Autoavaliação de saúde e desigualdades sociodemográficas entre adultos venezuelanos: um estudo com base na Pesquisa Nacional de Condições de Vida (ENCOVI 2021)

Dalia Elena Romero Anitza Freitez Leo Ramos Maia Nathalia Andrade de Souza Sobre os autores

Resumo:

A autoavaliação de saúde é um indicador de simples captação em inquéritos de saúde, amplamente utilizado em pesquisas para medir aspectos físicos, sociais, mentais e de saúde da população, além de predizer a mortalidade precoce. No caso venezuelano, apenas recentemente começou a se coletar essa informação por meio da Pesquisa Nacional de Condições de Vida (ENCOVI). Nesse contexto, o estudo tem por objetivo analisar os fatores demográficos e socioeconômicos associados à autoavaliação não positiva da saúde entre adultos venezuelanos. Utiliza-se como fonte de dados a ENCOVI 2021 (n = 16.803), cuja amostra é probabilística e estratificada, apresentando perguntas sobre saúde, educação, migração e outros aspectos sociais e econômicos. Foram realizadas análises brutas e ajustadas de razão de prevalência, estimadas por meio de modelos de regressão de Poisson com variância robusta. A prevalência de autoavaliação da saúde regular/ruim entre venezuelanos foi de 17,8%. Os resultados indicaram uma forte associação entre a prevalência do desfecho e a faixa etária, sendo 3,81 vezes maior (IC95%: 3,29-4,41) entre os indivíduos com 60 anos ou mais, em comparação àqueles com idade de 18 a 29 anos. Além disso, os participantes em situação de insegurança alimentar severa apresentaram uma prevalência 2 vezes maior (IC95%: 1,61-2,47) do que aqueles que não enfrentaram nenhum nível de insegurança alimentar. Fatores como pobreza, escolaridade, emigração recente de familiares e sexo também demonstraram influência significativa, mesmo quando analisados independentemente. Os resultados destacam a necessidade de atenção especial à saúde daqueles que enfrentam fome e dos idosos.

Palavras-chave:
Autoavaliação; Condição de Saúde; Inquéritos de Saúde

Introdução

A autoavaliação de saúde é um indicador de simples captação em inquéritos que expressa uma avaliação subjetiva do estado de saúde, mas que também serve de proxy das características objetivas da saúde dos indivíduos 11. Garbarski D. Research in and prospects for the measurement of health using self-rated health. Public Opin Q 2016; 80:977-97.. Engloba tanto dimensões físicas quanto sociais, mentais e de saúde. Além disso, o indicador é utilizado como preditor da mortalidade prematura, o que despertou um considerável interesse na comunidade científica desde o final do século XX 22. Kaplan GA, Camacho T. Perceived health and mortality: a nine-year follow-up of the human population laboratory cohort. Am J Epidemiol 1983; 117:292-304.,33. Idler EL. Age differences in self-assessments of health: age changes, cohort differences, or survivorship? J Gerontol 1993; 48:S289-300..

As circunstâncias sociais e econômicas têm impacto na nossa saúde física e mental, motivo pelo qual a relação da autoavaliação de saúde com fatores demográficos e socioeconômicos tem sido documentada 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.,55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65.. Embora essa relação varie em força entre os países 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61., no geral, é bem estabelecida na literatura a associação de uma pior autoavaliação da saúde entre pessoas do gênero feminino 55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65., de idades avançadas 55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65., mais pobres 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.,66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65., com baixa escolaridade 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.,55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65. e em situação de insegurança alimentar 66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7..

Por outra parte, a influência da emigração familiar na autoavaliação de saúde em situações de crises migratórias tem sido subestimada. A maioria dos estudos sobre autoavaliação de saúde e migração foca na avaliação da condição dos emigrantes, negligenciando o impacto da migração nos membros da família que permanecem no país de origem 88. Guzmán MGR, Blanco TN. La diáspora venezolana: análisis de la salud de la familia que quedó y de las metas cumplidas por los emigrantes. Med Interna (Caracas) 2020; 36:124-37.. Estudos realizados nesses contextos de crise devem considerar que a migração fragmenta o núcleo familiar e gera uma maior responsabilidade dos cuidados familiares para um grupo menor de pessoas, o que pode afetar a saúde dos que permanecem.

