Resumos
O modo de trabalhar das equipes de Saúde da Família pode favorecer o compartilhamento entre diferentes campos de saberes e o desenvolvimento de práticas colaborativas interprofissionais. Objetivou-se compreender como se dá a construção de práticas colaborativas interprofissionais no processo de trabalho em unidades de Saúde da Família (USF). Investigação exploratória, descritiva, com abordagens quantitativa e qualitativa, realizada com equipes de Saúde da Família de 26 municípios do interior paulista, utilizando dados secundários e entrevistas semiestruturadas. Da análise, emergiram duas categorias temáticas: o desenvolvimento do trabalho interprofissional e aspectos relacionados com a equipe. A construção das práticas colaborativas interprofissionais perpassa os espaços coletivos em momentos de integração dos profissionais. Porém, existem fragilidades decorrentes da fragmentação das práticas profissionais e da não centralidade no usuário.
Palavras-chave
Relações interprofissionais; Práticas interdisciplinares; Assistência centrada no paciente; Atenção primária à saúde
El modo de trabajar de los equipos de Salud de la Familia puede favorecer la compartición entre diferentes campos de saberes y el desarrollo de prácticas colaborativas interprofesionales. El objetivo fue comprender cómo se realiza la construcción de prácticas colaborativas interprofesionales en el proceso de trabajo en unidades de Salud de la Familia. Una investigación exploratoria, descriptiva, con abordajes cuantitativo y cualitativo, realizada con equipos de Salud de la Familia de 26 municipios del interior del Estado de São Paulo, utilizando datos secundarios y entrevistas semiestructuradas. Del análisis surgieron dos categorías temáticas: el desarrollo del trabajo interprofesional y aspectos relacionados con el equipo. La construcción de las prácticas colaborativas interprofesionales atraviesa los espacios colectivos, en momentos de integración de los profesionales. No obstante, hay fragilidades provenientes de la fragmentación de las prácticas profesionales y de la no centralidad en el usuario.
Palabras clave
Relaciones interprofesionales; Prácticas interdisciplinarias; Asistencia centrada en el paciente; Atención primaria de la salud
Introdução
As práticas de cuidado em saúde são tensionadas pelas constantes transformações dos perfis populacionais que impactam diretamente a qualidade de vida das pessoas, gerando grandes desafios a serem superados pelo Sistema Único de Saúde (SUS)11 Souza MFM, Malta DC, França EB, Barreto ML. Transição da saúde e da doença no Brasil e nas Unidades Federadas durante os 30 anos do Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1737-50. doi: 10.1590/1413-81232018236.04822018.
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236... . Nesse cenário, temos a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como modelo prioritário para a ampliação e o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) no país22 Gomes CBS, Gutiérrez AC, Soranz D. Política Nacional de Atenção Básica de 2017: análise da composição das equipes e cobertura nacional da Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1327-38. doi: 10.1590/1413-81232020254.31512019.
https://doi.org/10.1590/1413-81232020254... , que tem o compromisso de desenvolver ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos, cuidado integral à saúde das famílias assistidas, por meio de uma equipe multiprofissional com atenção totalmente focada no usuário22 Gomes CBS, Gutiérrez AC, Soranz D. Política Nacional de Atenção Básica de 2017: análise da composição das equipes e cobertura nacional da Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1327-38. doi: 10.1590/1413-81232020254.31512019.
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No entanto, a centralização do processo de cuidados nesse usuário se apresenta como um desafio, sendo preciso intensa troca de conhecimentos e efetiva comunicação entre os atores envolvidos33 Escalda P, Parreira CMSF. Dimensões do trabalho interprofissional e práticas colaborativas desenvolvidas em uma unidade básica de saúde, por equipe de Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1717-27. doi: 10.1590/1807-57622017.0818.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08... . Essa prática visa promover as interações intersubjetivas essenciais para assegurar o compartilhamento de poder e responsabilidades44 Silva JAM, Peduzzi M, Orchard C, Leonello VM. Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP. 2015; 49(2 Spec No):16-24. doi: 10.1590/S0080-623402150000800003.
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Em alguns momentos, as atividades dos profissionais são direcionadas às suas especialidades, mas muitas vezes, quando sozinhos em sua prática, não conseguem solucionar as diferentes questões exigidas pela população, pois o resultado do cuidado integral é produto de relações pessoais e profissionais com foco no resgate do sentido da colaboração no trabalho interprofissional33 Escalda P, Parreira CMSF. Dimensões do trabalho interprofissional e práticas colaborativas desenvolvidas em uma unidade básica de saúde, por equipe de Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1717-27. doi: 10.1590/1807-57622017.0818.
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Nessa visão, a educação interprofissional (EP) e a prática colaborativa (PC) surgem como importantes estratégias. A EP proporciona aos profissionais de diferentes áreas que aprendam, uns com os outros, sobre os outros e entre si, para a efetiva colaboração55 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice. Geneva: WHO; 2010.. Quanto à prática colaborativa, ela ocorre quando os profissionais de diferentes áreas prestam serviços com base na integralidade à saúde, envolvendo os pacientes e suas famílias55 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice. Geneva: WHO; 2010., e se apoia sobre os pilares do compartilhamento, da parceria, da interdependência das ações e relações horizontais de poder, permeados pelo respeito e pela confiança66 Peduzzi M, Agrelli HLF, Silva JAM, Souza HS. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678. doi: 10.1590/1981-7746-sol00246.
