Ao colocar em análise a Educação Interprofissional e Prática Colaborativa (EIPC) como modelo para formação e Atenção à Saúde, destacando incompatibilidades e incongruências estruturais no contexto da racionalidade neoliberal em países latino-americanos, os/as autores/as perfilam debate instigante no panorama das perspectivas críticas sobre processos formativos para a produção do cuidado. Senti-me convocada a aprofundá-lo em exercício contracolonizador(b(b)Termo utilizado por Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.).
Considerando a geopolítica mundial, diante das repercussões da pandemia de Covid-19 que evidenciou as acentuadas desigualdades sociais de nossa organização planetária, tal exercício é axial. Engendraram-se diversos modos de lidar com a demanda de convivência com o novo coronavírus, tornando-se patente a força de saídas produzidas coletivamente.
Ficou patente o caráter de interdependência constitutivo das relações entre seres viventes na Terra, inclusive os que, como regra, não são assim reconhecidos: rios, montanhas, solo, plantas, entre outros, sendo fundamental um encontro e uma aliança com saberes de povos ancestrais, descolonizados, que seguem a apontar essas íntimas articulações, como nas manifestações de Davi Kopenawa, xamã yanomami.
Nessa direção, apresento ponderações fundamentadas em minha participação em projetos formativos, frutos de políticas públicas(c(c)Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), no nível da Graduação, e as Residências Multiprofissionais de Saúde, no nível de Pós-Graduação (lato sensu).), como docente de uma universidade no semiárido nordestino do Brasil, apostando na importância de partilhar efeitos de um saber de experiência tecido em território específico.
Na última edição do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) que integrei, o “Interprofissionalidade”(d(d)Edital n. 10, 2018, do Ministério da Saúde.), os pressupostos teóricos, metodológicos e conceituais da Educação Interprofissional e das práticas colaborativas tiveram centralidade, atrelados a uma referência de avaliação de domínios de competência. Os caminhos avaliativos propostos não pareciam alcançar a potência dos efeitos das experimentações de aprender conjuntamente em singulares cenários pedagógicos no sertão.
A EIPC carrega valores alinhados à perspectiva de reconhecimento da interdependência característica de ser vivente, cravados na própria nomenclatura. Como indicado no texto debatido, o modelo vem sendo recomendado por agências internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Porém, estar em relação, de modo colaborativo, para produzir cuidado em saúde desafia modelos e métricas.
As problematizações do texto são aguçadas precisamente na avaliação de valores. Na EIPC, o conjunto de valores direciona-se à composição de sujeitos colaborativos, como compartilhamento, coletivização, enfim, um ethos traçado pela busca de produção do comum; a racionalidade neoliberal, por sua vez, assume valores voltados ao empreendedorismo, fundando-se na lógica empresarial intrinsecamente meritocrática e competitiva, estimulando competência instrumental, desempenho, eficiência. Assim, compreendo que cabe verticalizar a crítica à própria EIPC, ao adotar a avaliação por matrizes de competências e habilidades individuais.
Analisar tais valores em exercício contracolonizador demanda reconhecer marcas permanentemente atualizadas da invasão colonizadora na América Latina, que povos originários optam por denominar Abya Yala(e(e)Na língua do povo kuna (Colômbia), significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento”; usada como autodesignação dos povos originários (Disponível em: https://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala. Acesso em: 26 jun. 2023).) como ato, contínuo, de resistência. Os/as autores/as indicam que diversos estudos apontam a potência da EIPC para uma Atenção à Saúde pertinente nos sistemas de saúde no mundo. Embora documentos da OMS e Opas enfatizem a importância da análise contextual, pondero que, a rigor, seria imprescindível atentar à real função de um “modelo importado” quando há tantos mundos no mundo.
Convém considerar o risco da configuração do modelo como uma colonização dos modos de produzir saúde na Abya Yala, em estratégia sutil e convincente, desconsiderando tanto efeitos perversos da racionalidade neoliberal nessas terras quanto a produção de saberes e práticas localmente forjados, partindo de outras epistemologias e cosmovisões.
