O artigo em debate11 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
https://doi.org/10.1590/interface.230492... contribuiu significativamente para o campo da hesitação vacinal ao adotar a interseccionalidade como uma lente analítica. As autoras focam a análise da branquitude como um dispositivo de poder e de manutenção de privilégios sistêmicos, materiais e simbólicos22 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022. para aprofundar a discussão sobre a percepção de risco dos indivíduos ao decidirem não vacinar seus filhos, explorando motivos que justificam essa escolha e como os aspectos sociais e as relações de poder influenciam essa decisão. Compartilhamos com as autoras a intenção de compreender o fenômeno da hesitação vacinal em sua complexidade por meio da contribuição das Ciências Sociais e Humanas, considerando-o como uma construção social performando categorias como raça, gênero, classe social, entre outros.
Tomando como base a estratégia trazida pelas autoras, de deslocamento da temática da hesitação vacinal para não vacinação como uma forma de desmedicalizar a discussão, propomos aqui conceber a hesitação vacinal como fenômeno social complexo determinado historicamente, apresentando continuidades, descontinuidades e redescrições nas suas formas de produção de sentido. Embora a discussão em torno desse conceito não seja recente, é principalmente a partir da vacinação contra a Covid-19 que este debate ganha novos contornos no Brasil e no mundo.
A determinação socioeconômica ainda aparece como predominante nas análises em saúde coletiva, em detrimento de categorias como raça e gênero, que igualmente são eixo estruturantes que organizam a vida social; que reforçam iniquidades; e que condicionam padrões de adoecimento e acesso aos serviços de saúde33 Reis AP, Góes EF, Pilecco FB, Almeida MCC, Diele-Viegas LM, Menezes GMS, et al. Desigualdades de gênero e raça na pandemia de Covid-19: implicações para o controle no Brasil. Saude Debate. 2020; 44(4 Spec No):324-40.. No artigo, as autoras analisam as dimensões que estruturam a formação social brasileira, que requer a inclusão, na análise da hesitação vacinal, de aspectos ligados à matriz colonial de dominação, na qual estão entrelaçadas as opressões de gênero, raça e classe.
Gostaríamos de dialogar com o texto, alinhados com a perspectiva e análises apresentadas, contribuindo com alguns elementos estruturais e conjunturais específicos que compreendemos como relevantes para a discussão sobre a hesitação vacinal no Brasil: a desigualdade no acesso e na oferta dos imunizantes para certos corpos, o fenômeno da infodemia e a polarização do contexto político contemporâneo, a partir de uma leitura interseccional.
Raça, gênero e desigualdade no acesso e na oferta de imunizantes
Nas populações historicamente vulnerabilizadas, a hesitação vacinal emerge muitas vezes como reflexo das barreiras de acesso aos serviços de saúde, sejam elas por aspectos mais organizacionais ou pela qualidade do atendimento ofertado. De acordo com Lúcia Xavier, ativista dos direitos das mulheres negras e fundadora da organização não governamental Criola, considerando a alta taxa de desemprego e presença no mercado informal da população negra, contexto que inclui jornadas extensas e longos deslocamentos, os horários limitados das unidades de saúde podem ser uma barreira à vacinação44 Lisboa V. Racismo afasta negros e indígenas da vacinação: confiança no sistema acaba sendo prejudicada, diz ativista [Internet]. Brasília: Agência Brasil; 2023 [citado 15 Maio 2024]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-09/racismo-afasta-negros-e-indigenas-da-vacinacao
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/n... .
No caso da Covid-19, acompanhamos o atraso na aquisição dos imunizantes e a ausência de articulação entre os entes federativos para a redistribuição das vacinas nos territórios no início da pandemia, gerando escassez de insumos nas unidades e aumentando a hesitação na vacinação, seja pelo tempo de espera nas unidades ou pela demora da chegada do insumo em territórios de difícil acesso geográfico, como em territórios indígenas e quilombolas. Pensando em uma perspectiva interseccional, é preciso estar atento para o fato de que as escolhas políticas do Estado podem reproduzir institucionalmente o que Mbembe chama de necropolítica, ao ressaltar o racismo como elemento central do exercício do poder estatal que legitima o direito de “deixar morrer” certas populações racializadas55 Mbembe A. Necropolítica. 3a ed. São Paulo: N-1 Edições; 2018..