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Para que essa prática se torne cada vez mais presente nos serviços de saúde, é preciso que existam oportunidades de integração com decisões compartilhadas. O ambiente (instalações e infraestrutura) e o processo de trabalho têm papéis importantes, pois podem propiciar momentos de diálogo e atividades compartilhadas, além de desafiarem o profissional a sair do isolamento em sua prática77 Fontana KC, Lacerda JT, Machado PMO. O processo de trabalho na Atenção Básica à Saúde: avaliação da gestão. Saude Debate. 2016; 40(110):64-80. doi: 10.1590/0103-1104201611005.
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Dessa forma, questiona-se o processo de trabalho das equipes de unidades de Saúde da Família (USF), a forma pela qual desenvolvem as atividades conjuntas e se possuem momentos que favoreçam o compartilhamento de informações entre trabalhadores de diferentes campos de saberes, propiciando o desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais.
O objetivo deste estudo é compreender como se dá a construção de práticas colaborativas interprofissionais no processo de trabalho nas unidades de Saúde da Família.
Materiais e métodos
Trata-se de investigação exploratória, descritiva, de abordagens quantitativa e qualitativa, realizada com equipes de Saúde da Família dos 26 municípios do Departamento Regional de Saúde – DRS XIII, no interior do estado de São Paulo.
Dados secundários referentes aos resultados da avaliação do 3º ciclo do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade (PMAQ), implementado entre os anos de 2015 e 2016, foram obtidos em plataformas de acesso público do Ministério da Saúde.
Nos meses de maio e abril de 2021 foram coletados dados relativos à caracterização dos espaços coletivos das Unidades de Saúde presentes no módulo II constituído por três grupos: "Reunião de Equipe", "Planejamento" e "Apoio". Na base de dados constavam informações de somente 21 dos 26 municípios. Os dados foram lançados em planilha Excel e submetidos a análise estatística descritiva.
Na abordagem qualitativa, utilizou-se a técnica de entrevista semiestruturada realizada pelo autor principal do estudo. Foram convidadas a participar desse estudo as Unidades de Saúde mais bem conceituadas na avaliação PMAQ de cada município. Dos vinte e seis municípios da DRS XIII, cinco não possuíam pontuação na avaliação PMAQ e não foram incluídos. Para seleção do trabalhador a ser entrevistado, solicitamos que o coordenador da unidade indicasse o integrante mais apropriado às atividades da equipe. Os convites foram realizados por meio de ligações telefônicas e, na ocasião, foram agendadas as entrevistas e acordado o envio dos termos de consentimento livre e esclarecido via e-mail. Durante esse processo, ocorreu a perda de quatro participantes: duas pessoas não aceitaram participar e duas não foram encontradas após cinco tentativas de contato.
As entrevistas foram realizadas entre os meses de abril e julho de 2021, de forma on-line, por meio da plataforma Google Meet, por um único pesquisador experiente em técnica de entrevista semiestruturada com experiência profissional na estratégia Saúde da Família. O entrevistador não apresentava conflito de interesses com os participantes do estudo. As entrevistas tiveram duração aproximada de trinta minutos, com apoio de roteiro semiestruturado composto de duas partes: na primeira, abordou-se a caracterização dos participantes e, na segunda, o participante foi convidado a falar sobre o tema do estudo. O roteiro foi aplicado previamente em entrevistas-piloto com duas enfermeiras de Unidades de Saúde da Família de um dos municípios para seu aprimoramento, e o conteúdo não foi incluído nas análises. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas, e os dados foram submetidos à análise de conteúdo88 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. à luz das bases teóricas do trabalho e da colaboração interprofissional.
A pesquisa foi aprovada pelo CEP, com parecer n. 4.574.817 e CAAE n. 41142820.0.0000.539.
Resultados
Foram realizadas 17 entrevistas, das quais participaram 14 enfermeiros, 2 agentes comunitários de saúde e 1 médico, com idades entre 25 e 62 anos. Todos os participantes possuíam experiências na ESF anteriores à equipe a que pertenciam no momento das entrevistas. Com relação ao tempo de trabalho na equipe, variou entre 6 meses e 13 anos.
Os dados do PMAQ analisados, relativos à caracterização de espaços coletivos existentes na organização do processo de trabalho das equipes dos 21 municípios da DRS XIII no interior do estado de São Paulo, mostram que 19 (90,5%) realizam reuniões de equipe regularmente; e desses 19, 14 (66,7%),semanalmente; 4 (19,0%), quinzenal ou mensalmente; e 3 (14,3%), sem periodicidade definida ou não as realiza. O planejamento das ações é feito em 19 (90,5%) municípios, por todas as equipes, com frequências variadas: semanal, quinzenal, mensal e anualmente. Dois municípios informaram que não realizam tal ação.
Os indicadores mostram que vinte municípios recebem apoio institucional, sendo apenas 3 com Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Não havia informações sobre a periodicidade de oferta desse apoio às equipes.
Diálogo com os profissionais
Da análise das entrevistas, emergiram duas categorias temáticas: o desenvolvimento do trabalho interprofissional e os aspectos relacionados à equipe.
Primeira categoria – desenvolvimento do trabalho interprofissional
Essa categoria está composta pelas subcategorias: trabalho interprofissional na perspectiva dos participantes, facilitadores para o desenvolvimento do trabalho interprofissional, os diversos espaços coletivos e o tempo em que a equipe trabalha junto.
Trabalho interprofissional na perspectiva dos participantes
Foi possível observar a existência de diversas conceituações de trabalho interprofissional entre os participantes, e os entrevistados consideraram fazer parte do trabalho interprofissional.
