. Health promotion in the 21st century: new approaches to achieving health for all. New York: Routledge; 2020.; a condição inversa aumenta a dificuldade das ações de saúde. O artigo que aqui debato é um desenho dessa realidade e os autores falam sobre esses dois fatores dificultadores.

Finalizando, quero abordar o tema do dispositivo grupal. Se ele se afasta do modelo palestra, troca de receitas ou sessão de perguntas e respostas, o que mantém a verticalização entre profissionais e usuários e trabalha com alguma horizontalidade na relação com esses usuários, ele tem o potencial de ser um instrumento de produzir relações de troca e de cuidado diferenciadas. Um depoimento de uma usuária, em outra pesquisa, sintetiza bem a importância desse efeito.

Tem pessoa que só conversou com o doutor na hora da consulta. Ela não sabe da vida do doutor lá fora. Eu sei da vida do doutor lá fora, porque ‘ele participa com a gente nos grupos’ e apesar de não contar a história de vida dele para a gente, temos coisas como as comemorações, que às vezes a gente faz, ele participa [...] Então a gente sabe o tipo de pessoa que ele é fora da consulta. E eu acho isso muito importante22. Ferreira Neto JL, Kind L. Promoção da saúde: práticas grupais na estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec; 2011.. (p. 138)

A “hora da consulta” possui um padrão de interação ritualizado e hierarquizado, na maior parte das vezes. Ela tem uma função importante, mas não deve ser a única estratégia de cuidado. Ganha-se muito com a utilização de outras estratégias, como as práticas grupais. Um detalhe singelo: para essa usuária o protagonista do grupo pertence ao “a gente”.

A própria consulta médica, de enfermagem ou odontológica pode ser modificada em sua presença de cuidado no território se ela for realizada de modo menos prescritivo e mais negociado, podendo aumentar sua própria efetividade ao fortalecer o vínculo, como preconiza a clínica ampliada.

Referências

  • 1
    Bagrichevsky M, Roberto MS, Cacciari M, Meireles AA. “Grupo de hombres” como dispositivo de promoción de la salud: experiencias singulares en prácticas de cuidado. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220585. doi: 10.1590/interface.220585.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220585
  • 2
    Ferreira Neto JL, Kind L. Promoção da saúde: práticas grupais na estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec; 2011.
  • 3
    Guattari F. Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. São Paulo: Ideias e Letras; 2004.
  • 4
    O’Neill M, Rootman I, Dupéré S, Pederson A. Health promotion in Canada: critical perspectives. 2nd ed. Toronto: Canadian Scholars Press; 2007.
  • 5
    Fleming ML, Baldwin L. Health promotion in the 21st century: new approaches to achieving health for all. New York: Routledge; 2020.

  • Financiamento: Apoio CNPq, processo: 13841/2021-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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