Barreiras da racionalidade neoliberal para a interprofissionalidade

Marina Peduzzi Sobre o autor

O artigo em debate traz uma analise das contradições entre a abordagem de trabalho e educação interprofissional em saúde e o contexto da racionalidade neoliberal na América Latina, buscando contribuir na perspectiva crítica da interprofissionalidade.

Os autores apontam que o modelo denominado Educação Interprofissional e Prática Colaborativa (EIPC) vem ganhando maior visibilidade, na última década, nos cenários mundial e latino-americano; nesse último, com a instalação da Rede Regional de Educação Interprofissional da Região das Américas (Reip), promovida pela Organização Pan-Americana da Saúde, em 2017. Mas cabe lembrar que a REIP inclui Estados Unidos e Canadá, que vêm desenvolvendo inciativas nessa direção desde a década de 1990.

Os Estados Unidos lança, no ano 2000, o livro “To Err is Human”11 Institute of Medicine (US). Committee on Quality of Health Care in America. To Err is human: building a safer health system. Washington (DC): National Academies Press (US); 2000. doi: 10.17226/9728.
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pelo Institute of Medicine. Uma publicação marcante no cenário global e regional, pois apresentou a gravidade dos erros médicos e sua relação com as dificuldades de comunicação interprofissional e de trabalho em equipe de saúde, acarretando eventos adversos temporários, permanentes ou fatais. Esse movimento ampliou as análises dos erros profissionais, levando à compreensão de que eles decorrem de problemas dos sistemas locais ou nacionais; e a elaboração por parte da Organização Mundial da Saúde do Plano de Ação Global para a Segurança do Paciente, tendo em vista o número alarmante de mortes anuais que decorrem de danos evitáveis aos pacientes22 World Health Organization. Seventy-second World Health Assembly. Resolution WHA72.6. Global action on patient safety. Geneva, 20-24 May 2019 [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [citado 20 Jul 2023]. Disponível em: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA72/A72_R6-en.pdf
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Portanto, entende-se que a EIPC ganha destaque a partir do final dos anos 1990, como apontado no artigo em debate, com base em evidências de sua relação com a segurança do paciente e a qualidade da Atenção à Saúde. As propostas aparecem no cenário mundial, no regional e de cada país, associadas ao reconhecimento da complexidade da saúde e dos sistemas de saúde; das mudanças do perfil epidemiológico e demográfico das populações com aumento das doenças e condições crônicas; das mudanças de gestão dos serviços e sistemas de saúde segundo modelos participativos; e da constatação de que a formação profissional segue fundamentada no modelo tradicional uniprofissional que não atende às necessidades de renovação da educação para o século XXI33 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an independent world. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58. doi: 10.1016/S0140-6736(10)61854-5.
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Portanto, há mudanças em curso que demandam EIPC e constituem uma tendência presente na Atenção à Saúde e na formação profissional, dada a relação recíproca entre trabalho e educação e sua reconhecida complexidade.

Nesse sentido, entende-se a EIPC como tendência mais do que como modelo, visto que ainda não foram alcançados consensos acerca dos construtos nucleares da proposta: trabalho em equipe, prática colaborativa, educação interprofissional. A imprecisão conceitual e dos termos utilizados compromete a própria EIPC, como vem sendo assinalado na literatura44 Reeves S, Pelone F, Harrison R, Goldman J, Zwarenstein M. Interprofessional collaboration to improve professional practice and healthcare outcomes. Cochrane Database Syst Rev. 2017; 6(6):CD000072. doi: 10.1002/14651858.CD000072.pub3.
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, e configura uma incongruência, pois sua implementação requer alinhamento conceitual e pesquisa, que, por sua vez, demanda definição de termos para avançar.

Por outro lado, o movimento em torno da EIPC nas últimas duas décadas traz a contribuição de colocar na agenda dos sistemas de saúde a necessidade de investimentos na transição do trabalho e educação multiprofissional para o trabalho e educação interprofissional. O primeiro caracterizado pela justaposição das ações de saúde dos profissionais de diferentes áreas, e o segundo, pela busca de articulação e integração das ações por meio da comunicação efetiva e da colaboração interprofissional.

As mudanças em torno da EIPC no setor saúde decorre também do reconhecimento de que cada uma das áreas profissionais em saúde reúne saberes e intervenções de cuidado orientados para as necessidades de saúde dos usuários, famílias e comunidade. Os profissionais das diversas áreas da Saúde deixam de ser vistos como auxiliares do trabalho médico, e o conjunto dos profissionais busca construir parcerias com foco nas necessidades do usuário e da população.

Mas o reconhecimento cultural e simbólico do trabalho e da educação interprofissional, como analisado no artigo em debate, enfrenta, dentre outras, barreiras estruturais do modelo da racionalidade neoliberal que se expressam, de forma dialética, também nas interações e comunicação entre os sujeitos envolvidos nas práticas de saúde e na formação profissional, na presente análise, nos países da América Latina.