Acho que é porque é o momento que a gente consegue discutir a opinião de cada um, de todos os profissionais, para saber até onde a gente pode chegar e qual é o melhor método, passando por nós todos, para a gente conseguir nosso objetivo que é uma melhor assistência ao paciente. (E 10)
Embora alguns entrevistados considerem seu trabalho como interprofissional, podemos observar a fragmentação dele, sem integração dos saberes.
Porque é nesses momentos que a gente agrega o conhecimento técnico de cada uma dessas profissões. Então, em um grupo, por exemplo, a gente combina: a enfermeira vai fazer os exames dos pés, a médica vai explicar os exames, os agentes comunitários vão entregar o panfleto sobre a informação da doença; então, cada um com o seu conhecimento técnico contribui para aquele atendimento. (E 7)
Facilitadores para o desenvolvimento do trabalho interprofissional
Os depoimentos demonstram elementos subjetivos e objetivos que facilitam a interação entre os membros da equipe. Dentre os elementos subjetivos, destacam-se a união entre os membros da equipe, a vontade de trabalhar e o respeito.
Para mim, a equipe tem que estar unida. Eu acho que é isso! Tem que ser essa união em primeiro lugar, senão o trabalho nunca será bem realizado. (E 8)
Alguns elementos objetivos foram identificados como facilitadores do trabalho colaborativo interprofissional. A reunião de equipe apresenta-se como fundamental para que seja possível desenvolver a interprofissionalidade e o planejamento das atividades.
Eu cheguei à unidade e essa reunião não acontecia; demorou uns três anos para a gente conquistá-la e isso foi um facilitador enorme. Então, ter esse momento, uma vez por mês, para parar a unidade, foi uma potência; é muito importante isso para que a gente tenha essa multiprofissionalidade. (E 7)
Para que as reuniões acontecessem, os participantes apontaram como importante terem o horário reservado e as agendas bloqueadas para essa atividade.
Os relatos demonstram que as reuniões são importantes para que se efetive a integração entre os membros da equipe por meio de discussão sobre o processo de trabalho, discussão de assuntos internos dessa equipe e de formas para seus membros atuarem conjuntamente, visando ao desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais.
Nessas reuniões, a gente discute tanto casos de família quanto processo de trabalho, como também algumas coisas relacionadas ao próprio dia a dia. (E 7)
Os diversos espaços coletivos
Os participantes mencionaram diferentes espaços coletivos nos quais os membros da equipe interagem entre si e também com outros atores relevantes para a produção das ações de cuidado ao usuário, à família e à comunidade.
As reuniões foram referidas como espaços coletivos onde se trabalha com os apoiadores da USF, matriciamento e interações com diferentes gestores e coordenadores do município, promovendo a intersetorialidade.
A gente tinha uma reunião de rede, em que a gente se reunia também com os coordenadores de todo o município, da escola e do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), e com a assistente social, os psicólogos e todas as diretoras das escolas (de Educação Básica) da cidade. (E 14)
As consultas compartilhadas foram referidas como espaços coletivos onde os atendimentos são realizados por profissionais de diferentes áreas.
Eu faço consulta compartilhada com a médica; ela fica dentro da sala comigo. A dentista também costuma participar. (E 2)
As atividades de promoção da saúde e de prevenção de agravos são desenvolvidas, pelas equipes, com hipertensos, diabéticos, gestantes e puérperas.
Então, a gente tinha grupo de hipertensos; a gente fazia grupos, reuniões com o enfermeiro, o dentista, as fisioterapeutas; então, toda a equipe multidisciplinar fazia essas reuniões com os grupos de hipertensos, de gestantes e puérperas. (E 13)
No entanto, na maioria dos casos, os grupos eram coordenados por um único profissional no momento de sua execução, mesmo quando havia mais de um profissional responsável pelo grupo. Assim, foram observados indícios de que seu desenvolvimento acontecia de forma fragmentada, com clara divisão de tarefas entre os diferentes profissionais, o que não significava que o trabalho estava sendo desenvolvido de forma interprofissional.
Além dos muros da USF, existem espaços coletivos com grande potencial para o desenvolvimento da colaboração, como as visitas domiciliares (VD) e o Programa Saúde na Escola (PSE).
Outro momento em que, às vezes, a equipe se une para fazer atividades, são as atividades coletivas e, especificamente, as visitas domiciliares. (E 7)
No caso do PSE, a ação intersetorial entre as áreas da Saúde e da Educação envolve as atividades planejadas nas reuniões de equipe, com base nas demandas da direção da escola, com potencial elevado para o desenvolvimento da colaboração em rede.
A gente vai à escola, pergunta o que a diretora e os professores desejam naquele momento, os assuntos que eles desejam naquele momento, né? Aí a gente faz a palestra, orienta. (E 2)
Tempo em que a equipe trabalha junto
A rotatividade dos profissionais, em especial dos médicos, foi apontada como aspecto que influencia o trabalho da equipe e pode fragilizar o desenvolvimento do trabalho interprofissional.
O médico que vem pelo Mais Médicos, muda bastante. Desde que estou aqui, já está no terceiro. (E 3)
Alguns entrevistados relataram que a equipe trabalha junto há muito tempo, favorecendo maior vínculo, confiança e, consequentemente, melhores resultados e colaboração entre seus membros.