No caso venezuelano, a coleta de informação sobre a autoavaliação de saúde começou apenas recentemente, com o inquérito nacional chamado Encuesta Nacional de Condiciones de Vida (ENCOVI; Pesquisa Nacional de Condições de Vida) 99. Universidad Católica Andrés Bello. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida: documento técnico. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2021., realizado durante a pandemia. Um estudo internacional sobre autoavaliação de saúde e que incluiu a Venezuela foi conduzido entre 2003 e 2007, mas se concentrou apenas na população idosa (n = 2.026) 1010. Falk H, Skoog I, Johansson L, Guerchet M, Mayston R, Hörder H, et al. Self-rated health and its association with mortality in older adults in China, India and Latin America: a 10/66 Dementia Research Group study. Age Ageing 2017; 46:932-9.. A partir dele, os autores demonstraram que as pessoas idosas na Venezuela apresentavam uma autoavaliação de saúde favorável em comparação com oito outros países analisados 77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65..

Na Venezuela, a pobreza extrema tem se acentuado, passando de 9,3% a 76,6% entre 2013 e 2021 1111. Universidad Católica Andrés Bello. Condiciones de vida del venezolano, entre emergencia humanitaria y pandemia. https://www.proyectoencovi.com/ (accessed on 31/Jul/2023).
https://www.proyectoencovi.com/...
. A migração também tem sido intensa, entre 2,3 milhões e 4 milhões de emigrados venezuelanos desde 2015 1212. Méndez CGT. Venezuela: contexto, análisis y escenarios. Revista Mexicana de Sociología 2019; 81:443-55.. Nesse contexto de crise humanitária aguda, que também tem influenciado na deterioração do sistema de saúde 1313. Roa AC. Sistema de salud en Venezuela: ¿un paciente sin remedio? Cad Saúde Pública 2018; 34:e00058517., evidências sobre surtos de doenças infecciosas evitáveis 1414. Page KR, Doocy S, Reyna Ganteaume F, Castro JS, Spiegel P, Beyrer C. Venezuela's public health crisis: a regional emergency. Lancet 2019; 393:1254-60., falta de vacinas e medicamentos 1313. Roa AC. Sistema de salud en Venezuela: ¿un paciente sin remedio? Cad Saúde Pública 2018; 34:e00058517. e internações e mortes por desnutrição 1515. Doocy S, Ververs MT, Spiegel P, Beyrer C. The food security and nutrition crisis in Venezuela. Soc Sci Med 2019; 226:63-8. têm sido documentados. Tais achados indicam que as condições de saúde da população venezuelana têm piorado.

Há anos a Venezuela restringe a produção e divulgação da informação, inclusive epidemiológica 1212. Méndez CGT. Venezuela: contexto, análisis y escenarios. Revista Mexicana de Sociología 2019; 81:443-55.. Para enfrentar o cerco das fontes de informação oficial, desde 2014 instituições de pesquisa venezuelanas passaram a realizar a ENCOVI 99. Universidad Católica Andrés Bello. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida: documento técnico. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2021.. O estudo, de delineamento transversal, multitemático, cobertura nacional e periodicidade anual, tornou-se uma das fontes de informação mais utilizadas em artigos voltados às condições de vida e saúde da população venezuelana 1616. Freitez A. Crisis humanitaria y migración forzada desde Venezuela. In: Gandini L, Lozano Ascencio F, Prieto Rosas V, editors. Crisis y migración de población venezolana: entre la desprotección y la seguridad jurídica en Latinoamérica. Mexico City: Universidad Nacional Autónoma de México; 2019. p. 33-58..

Conhecer a percepção subjetiva da saúde da população é fundamental em um país com sérios problemas econômicos, migratórios e de indisponibilidade de informação sobre saúde pública. Informação disponível, de qualidade, com regularidade e que dê respostas aos principais problemas da população é condição necessária para a obtenção de evidências científicas, para implantar ações efetivas na área da saúde e para monitorar as políticas públicas 1717. Jannuzzi PM. A importância da informação estatística para as políticas sociais no Brasil: breve reflexão sobre a experiência do passado para considerar no presente. Rev Bras Estud Popul 2018; 35:e0055.. Nesse sentido, este artigo tem por objetivo analisar os fatores demográficos e socioeconômicos associados à autoavaliação da saúde não positiva entre adultos venezuelanos.