Recorro à crítica de Ailton Krenak sobre imposição (externa) e supervalorização (interna) de diretrizes internacionais nos mais diversos campos, não afinadas com nossas realidades e produções11 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.. Tomar a EIPC como “estratégia do futuro” não seria repetição de tecnologia colonial pela imposição da racionalidade eurocêntrica, fundante de profundos abismos sociais pelas empreitadas colonizadoras?
O documento da Opas, intitulado “A Educação Interprofissional na Atenção à Saúde: melhorar a capacitação de recursos humanos para conquistar a saúde universal”22 Organização Pan-Americana da Saúde. Educação interprofissional na atenção à saúde: melhorar a capacidade dos recursos humanos para alcançar a saúde universal. Relatório da reunião. 7-9 de dezembro de 2016. Bogotá, Colômbia [Internet]. Washington DC: OPAS; 2017 [citado 14 Ago 2023]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/documentos/educacao-interprofissional-na-atencao-saude-melhorar-capacidade-dos-recursos-humanos
https://www.paho.org/pt/documentos/educa... , gera inquietude. Vale seguir referindo o objetivo de uma “saúde universal”, quando há tempos se reconhece que poder dar andamento à vida se relaciona diretamente com as próprias condições em que a vida acontece, cuja ampliação de acesso depende de políticas públicas? A quem interessa continuar considerando pessoas como “recursos”, lógica preponderante da relação humana com a Terra, a engendrar uma destruição da condição de nossa existência no planeta? E se pessoas não são recursos/coisas/objetos, formar para a produção do cuidado, em saúde, não precisaria ir além de “capacitar”, partindo de um modelo único, e incorporar, assim, experimentações que possam, inclusive, furar o muro da suposta capacidade diante do não saber sobre o outro e suas produções existenciais, escapando das armadilhas das próprias profissões?
No “Marco para a ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa” da OMS33 Organização Mundial de Saúde. Marco para ação em educação interprofissional e prática colaborativa [Internet]. Genebra: OMS; 2010 [citado 14 Ago 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/dahu/pnsp/publicacoes/marco-para-acao-em-educacao-interprofissional-e-pratica-colaborativa-oms.pdf/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/composica... , a EIPC é instaurada como estratégia potente para reduzir a crise mundial da força de trabalho em saúde. É nesse documento que os/as autores/as identificam a ambivalência intrigante entre a indicação de ser UMA estratégia inovadora ou A estratégia do futuro. Curioso que se parta da definição de saúde da OMS, de 1948, vastamente criticada por não se sustentar na autenticação da imanência do viver, que jamais comportou “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”.
Parece urgente valorizar narrativas “pluriversais” sobre vida, mundo, saúde, educação, como tem sido majestosamente realizado pelo Selvagem – Ciclo de Estudos sobre a Vida(f(f)Concebido por Anna Dantes, orientado por Ailton Krenak, farto material é disponibilizado em https://selvagemciclo.com.br/.), que relaciona conhecimentos fundamentados em perspectivas variadas: indígenas, acadêmicas, científicas, tradicionais e de outras espécies. Assim, a potência da EIPC de “reavaliar, modificar e questionar assuntos estruturais, que explicam parcialmente as deficiências dos sistemas de saúde”, se amplificaria pela validação de outras frequências epistemológicas, descoladas da perspectiva biomedicalizante, que termina não sendo questionada.
O objeto do campo da saúde é a produção do cuidado, não a vida do/a outro/a, destacando-se a potência da micropolítica nos encontros cotidianos e das tecnologias relacionais44 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de novas tecnologias e saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 29-74. . Aí não há métrica definida, muito menos nas experimentações do cuidado como “produção de mais vida nas vidas vividas”(g(g)Expressão recorrentemente usada por Emerson Merhy em diversas manifestações sobre produção do cuidado.), efeito do trabalho vivo em ato, implicado com a defesa radical da vida de viventes humanos e não humanos.
Se a vida do/a outro/a assume centralidade na produção do cuidado, na perspectiva de que seja fertilizada, nisso estaria o esteio para a produção do campo comum, no entre-profissional. A ótica entre-profissional da interprofissionalidade, enfatizada por Merhy em várias produções(h(h)Como na comunicação intitulada “Cuidado no Entre Profissional”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ilacwgeKoeE.), demanda vazar os núcleos profissionais em atenção à vida que pede cuidado.