Como a gente é uma equipe que faz tempo que está aqui, isso cria um vínculo muito grande e esse trabalho interprofissional ajuda porque, se eu estou com dúvida em alguma coisa, o outro pode estar suprindo essa minha necessidade; com isso, a gente trabalha melhor. A gente consegue ter melhores resultados, com todo mundo ajudando. (E 12)
Segunda categoria – Aspectos relacionados à equipe
Nessa categoria, estão presentes as subcategorias: comunicação e articulação, estímulo e união para a realização da prática colaborativa interprofissional, apoio às equipes, o conhecimento do papel dos membros da equipe e a distância que estamos da prática centrada no usuário.
Comunicação e articulação
Os profissionais relatam utilizar diversas estratégias de comunicação entre os membros da equipe, seja por meio dos prontuários dos usuários, seja pelo uso de tecnologias digitais como softwares de troca de mensagens.
A gente instalou, há uns três anos, [...] um chat interno, que é específico da unidade; não é aberto a qualquer um que se logar no chat. A gente distribui, pelos computadores, o nome do local onde ele fica, e assim a gente se organiza e também se comunica através desse chat. (E 7)
A fim de atender às novas e complexas necessidades de saúde da população é imprescindível que os profissionais de saúde se articulem na prática do cuidado, como relata o participante.
[A reunião] é o momento em que a gente consegue discutir a opinião de cada um, de todos os profissionais, para saber até onde a gente pode chegar e qual é o melhor método, passando por nós todos, porque o paciente passa desde a recepção até a médica. Então é o momento para a gente conseguir nosso objetivo, que é uma melhor assistência ao paciente. (E 11)
Por outro lado, um dos entrevistados relata a dificuldade de articulação, principalmente em momentos de reunião de equipe.
As reuniões de equipe são bem difíceis de a gente conseguir aqui, porque parece que é um "bicho de sete cabeças". A gente até desanima, né? (E 3)
Outras dificuldades citadas foram a falta de recursos humanos e os profissionais que têm horários distintos de trabalho.
Estímulo e união para a realização da prática colaborativa interprofissional
O estímulo e a união foram observados como fatores fundamentais para a interdependência das ações e a obtenção de melhores resultados na Atenção à Saúde das pessoas. O trabalho em equipe, que tem como base a prática colaborativa interprofissional, conta com profissionais motivados e capacitados; seus membros se sentem reconhecidos e percebem suas contribuições como relevantes no processo de trabalho, gerando melhor clima dentro da equipe.
Se eu falar "vamos!", o pessoal está sempre concordando, participando, dando ideias. Eu tenho uma equipe muito participativa. (E 2)
Por outro lado, também existem situações em que os profissionais se sentem desestimulados, o que gera dificuldades para que a colaboração ocorra. Mesmo sem explicitar os motivos da falta de estímulo, o fato destacou-se, na análise como relevante para a compreensão do processo de trabalho da equipe.
Eu acho que a equipe é bem desestimulada; desde o começo eu busco formas de tentar estimulá-la, "botá-la pra frente". (E 3)
Apoio às equipes
A figura de um apoiador também contribui para o desenvolvimento da colaboração interprofissional. Os entrevistados se referiram a diferentes atores como apoiadores que contribuem para a facilitação de diálogos e as trocas de práticas e saberes.
Um desses atores é a universidade que, quando presente nas unidades da ESF, propicia a difusão do conhecimento científico e atende às necessidades formativas das equipes.
A gente tinha bastante ajuda do pessoal da faculdade; eles montavam os projetos e a gente participava junto. (E 13)
O apoio recebido do Nasf também foi citado. Sua cooperação com as equipes da ESF favorece a resolutividade e o matriciamento da equipe.
A equipe de fonoaudiologia e a psicóloga são do Nasf, [e atuam juntamente] com o educador físico. Eles participam também das reuniões, nas quais muitas vezes são passados os casos para eles estarem realizando VD, fazendo um plano de dieta ou algum acompanhamento psicológico da família. Eles acompanham [os casos] com a gente e vão dando o feedback nas reuniões. (E 2)
Outros setores da área da Saúde aparecem como apoiadores das equipes. A maioria dos entrevistados relatou a importância de se contar com o apoio em Saúde Mental por parte de profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (Caps), principalmente para discussão de casos de usuários ou situações que estão acontecendo na APS.
Vem a equipe do Caps para discutir com a gente algum caso específico que a equipe escolha. (E 7)
Também foi referido o trabalho com profissionais do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em atividades como visitas domiciliares com as equipes de ESF.
O vínculo meu com a assistência social é muito bom, com o Cras, que também tem a assistente social, que vem, faz visita. (E 17)
O apoio institucional da gestão, também mencionado, auxilia na condução do trabalho na APS, possibilita a qualificação das equipes e favorece a efetivação do trabalho colaborativo mais resolutivo e satisfatório em saúde.
Temos um apoio muito grande e muito bom da articuladora da DRS; e assim, em todas as questões que eu entro em contato com a DRS, eu tenho um apoio. Eu acho assim: a DRS é um apoio muito grande para a estratégia de Saúde da Família. (E 14)
Ainda como apoiadores das equipes de ESF, os líderes comunitários foram citados.
A gente tem os representantes da comunidade – não sei se é assim que chamam – que são líderes comunitários que sempre trazem as demandas para a gente. (E 13)
O conhecimento sobre o papel dos membros da equipe
O conhecimento dos profissionais da equipe sobre o papel de cada profissional representa um desafio para o alcance da colaboração interprofissional. O fragmento mostra que cada um tem seu valor e há interdependência das ações.
