Saberes que se cruzam: gênero, ciência e expertise leiga

Knowledge that intersects: gender, science and lay expertise

Conocimientos que se entrecruzan: género, ciencia y expertise lega

Elaine Reis Brandão Sobre o autor

Não há na contemporaneidade alguma vivência no campo da Saúde ou experiência corporal (alimentação, prática de exercícios físicos, contracepção, gestação, amamentação etc...) que não seja atravessada pelos saberes biomédicos, onipresentes em nossas sociedades ocidentais e, concomitantemente, pelas redes sociais, em um processo de digitalização do cotidiano também bastante pervasivo11 Segata J, Rifiotis T. Digitalização e dataficação da vida. Rev Cienc Soc. 2021; 21(2):186-92. doi: 10.15448/1984-7289.2021.2.40987.
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. A internet oportunizou uma ampliação e uma interação sem precedentes para aqueles que buscam conhecimentos ou informações sobre determinado tema, dispondo, às vezes, apenas de um smartphone (celular) nas mãos. A intensidade das trocas digitais, a multiplicidade de divulgadores científicos e influencers digitais tornaram as plataformas (Instagram, YouTube, Facebook, WhatsApp) abertas a conteúdos que se propõem a “ensinar” tudo – dietas, exercícios, como amamentar, como parir, como evitar filhos, como educá-los –, ensejando trocas de experiências entre interlocutore/as que jamais se encontrariam não fosse o ambiente digital.

O artigo de Fazzioni e Lerner22 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
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integra um conjunto de trabalhos etnográficos que vêm, nos últimos anos, problematizando as relações entre ciência, gênero, tecnologia e maternidade33 Alzuguir F, Nucci MF. Maternidade mamífera? Concepções sobre natureza e ciência em uma rede social de mães. Mediações. 2015; 20(1):217-38. doi:10.5433/2176-6665.2015v20n1p217.
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4 Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD, organizadora. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.
-55 Batista JV, Souza ER. Gênero, ciência e etnografia digital: aproximações e potencialidades. Cad Campo (USP). 2020; 29(2):e175199. doi:10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe175199.
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. Inspirados nos Estudos Sociais da Ciência e, por vezes, também em estudos feministas, temas como o parto e a amamentação ganham destaque por meio de blogs, comunidades virtuais, debates entre ativistas e especialistas, ora enquadrados pela ótica das “evidências científicas”, ora ancorados nas experiências de mulheres que socializam suas práticas de autocuidado ou cuidado com os filhos e seus eventos reprodutivos (gestação, parto, puerpério, amamentação, nutrição infantil...), constituindo assim um conjunto de saberes leigos, socialmente produzidos entre pares.

O compartilhamento de experiências de vida na internet, em especial de eventos relativos à saúde e à doença, como demonstram as autoras, tem sido exponencial e cada vez mais objeto de estudo de várias pesquisadoras no contexto internacional66 Lupton D. Digital health: critical and cross-disciplinary perspectives. Abingdon: Routledge; 2017.

7 Lupton D, Maslen S. How women use digital technologies for health: qualitative interview and focus group study. J Med Internet Res. 2019; 21(1):e11481. doi: 10.2196/11481.
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-88 Akrich M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociol Res. 2010; 15(2):116-32. doi:10.5153/sro.2152.
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. Esse fenômeno tem dado origem à constituição de um debate em torno de conhecimentos produzidos por experiências concretas de adoecimento, de cuidados corporais ou de algum evento reprodutivo, por exemplo. Nessa direção, o que o artigo em debate nos inspira? A pensar sobre, a considerar ou reconhecer saberes que integram redes de apoio e de cuidado entre sujeitos (mães, cuidadora/es, portadora/es de doenças, usuário/as de tecnologias médicas etc.) para além da ciência canônica como a conhecemos, abrindo uma fresta para uma escuta atenciosa dos relatos e saberes acumulados por meio de uma vivência corporal, matizada pelo gênero, racializada e territorialmente situada. Essa materialidade constitui as possibilidades de exercício da maternidade e da amamentação de modo radicalmente distinto socialmente.

A maternidade é um tema sempre eivado de concepções que a naturalizam ou a sacralizam, sendo permanentemente idealizada e romantizada nas redes sociais. Desnudá-la como um evento social e cultural, que precisa do amparo do Estado para se efetivar de forma digna, de apoio e cuidado de uma rede de proteção que possa se incumbir dos afazeres domésticos e de educação dos filhos, tem sido uma reivindicação de muitas mulheres que sofrem para gerar e criar seus filhos, se considerarmos os marcadores sociais da diferença – classe, gênero, processos de racialização, etnias, territórios etc.