No Brasil, há uma escassez de estudos sobre a vacinação para a população LGBTQIAPN+, evidenciando uma não desagregação dos dados rotineiros sobre vacinas relativos à identidade de gênero e orientação sexual66 Ventura DFL, Aith FMA, Pereira CR, Moura RF. Desigualdade no acesso a vacinas contra a Covid-19 no Brasil (Estudo técnico). São Paulo: Oxfam Brasil; 2022.. Estudos reforçam ainda que as experiências negativas anteriores com profissionais de saúde são incluídas como principais motivos que levam a hesitação vacinal para essa população77 Garg I, Hanif H, Javed N, Abbas R, Mirza S, Javaid MA, et al. Covid-19 vaccine hesitancy in the LGBTQ+ population: a systematic review. Infectious Disease Reports. 2021; 13(4):872-87..
A alta proporção de subnotificações e o preenchimento incompleto da variável raça/cor nos instrumentos de coleta de dados de vigilância refletem o efeito do racismo institucional e estrutural, que invisibiliza grupos racializados e impossibilita as análises de cobertura vacinal pela clivagem racial, impedindo a identificação de suas barreiras de acesso à vacina e a proposição de políticas e ações para o enfrentamento dessas iniquidades66 Ventura DFL, Aith FMA, Pereira CR, Moura RF. Desigualdade no acesso a vacinas contra a Covid-19 no Brasil (Estudo técnico). São Paulo: Oxfam Brasil; 2022., incluindo os motivos que contribuem para a hesitação vacinal.
Além disso, o racismo pode se manifestar não apenas de forma direta e por agressões físicas ou verbais, mas também estar presente no modo em que a população é recebida, na forma de questionamento do seu agravo ou mesmo na maneira que é ofertada uma informação, minando assim a confiança que deveria ser estabelecida entre usuário e profissional de saúde44 Lisboa V. Racismo afasta negros e indígenas da vacinação: confiança no sistema acaba sendo prejudicada, diz ativista [Internet]. Brasília: Agência Brasil; 2023 [citado 15 Maio 2024]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-09/racismo-afasta-negros-e-indigenas-da-vacinacao
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Infodemia, fake news e vacinação
Vale acrescentar que a hesitação vacinal também emerge como consequência do fenômeno da infodemia, que é caracterizada pela recente expansão e acesso às redes sociais e das tecnologias de comunicação e informação; e pelo excesso de informações não qualificadas e disseminação de fake news.
A hesitação vacinal que a infodemia proporciona atravessa todas as classes sociais, mas de maneira diferenciada. Os sujeitos de classes privilegiadas parecem hesitar por terem acesso a informações sobre vacinas alternativas ou maior acesso a grupos antivacina, levando à desconfiança em relação às vacinas tradicionais. Por outro lado, os sujeitos oriundos de populações e territórios vulnerabilizados hesitam mediante o excesso de informações não confiáveis e a maior dificuldade em identificar notícias falsas88 Hudson A, Montelpare WJ. Predictors of vaccine hesitancy: implications for Covid-19 public health messaging. Int J Environ Res Public Health. 2021; 18(15):8054.. Embora as preocupações com os efeitos colaterais, muito disseminados pelas fake news, apareçam entre os hesitantes independente dos marcadores sociais de raça, etnia, gênero e classe, somente alguns grupos detêm privilégios materiais e simbólicos para arcar com a tomada de decisão em não vacinar, como vimos no artigo em debate.