Eu falo isso sempre nas reuniões: aqui todos são importantes, desde o médico até o faxineiro, porque não se faz saúde sem limpeza, assim como a gente depende de médico. Assim também como os agentes são muito importantes porque, além das visitas domiciliares, eles nos ajudam na rotina da unidade. (E 9)
A distância que estamos da prática centrada no usuário
Essa subcategoria destaca o lugar do usuário, da família e da comunidade no processo de trabalho das equipes, tendo em vista a importância de sua posição central na produção do cuidado.
Observa-se que as necessidades e vulnerabilidades dos usuários motivaram ações das equipes em busca da melhor forma de cuidado.
Discutimos a vulnerabilidade de cada um, de que forma a gente vai poder ajudar multiprofissionalmente. (E 6)
O Projeto Terapêutico Singular (PTS) utilizado na APS é um exemplo de prática de cuidado centrada no usuário para a construção do plano de cuidados, em que se preconiza a participação dos profissionais da equipe, do usuário e da sua família.
Trazemos os casos das visitas durante a semana, das agentes comunitárias e também das nossas, para aqueles casos mais prioritários e sentamos para definir o projeto terapêutico singular. (E 6)
No entanto, o entrevistado não explicita como a equipe inclui o usuário e sua família nas decisões sobre os cuidados e, se ele, o usuário, foi empoderado para o manejo de sua situação de saúde.
Destaca-se, em um dos relatos, que a dificuldade enfrentada pela equipe para realizar o cuidado é o próprio paciente.
A dificuldade é o próprio paciente porque, às vezes, ele não aceita a visita, não aceita ser cuidado, não aceita que demos uma opinião para ele; às vezes, o paciente está vivendo de uma forma que não é boa para ele, mas não aceita isso. (E 4)
Diante dos fragmentos, questiona-se o entendimento da equipe sobre qual seria o lugar que o usuário ocupa na interação para a produção do cuidado.
Discussão
Os resultados apresentados permitem compreender que a construção de práticas colaborativas interprofissionais nas equipes da ESF perpassa os espaços coletivos existentes na organização do trabalho.
Os indicadores do PMAQ analisados apontam que valorizar a dimensão coletiva, por meio da inclusão de indicadores do processo referentes a práticas que se espera que a equipe execute em conjunto, de algum modo acabou estimulando as equipes a valorizarem os espaços coletivos de trabalho. Porém, atualmente, o PMAQ foi descontinuado, e não há outro programa ou instrumento com esse enfoque. Os dados qualitativos obtidos nas entrevistas complementam o esforço de se compreender o processo de construção das práticas colaborativas interprofissionais.
As reuniões de equipe – um desses indicadores – são realizadas na maioria dos municípios, sinal positivo na direção do trabalho interprofissional, e podem se constituir em ferramentas para estruturar e organizar o planejamento, transmitir informações, delinear diretrizes e tomar decisões99 Voltolini BC, Andrade SR, Piccoli T, Pedebôs LA, Andrade V. Estratégia Saúde da Família, meetings: an indispensable tool for local planning. Texto Contexto Enferm. 2019; 28:e20170477. doi: 10.1590/1980-265X-TCE-2017-0477.
https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-20... . No entanto, realizá-las com menor periodicidade pode não favorecer as interações entre os membros da equipe para a construção de vínculos de confiança e integração relevantes para a colaboração interprofissional66 Peduzzi M, Agrelli HLF, Silva JAM, Souza HS. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678. doi: 10.1590/1981-7746-sol00246.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002... ,1010 Bellini M, Pio DAM, Chirelli MQ. O apoiador institucional da Atenção Básica: a experiência em um município do interior paulista. Saude Debate. 2016; 40(108):23-33. doi: 10.1590/0103-1104-20161080002.
https://doi.org/10.1590/0103-1104-201610... . Da mesma forma, o planejamento das ações também é realizado na maioria dos municípios. No entanto, haver equipes que não planejam suas ações demonstra restrição de oportunidades para a construção de práticas colaborativas interprofissionais66 Peduzzi M, Agrelli HLF, Silva JAM, Souza HS. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678. doi: 10.1590/1981-7746-sol00246.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002... .
Para garantir essa integração, as reuniões de equipe se confirmam como dispositivos com grande potencial; nelas, os profissionais trocam informações, discutem o processo de trabalho, tomam decisões, ou seja, articulam-se em torno de ações multiprofissionais da dinâmica de trabalho99 Voltolini BC, Andrade SR, Piccoli T, Pedebôs LA, Andrade V. Estratégia Saúde da Família, meetings: an indispensable tool for local planning. Texto Contexto Enferm. 2019; 28:e20170477. doi: 10.1590/1980-265X-TCE-2017-0477.
https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-20... ,1010 Bellini M, Pio DAM, Chirelli MQ. O apoiador institucional da Atenção Básica: a experiência em um município do interior paulista. Saude Debate. 2016; 40(108):23-33. doi: 10.1590/0103-1104-20161080002.
https://doi.org/10.1590/0103-1104-201610... . Finalizando os indicadores, temos o apoio à equipe que, de acordo com a Política Nacional de Humanização1111 Brasil. Ministério da Saúde. O HumanizaSUS na Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2009., é um dispositivo de intervenção que propõe mudanças necessárias e um "modo de fazer". Ele articula trabalhadores e serviços com o objetivo de possibilitar a análise crítica sobre o processo de trabalho, a interação entre os sujeitos, o compartilhamento de saberes, a transformação das práticas em saúde1212 Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na atenção primária em saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2022; 27(4):1377-88. doi: 10.1590/1413-81232022274.00212021.
https://doi.org/10.1590/1413-81232022274... e, nesse processo, estimula o trabalho colaborativo interprofissional.