No contexto neoliberal dominante no setor saúde dos países latino-americanos, segue forte “el primado de la biomedicina como concepción dominante de la salud”(p. 6) e a organização das práticas de saúde “bajo la influencia del enfoque de Nueva Gestión Pública que privilegia el criterio de eficiencia por encima del de justicia” (p. 6), o que é contrário e inconsistente ao movimento da EIPC que busca construir o modelo de Atenção Integral à Saúde orientada pela integralidade do cuidado.

Como apontado no texto em debate, a lógica neoliberal move os serviços e sistemas de saúde segundo valores e princípios empresariais e configura uma nova subjetividade, transformando trabalhadores e profissionais de saúde em empreendedores e colaboradores. Os profissionais das diversas áreas da Saúde deixam de se perceber como trabalhadores, sujeitos sociais com direitos e deveres, e deixam também de se perceber como profissionais, portadores de capacidades que lhes facultam contribuir na produção da saúde e no enfrentamento do adoecimento, e aceitam ser denominados pelas empresas da saúde como colaboradores. A racionalidade neoliberal configura um processo de subjetivação que faz desaparecer o trabalho como ação dirigida a um fim, que no campo da Saúde diz respeito ao reconhecimento e à atenção às necessidades de saúde55 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 298-374. doi: 10.18310/978-85-66659-74-0.
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Mas aqui reside uma contradição, além de incongruência, pois a prática colaborativa, presente no trabalho interprofissional, resulta do reconhecimento por parte dos agentes do trabalho e dos partícipes desse processo, como os estudantes, de que juntos é possível produzir mais e melhor Atenção à Saúde, portanto a colaboração interprofissional não é mandatória nem externa ao trabalho em saúde como ação coletiva. Os profissionais das diversas áreas da Saúde não cooperam porque lhes foi ordenado que colaborem, e colaborar é um ato voluntário66 D’Amour D, Goulet L, Labadie JF, Martín-Rodriguez LS, Pineault R. A model and typology of collaboration between professionals in healthcare organizations. BMC Health Serv Res. 2008; 8:188. doi: 10.1186/1472-6963-8-188.
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A denominação dos trabalhadores/profissionais de saúde como colaboradores das empresas veio acompanhada da configuração da narrativa do empreendedorismo, disseminada pelas agências econômicas ao longo das últimas quatro décadas de neoliberalismo. Essa narrativa configurou o trabalho como responsabilidade de cada indivíduo, sob a ameaça do desemprego, desconstruindo o reconhecimento legítimo do trabalho como responsabilidade do Estado e das empresas que asseguram a acumulação do capital, e agora segue o modelo flexível, sem gerar postos de trabalho77 Filgueiras VA. “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital. São Paulo: Boitempo; 2021..

A segunda contradição analisada refere-se à formação dos profissionais de saúde segundo o modelo de competências na acepção funcionalista, com foco nas ações técnico-cientificas prescritas e nos comportamentos que devem ser assimilados pelos indivíduos. Com isso, os autores do artigo indagam a adoção de parâmetros de competências de EIPC na ausência da reflexão crítica pertinente a cada cuidado à saúde e às condições de trabalho em que atuam estudantes e profissionais. Também questionam a formação por competências em um contexto dominado pela racionalidade neoliberal, no qual a ampliação do escopo de prática de cada área profissional em saúde e as decorrentes sobreposições de competências, bem como a delimitação de competências comuns, poderiam contribuir para aumentar o processo de desregulamentação das práticas profissionais.

Sem dúvida, o enfoque predominante de competências no contexto do neoliberalismo econômico e cultural reproduz a dinâmica de divisão social do trabalho em saúde regida pela divisão de classe e pela separação das dimensões mais intelectuais e mais manuais no parcelamento do trabalho55 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 298-374. doi: 10.18310/978-85-66659-74-0.
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. No entanto, entende-se que os marcos de competências interprofissionais mapeados88 Thistlethwaite JE, Dawn F, Matthews LR, Rogers GD, Steketee C, Yassine T. Competencies and frameworks in interprofessional education: a comparative analysis. Acad Med. 2014; 89(6):869-75. doi: 10.1097/ACM.0000000000000249.
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podem ser adotados de forma crítica quanto às mudanças contemporâneas no mundo do trabalho77 Filgueiras VA. “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital. São Paulo: Boitempo; 2021..

Por fim, destaca-se a contribuição do artigo em debate ao provocar a reflexão sobre a EIPC da perspectiva crítica ao neoliberalismo, o que merece um longo caminho de questionamentos para evitar a banalização da proposta de trabalho e educação interprofissional no cenário de empreendedorismo e de colaboração limitada a comportamentos prescritos.

REFERENCES

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    » https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000249

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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