Assim, encontro se faz método e agir em saúde ultrapassa protocolos, configurando desafios para a transformação dos processos formativos e da produção do cuidado, pela avaliação permanente dos efeitos dos encontros na construção do agir ético. Nos encontros, acolher a diversidade de narrativas presentes aguça visões críticas sobre saúde e sofrimento, na relação direta com características da organização social e suas heranças coloniais, tomadas tanto como estruturais quanto como efeitos de dispositivos de controle e opressão, com plasticidade infinita na conjuntura capitalista/neoliberal.
Os/as autores/as convocam a refletir sobre pontos nevrálgicos na relação entre a implantação da EIPC, que preconiza constituir uma força de trabalho de saúde colaborativa preparada para a prática, e a racionalidade neoliberal, que produz vínculos precários de trabalho e demanda produtividade. Portanto, parece fundamental assumir o caráter político dos processos formativos para se avançar na “instauração de subjetividades profissionais críticas e éticas na relação com seu contexto”.
Qualquer referência para a produção do cuidado em saúde precisa pôr em questão a hegemonia (ou império?) da racionalidade biomédica e seu tecnicismo que, articulada com a indústria farmacêutica e de material médico-hospitalar, reforça o processo de patologização da vida e biomedicalização do social, invisibilizando a produção de vulnerabilidades oriundas da exploração de alguns viventes, própria do capitalismo, em que tudo vira mercadoria.
Flechar a EIPC, em exercício contracolonizador, parece trilha potente para transmutar a formação e o trabalho em saúde por processos enraizados na vida, substantivada singularmente em cada território, a pedir passagem à composição de outros possíveis. Eis o tecido fino da produção do cuidado, que demanda ativação do sensível em nós, e em teias.
- (b)Termo utilizado por Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.
- (c)Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), no nível da Graduação, e as Residências Multiprofissionais de Saúde, no nível de Pós-Graduação (lato sensu).
- (d)Edital n. 10, 2018, do Ministério da Saúde.
- (e)Na língua do povo kuna (Colômbia), significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento”; usada como autodesignação dos povos originários (Disponível em: https://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala. Acesso em: 26 jun. 2023).
- (f)Concebido por Anna Dantes, orientado por Ailton Krenak, farto material é disponibilizado em https://selvagemciclo.com.br/.
- (g)Expressão recorrentemente usada por Emerson Merhy em diversas manifestações sobre produção do cuidado.
- (h)Como na comunicação intitulada “Cuidado no Entre Profissional”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ilacwgeKoeE.
- Cabral BEB. Da urgência de flechar a formação e o trabalho em saúde em exercício contracolonizador. Interface (Botucatu). 2023; 27: e230353 https://doi.org/10.1590/interface.230353
Referências
- 1Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.
- 2Organização Pan-Americana da Saúde. Educação interprofissional na atenção à saúde: melhorar a capacidade dos recursos humanos para alcançar a saúde universal. Relatório da reunião. 7-9 de dezembro de 2016. Bogotá, Colômbia [Internet]. Washington DC: OPAS; 2017 [citado 14 Ago 2023]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/documentos/educacao-interprofissional-na-atencao-saude-melhorar-capacidade-dos-recursos-humanos
» https://www.paho.org/pt/documentos/educacao-interprofissional-na-atencao-saude-melhorar-capacidade-dos-recursos-humanos - 3Organização Mundial de Saúde. Marco para ação em educação interprofissional e prática colaborativa [Internet]. Genebra: OMS; 2010 [citado 14 Ago 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/dahu/pnsp/publicacoes/marco-para-acao-em-educacao-interprofissional-e-pratica-colaborativa-oms.pdf/view
» https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/dahu/pnsp/publicacoes/marco-para-acao-em-educacao-interprofissional-e-pratica-colaborativa-oms.pdf/view - 4Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de novas tecnologias e saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 29-74.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
30 Out 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
18 Jul 2023 - Aceito
08 Ago 2023