Diante dos resultados do presente estudo, explicita-se a relevância do apoio às equipes para que experienciem reuniões com a presença do usuário e seus familiares e se lancem a um novo modo de produzir o cuidado em saúde, com escuta do usuário, trocas de saberes, avaliação da pertinência das intervenções de cuidado pensadas pela equipe em diálogo com as expectativas e possibilidades do usuário e dos familiares99 Voltolini BC, Andrade SR, Piccoli T, Pedebôs LA, Andrade V. Estratégia Saúde da Família, meetings: an indispensable tool for local planning. Texto Contexto Enferm. 2019; 28:e20170477. doi: 10.1590/1980-265X-TCE-2017-0477.
https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-20... .
Nesse contexto, podemos observar entrevistados definindo trabalho interprofissional – que coincide com as definições encontradas na literatura nacional e internacional – como uma modalidade de trabalho coletivo, de agir comunicativo66 Peduzzi M, Agrelli HLF, Silva JAM, Souza HS. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678. doi: 10.1590/1981-7746-sol00246.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002... , em que ocorre o desenvolvimento de uma prática coesa entre profissionais de diferentes disciplinas. Ao mesmo tempo, depoimentos mostram que, embora existam atividades coletivas no cotidiano das equipes, as ações são desenvolvidas de forma fragmentada, resultado do modelo biomédico enraizado nas práticas1313 Esmeraldo GROV, Oliveira LC, Esmeraldo Filho CE, Queiroz DM. Tensão entre o modelo biomédico e a estratégia Saúde da Família: percepções dos trabalhadores de saúde. Rev APS. 2017; 20(1):98-106. doi: 10.34019/1809-8363.2017.v20.15786.
https://doi.org/10.34019/1809-8363.2017.... . Dessa forma, apesar de as ações serem desenvolvidas pelo reconhecimento das necessidades de saúde dos usuários interpretadas pelos profissionais, em seu agir ainda ecoa o modo de trabalho do modelo hegemônico.
Como facilitadores do desenvolvimento do trabalho interprofissional, são observadas as características nas dinâmicas das equipes que indicam potencial para promover a integração e, consequentemente, a implementação de práticas colaborativas. Elementos como o fortalecimento dos vínculos entre os profissionais, exemplificados pelo reconhecimento da união e da coesão da equipe, além da disposição para o trabalho, identificados como determinantes interacionais da colaboração1414 San Martin-Rodrigues L, Beaulieu M-D, D’Amour D, Ferrada Videla M. The determinants of successful collaboration: a review of theoretical and empirical studies. J Interprof Care. 2005; 19 Suppl 1:132-47. doi: 10.1080/13561820500082677.
https://doi.org/10.1080/1356182050008267... , emergem como aspectos relevantes. Esses determinantes estão intrinsecamente ligados às relações interpessoais no processo de trabalho, incluindo o respeito, a confiança e a disposição para colaborar1414 San Martin-Rodrigues L, Beaulieu M-D, D’Amour D, Ferrada Videla M. The determinants of successful collaboration: a review of theoretical and empirical studies. J Interprof Care. 2005; 19 Suppl 1:132-47. doi: 10.1080/13561820500082677.
https://doi.org/10.1080/1356182050008267... .
No contexto dos determinantes interacionais, a comunicação desempenha um papel crucial no trabalho interprofissional, sendo considerada um dos pilares da colaboração1515 D’Amour D, Oandasan I. Interprofessionality as the field of interprofessional practice and interprofessional education: an emerging concept. J Interprof Care. 2005; 19 Suppl 1:8-20. doi: 10.1080/13561820500082529.
https://doi.org/10.1080/1356182050008252... . A eficácia da comunicação manifesta-se quando os membros da equipe estão abertos ao diálogo, favorecendo a interlocução e a escuta ativa das diversas opiniões. Essa abordagem é essencial para a resolução de conflitos, o planejamento conjunto e o intercâmbio de conhecimentos entre os profissionais33 Escalda P, Parreira CMSF. Dimensões do trabalho interprofissional e práticas colaborativas desenvolvidas em uma unidade básica de saúde, por equipe de Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1717-27. doi: 10.1590/1807-57622017.0818.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08... . Contudo, as equipes reproduzem as relações da sociedade, ou seja, reproduzem a divisão de classes sociais e nem sempre se consegue estabelecer relações mais horizontais. Em geral, prevalece o instituído, o que é expresso pelo médico e pelos profissionais de nível superior e, na interação, a voz dos agentes comunitários de saúde é pouco ouvida1616 Guanaes-Lorenzi C, Pinheiro RL. A (des)valorização do agente comunitário de saúde na Estratégia Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2016; 21(8):2537-46. doi: 10.1590/1413-81232015218.19572015.
https://doi.org/10.1590/1413-81232015218... .
Assim, é crucial que os profissionais priorizem o diálogo e interajam em busca da coesão da equipe, visando a elaboração das intervenções mais adequadas ao processo saúde-doença-cuidado dos usuários77 Fontana KC, Lacerda JT, Machado PMO. O processo de trabalho na Atenção Básica à Saúde: avaliação da gestão. Saude Debate. 2016; 40(110):64-80. doi: 10.1590/0103-1104201611005.
https://doi.org/10.1590/0103-11042016110... . Uma prática destacada pelos entrevistados é a dedicação exclusiva à reunião no momento de sua realização, com horários reservados na agenda dos trabalhadores para esse fim, nem sempre possível, ainda que na Política Nacional de Atenção Básica22 Gomes CBS, Gutiérrez AC, Soranz D. Política Nacional de Atenção Básica de 2017: análise da composição das equipes e cobertura nacional da Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1327-38. doi: 10.1590/1413-81232020254.31512019.
https://doi.org/10.1590/1413-81232020254... conste a garantia de espaço para qualificação da equipe multiprofissional, reuniões e educação em saúde em uma perspectiva de cooperação horizontal. Além disso, existem dificuldades de algumas equipes para realizar a articulação dos profissionais em momentos de reunião, pois há distintos entendimentos sobre a importância das reuniões no processo de trabalho de uma ESF.