Além dos modelos normativos de como deve transcorrer a maternidade e/ou a amamentação e o que as evidências científicas informam, ratificadas pelas agências como Organização Mundial da Saúde, Organização Pan-Americana de Saúde ou Ministério da Saúde, os saberes gerados no cotidiano das experiências da amamentação, entrecortados por condições sociais materiais e simbólicas concretas, inspiram outro modo de reflexividade e de engajamento que tem dado origem a uma expertise leiga e à possibilidade de um empreendimento colaborativo na produção de novos conhecimentos. Uma ciência cidadã tem sido forjada gradativamente, abrindo espaço a outras epistemes enraizadas nas experiências práticas e no cotidiano vivido88 Akrich M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociol Res. 2010; 15(2):116-32. doi:10.5153/sro.2152.
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,99 Pols J. Knowing patients: turning patient knowledge into science. Sci Technol Human Values. 2014; 39(1):73-97. doi:10.1177/0162243913504306.
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Outro aspecto interessante que o texto aponta é a possibilidade de essas mulheres ou jovens transformarem sua inserção ocupacional por meio desse engajamento nas redes, compartilhando suas experiências e orientando outras mães, auferindo assim alguma renda com a perspectiva de monetização das relações nas quais as informações são compartilhadas e consumidas. Um exemplo bastante próximo dessa iniciativa é o caso de uma adolescente que engravidou aos 14 anos, tendo seu filho aos 15 anos, encontrando inicialmente no YouTube e depois no Instagram um meio de tornar pública e socializar sua gestação, seu parto, sua amamentação, e atualmente a alimentação adequada e saudável para crianças menores de 2 anos (tema do ebook que ela comercializa). Como sua filha tem hoje 3 anos, ela vem acompanhando o crescimento da filha e os desafios da educação e da alimentação infantil com outras mães adolescentes e jovens, tornando-se um fenômeno de sucesso, com aproximadamente noventa mil seguidoras, majoritariamente mães e cuidadoras, tendo alcançado sua independência financeira antes dos 16 anos1010 Gonçalves ACF. Nutrição infantil nas redes sociais no período de 2021 e 2022: interseccionando reprodução adolescente e processo de autonomização [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2022.. A possibilidade de trabalhar em casa, próximo dos filhos, criando conteúdos mediante rotinas cotidianas, tem sido possível por meio do interesse majoritário do público em acompanhar aspectos da vida privada, transformando-se em uma via possível para o empreendedorismo digital.

Se o cansaço das mães, aludido no artigo de Fazzioni e Lerner22 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
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, por meio da intensidade das trocas digitais em conexão full-time e do cotidiano de cuidados aos filhos recém-nascidos, pode consumi-las à exaustão, a internet também oferta a possibilidade de encontros e relações sociais, trocas afetivas e apoio mútuo e solidariedade para além das telas, configurando-se em uma extensa rede de apoio, mediada por interesses comuns e partilha de saberes.

Referências

  • 1
    Segata J, Rifiotis T. Digitalização e dataficação da vida. Rev Cienc Soc. 2021; 21(2):186-92. doi: 10.15448/1984-7289.2021.2.40987.
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.40987
  • 2
    Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220698
  • 3
    Alzuguir F, Nucci MF. Maternidade mamífera? Concepções sobre natureza e ciência em uma rede social de mães. Mediações. 2015; 20(1):217-38. doi:10.5433/2176-6665.2015v20n1p217.
    » https://doi.org/10.5433/2176-6665.2015v20n1p217
  • 4
    Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD, organizadora. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.
  • 5
    Batista JV, Souza ER. Gênero, ciência e etnografia digital: aproximações e potencialidades. Cad Campo (USP). 2020; 29(2):e175199. doi:10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe175199.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe175199
  • 6
    Lupton D. Digital health: critical and cross-disciplinary perspectives. Abingdon: Routledge; 2017.
  • 7
    Lupton D, Maslen S. How women use digital technologies for health: qualitative interview and focus group study. J Med Internet Res. 2019; 21(1):e11481. doi: 10.2196/11481.
    » https://doi.org/10.2196/11481
  • 8
    Akrich M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociol Res. 2010; 15(2):116-32. doi:10.5153/sro.2152.
    » https://doi.org/10.5153/sro.2152
  • 9
    Pols J. Knowing patients: turning patient knowledge into science. Sci Technol Human Values. 2014; 39(1):73-97. doi:10.1177/0162243913504306.
    » https://doi.org/10.1177/0162243913504306
  • 10
    Gonçalves ACF. Nutrição infantil nas redes sociais no período de 2021 e 2022: interseccionando reprodução adolescente e processo de autonomização [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2023
  • Aceito
    14 Mar 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br