Polarização política e hesitação vacinal
Apesar das informações disponíveis sobre a gravidade da pandemia, a comunicação que minimizou a seriedade da Covid-19, indo contra o consenso científico internacional, causou danos desproporcionais e injustos à maioria dos brasileiros. Essa abordagem foi resultado de um ambiente político e institucional polarizado que favorece o fundamentalismo de mercado, levando ao desmantelamento das instituições de saúde e educação, evidenciando uma perspectiva neoliberal de intervenção do Estado99 Santos KCOD, Junqueira-Marinho MF, Reis AT, Camacho KG, Nehab MF, Abramov DM, et al. Social representations of hesitant brazilians about vaccination against Covid-19. Int J Environ Res Public Health. 2023; 20(13):6204..
A interferência do governo federal durante a pandemia também contribuiu para disseminação de informações equivocadas sobre vacinas. Grupos influenciados pela perspectiva negacionista do governo propagaram fake news, deixando a população vulnerável a essas informações99 Santos KCOD, Junqueira-Marinho MF, Reis AT, Camacho KG, Nehab MF, Abramov DM, et al. Social representations of hesitant brazilians about vaccination against Covid-19. Int J Environ Res Public Health. 2023; 20(13):6204..
Este processo atingiu inclusive corporações profissionais como o Conselho Nacional de Medicina (CFM), que, ao longo da pandemia, posicionou-se a favor da prescrição de tratamentos sem comprovação científica e, mais recentemente, com o questionamento da obrigatoriedade da vacinação infantil contra a Covid-19.
Diante do exposto, julgamos de extrema relevância para o campo da Saúde Coletiva o debate em torno da hesitação vacinal como um processo socialmente construído, que apresenta uma gama de sentidos em disputa. A análise desse fenômeno a partir de uma lente interseccional possibilita contextualizar e compreender as clivagens e os marcadores sociais que influenciam não apenas a percepção de risco dos sujeitos e os processos de tomada de decisão, mas também uma compreensão mais ampla das práticas de saúde e como estas fomentam as discussões do campo das políticas de saúde e vice-versa. Dessa forma, é necessário identificar e compreender mais profundamente as causas – estruturais e conjunturais; e discursivas e políticas – que geram iniquidades em saúde para contribuir com as políticas públicas de imunização e os direitos de grupos sociais invisibilizados.
- Matta G, Paiva E, Rosário C. Hesitação vacinal e interseccionalidade: reflexões para contribuir com as práticas e políticas públicas sobre vacinação. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240226 https://doi.org/10.1590/interface.240226
Referências
- 1Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
» https://doi.org/10.1590/interface.230492 - 2Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.
- 3Reis AP, Góes EF, Pilecco FB, Almeida MCC, Diele-Viegas LM, Menezes GMS, et al. Desigualdades de gênero e raça na pandemia de Covid-19: implicações para o controle no Brasil. Saude Debate. 2020; 44(4 Spec No):324-40.
- 4Lisboa V. Racismo afasta negros e indígenas da vacinação: confiança no sistema acaba sendo prejudicada, diz ativista [Internet]. Brasília: Agência Brasil; 2023 [citado 15 Maio 2024]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-09/racismo-afasta-negros-e-indigenas-da-vacinacao
» https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-09/racismo-afasta-negros-e-indigenas-da-vacinacao - 5Mbembe A. Necropolítica. 3a ed. São Paulo: N-1 Edições; 2018.
- 6Ventura DFL, Aith FMA, Pereira CR, Moura RF. Desigualdade no acesso a vacinas contra a Covid-19 no Brasil (Estudo técnico). São Paulo: Oxfam Brasil; 2022.
- 7Garg I, Hanif H, Javed N, Abbas R, Mirza S, Javaid MA, et al. Covid-19 vaccine hesitancy in the LGBTQ+ population: a systematic review. Infectious Disease Reports. 2021; 13(4):872-87.
- 8Hudson A, Montelpare WJ. Predictors of vaccine hesitancy: implications for Covid-19 public health messaging. Int J Environ Res Public Health. 2021; 18(15):8054.
- 9Santos KCOD, Junqueira-Marinho MF, Reis AT, Camacho KG, Nehab MF, Abramov DM, et al. Social representations of hesitant brazilians about vaccination against Covid-19. Int J Environ Res Public Health. 2023; 20(13):6204.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
17 Maio 2024 - Aceito
16 Jun 2024