Além dos muros das Unidades de Saúde, há um potencial significativo para o desenvolvimento de práticas colaborativas. As visitas domiciliares e o Programa de Saúde na Escola foram referidos pelos entrevistados. As visitas domiciliares, em particular, proporcionam um espaço para o diálogo interprofissional, promovendo a troca de conhecimentos e experiências1717 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06... . Essa modalidade de colaboração em rede, seja com a comunidade, sejacom outros setores como a educação, evidencia a busca por alternativas que promovam cuidado integral e mais resolutivo, fomentando o trabalho intersetorial e a participação dos usuários1717 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06... .
Também o tempo em que a equipe trabalha junto se mostrou um fator que impacta o desenvolvimento do trabalho interprofissional. Na literatura, para uma compreensão mais abrangente do trabalho interprofissional, foram estabelecidos quatro domínios: 1- relacional, 2- processual, 3- organizacional e 4- contextual1818 Reeves S. The rise and rise of interprofessional competence. J Interprof Care. 2012; 26(4):253-5. doi: 10.3109/13561820.2012.695542.
https://doi.org/10.3109/13561820.2012.69... . O tempo de trabalho compartilhado pela mesma equipe é categorizado como domínio processual, e contempla como o espaço e o tempo influenciam a realização do trabalho.
Na segunda categoria desse estudo, temos os aspectos relacionados com a equipe, que impactam o desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais. Nas entrevistas, observamos que as equipes utilizam tecnologias em seu processo de trabalho para estabelecer canais de comunicação. Os prontuários digitais ou físicos permitem que os profissionais acessem informações sobre o cuidado que está sendo prestado ao usuário. Outros canais de comunicação citados foram um chat interno nos computadores da Unidade de Saúde e também o uso de aplicativos de mensagens instantâneas via celular. O uso dessas tecnologias pode auxiliar a rotina de trabalho e servir como instrumento indireto de troca de informações entre os profissionais1717 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06... . Dessa forma, tem-se mais agilidade na disseminação da informação, porém isso também pode afetar a comunicação face a face entre os membros da equipe, prejudicando a comunicação direta que oportuniza a troca de saberes e distancia os profissionais entre si1717 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06... .
Outro aspecto relacionado à equipe, relevante para o desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais, referido pelos entrevistados, foi o apoio à equipe. Ele possibilita a articulação do serviço com diferentes atores, gerando uma análise crítica sobre o processo de trabalho1919 Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Integração ensino-serviço e sua interface no contexto da reorientação da formação na saúde. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25. doi: 10.1590/1807-57622015.0768.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.07... . Além da interação entre os sujeitos, tem como funções a socialização dos saberes, a qualificação das ações, a transformação das práticas visando à viabilização dos objetivos compactuados e à melhora na qualidade e na resolutividade dos serviços prestados1919 Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Integração ensino-serviço e sua interface no contexto da reorientação da formação na saúde. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25. doi: 10.1590/1807-57622015.0768.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.07... . Definição essa que vai ao encontro das falas dos entrevistados que citaram o papel exercido pelas universidades no apoio às equipes da APS.
O serviço de assistência social também foi citado como importante apoiador das equipes que, de forma articulada, busca a socialização dos saberes de maneira colaborativa e intersetorial. As entrevistas apontam que o apoio e o matriciamento geralmente acontecem por meio da discussão de equipe ou em situações nas quais os profissionais da Saúde Mental fornecem feedback e discutem os casos encaminhados pela equipe de referência. Prática semelhante foi relatada em estudo realizado em João Pessoa-PE2020 Silva LJCA, Araújo ACV, Vasconcelos NL, Paiva CBN, Pires CA. A contribuição do apoiador matricial na superação do modelo psiquiátrico tradicional. Psicol Estud. 2019; 24:e44107. doi: 10.4025/psicolestud.v24i0.44107.
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i... em relação ao matriciamento feito pelo serviço especializado na APS, que promoveu uma forma de trabalho menos fragmentada, proporcionando melhores encontros e experiências2020 Silva LJCA, Araújo ACV, Vasconcelos NL, Paiva CBN, Pires CA. A contribuição do apoiador matricial na superação do modelo psiquiátrico tradicional. Psicol Estud. 2019; 24:e44107. doi: 10.4025/psicolestud.v24i0.44107.
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i... .
Outra modalidade a ser considerada: o apoio matricial realizado pelo Nasf. Criado em 2008 com o objetivo de qualificar e tornar mais resolutiva a atuação da Atenção Básica, é constituído por uma equipe multiprofissional1111 Brasil. Ministério da Saúde. O HumanizaSUS na Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.. Apenas três municípios relataram possuir equipes Nasf, o que pode estar relacionado à política de APS vigente que deixou de financiar essa modalidade1212 Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na atenção primária em saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2022; 27(4):1377-88. doi: 10.1590/1413-81232022274.00212021.
https://doi.org/10.1590/1413-81232022274... e, sem uma política indutora, essa importante estratégia de apoio às equipes fica esvaziada ou mesmo deixa de existir. Além disso, o modelo de financiamento – o Previne Brasil – leva as equipes a dirigir sua atenção ao número de usuários cadastrados e à produção de um grupo de indicadores considerados para o financiamento, o que limita as ações da APS1313 Esmeraldo GROV, Oliveira LC, Esmeraldo Filho CE, Queiroz DM. Tensão entre o modelo biomédico e a estratégia Saúde da Família: percepções dos trabalhadores de saúde. Rev APS. 2017; 20(1):98-106. doi: 10.34019/1809-8363.2017.v20.15786.
https://doi.org/10.34019/1809-8363.2017.... e restringe estratégias de organização do processo de trabalho em equipe que favorecem a construção da colaboração interprofissional.
Tão importante quanto a figura do apoiador externo, a valorização dos profissionais da própria equipe também é de grande importância para o desenvolvimento e a implementação de práticas colaborativas interprofissionais. Esse reconhecimento ocorre quando os profissionais conseguem entender o papel de cada profissional dentro da equipe e, dessa forma, podem se comunicar respeitosamente e integrar diferentes saberes e habilidades nos serviços prestados2121 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A national interprofessional competency framework. Vancouver: Her Majesty the Queen in Right of Canada; 2010.. Nos relatos dos entrevistados foi possível identificar que o reconhecimento das profissões possibilitou também a percepção de um certo grau de autonomia e a interdependência entre elas.
No entanto, o distanciamento da prática centrada no usuário chama a atenção e instiga à reflexão. Ter o usuário como parceiro do cuidado é uma das competências para o desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais44 Silva JAM, Peduzzi M, Orchard C, Leonello VM. Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP. 2015; 49(2 Spec No):16-24. doi: 10.1590/S0080-623402150000800003.
https://doi.org/10.1590/S0080-6234021500... ,1515 D’Amour D, Oandasan I. Interprofessionality as the field of interprofessional practice and interprofessional education: an emerging concept. J Interprof Care. 2005; 19 Suppl 1:8-20. doi: 10.1080/13561820500082529.
https://doi.org/10.1080/1356182050008252... ,2121 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A national interprofessional competency framework. Vancouver: Her Majesty the Queen in Right of Canada; 2010.,2222 Peduzzi M, Agreli HF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1525-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0827.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08... , de modo que os profissionais integrem seu próprio conhecimento com o do usuário, da família e da comunidade, buscando construir ações de cuidado, compartilhando as decisões com autonomia e empoderamento da população2222 Peduzzi M, Agreli HF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1525-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0827.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08... . Os entrevistados expressaram situações que, em tese, se aproximam dessa prática, com foco nas necessidades de saúde e vulnerabilidades referidas na elaboração do PTS, por exemplo. No entanto, os relatos não explicitam como se dá a interação com os usuários, e a percepção de distanciamento se intensifica diante do relato que responsabiliza o usuário pela dificuldade da equipe em realizar o cuidado. Fica evidenciada uma importante lacuna para a efetivação das práticas colaborativas interprofissionais, a presença efetiva e ativa do usuário nas decisões e produção de seu cuidado junto com a equipe.
Considerações finais
Acredita-se que os resultados desse estudo possam contribuir para o fortalecimento do trabalho interprofissional e das práticas colaborativas, possibilitando uma Atenção à Saúde de qualidade à população, pois foi possível compreender que a construção das práticas colaborativas interprofissionais perpassa os espaços coletivos das unidades de Saúde da Família em momentos de encontro e integração dos profissionais. Neles, as práticas colaborativas e o trabalho interprofissional são caracterizados por ações desenvolvidas por diferentes profissionais com níveis de integração diferentes.
O estudo apresenta limitações em relação à quantidade de equipes entrevistadas, apesar de terem participado as com melhor pontuação na avaliação PMAQ não representam a totalidade de equipes da região estudada. Além disso, alguns profissionais imergidos em um fazer técnico e individual, seja pela formação, seja pela atuação prática, apresentam dificuldades para dialogar sobre a temática.
Como fragilidade nesse processo, apesar de existirem diversos momentos com grande potencial para o desenvolvimento das práticas colaborativas interprofissionais, suas práticas se destacam ainda pela fragmentação do cuidado em saúde e a não inclusão do usuário na tomada de decisões sobre o seu próprio cuidado. Nesse sentido, podemos destacar a importância do Nasf, dos apoios matriciais e institucionais e da gestão, em todos os níveis, a fim de incentivar e dar suporte às equipes, no sentido de vencer o modo de trabalhar hegemônico e, assim, se abrir para experimentar mais efetivamente as práticas colaborativas interprofissionais centradas no usuário, na família e na comunidade.
As reuniões de equipe surgem como estratégias para superação dessas fragilidades, como um espaço que possibilita reunir todos os profissionais e proporcionar sua integração, de forma democrática, assim como a Educação Permanente, que também tem grande importância para a formação dos profissionais nessa lógica dos cuidados colaborativos centrados nos usuários, e auxilia o rompimento com práticas pautadas na fragmentação do modelo biomédico.
Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.- Fumagalli IHT, Fumagalli RCS, Sudré GA, Lago LPM, Matumoto S. Práticas colaborativas interprofissionais em espaços coletivos de unidades de Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2025; 29: e240076 https://doi.org/10.1590/interface.240076
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 - Data do Fascículo
2025
Histórico
- Recebido
08 Mar 2024 - Aceito
16 Set 2024