Métodos

Fontes de dados e amostra

A Venezuela é um país localizado na região norte da América do Sul. As projeções do Escritório de População da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que, em 2021, a Venezuela contabilizava 28.436.000 habitantes. O país enfrentou desafios econômicos e políticos significativos nos últimos anos, o que impactou sua situação socioeconômica e demográfica 1616. Freitez A. Crisis humanitaria y migración forzada desde Venezuela. In: Gandini L, Lozano Ascencio F, Prieto Rosas V, editors. Crisis y migración de población venezolana: entre la desprotección y la seguridad jurídica en Latinoamérica. Mexico City: Universidad Nacional Autónoma de México; 2019. p. 33-58..

Este estudo tem desenho transversal de base populacional, realizado com dados da pesquisa ENCOVI, conduzido na Venezuela entre os meses de fevereiro e abril de 2021, e coordenado pelo Instituto de Investigações Econômicas e Sociais (IIES) da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB). A ENCOVI 2021 contempla perguntas relativas à educação, saúde, nutrição e acesso à alimentos, pobreza, desemprego e migração da população residente na Venezuela.

A amostragem do inquérito foi probabilística por conglomerado e em três estágios, estimada com base na renda familiar per capita, obtida por meio da ENCOVI 2019-2020, a nível estadual. Seu questionário contava com 21 seções e 36 subseções e, no total, tinha 788 perguntas. As perguntas foram feitas por lares e para todos os membros do domicílio. Mais informações sobre a ENCOVI 2021 podem ser acessadas por meio do documento técnico da pesquisa 99. Universidad Católica Andrés Bello. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida: documento técnico. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2021..

A amostra final, composta por 42.444 pessoas, foi calibrada com pesos que consideraram os dados do censo de 2011 e as projeções populacionais de 2021, realizadas pela revisão do World Population Prospects (Perspectivas da População Mundial), da ONU.

Este estudo considerou os registros de indivíduos adultos com idade ≥ 18 anos e que responderam à pergunta: “Nos últimos 12 meses, como você acha que está o estado de saúde do entrevistado?” (n = 16.803).

Variáveis

O desfecho de interesse neste estudo foi a autoavaliação não positiva da saúde. Para sua obtenção, foi utilizada a pergunta “Nos últimos 12 meses, como você acha que está o estado de saúde do entrevistado?”, que tinha como categorias de resposta: “muito bom”, “bom”, “regular” ou “ruim”. As duas últimas categorias foram agrupadas para a definição do desfecho. Essa categorização é comumente utilizada em estudos semelhantes, o que possibilita a comparação entre eles 66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.,1818. Camelo LV, Coelho CG, Chor D, Griep RH, Almeida MCC, Giatti L, et al. Racismo e iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim: o papel da mobilidade social intergeracional no Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil). Cad Saúde Pública 2022; 38:e00341920.,1919. Sousa JL, Alencar GP, Antunes JLF, Silva ZP. Marcadores de desigualdade na autoavaliação da saúde de adultos no Brasil, segundo o sexo. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00230318.,2020. DeSalvo KB, Bloser N, Reynolds K, He J, Muntner P. Mortality prediction with a single general self-rated health question. J Gen Intern Med 2006; 21:267-75.,2121. Vincens N, Emmelin M, Stafström M. Social capital, income inequality and the social gradient in self-rated health in Latin America: a fixed effects analysis. Soc Sci Med 2018; 196:115-22..

As características demográficas associadas ao desfecho foram o sexo (homem ou mulher) e as faixas etárias relativas aos adultos jovens (18 a 29 anos), adultos (30 a 59 anos) e idosos (60 anos e mais).

Os fatores socioeconômicos considerados neste estudo foram:

Escolaridade, cuja pergunta “Qual foi o último nível educacional em que o entrevistado obteve aprovação de série, ano, semestre ou trimestre? foi categorizada em: ensino primário completo ou menos; ensino médio incompleto; ensino médio completo; e ensino superior incompleto ou completo;

Nível de pobreza monetária estimada pela ENCOVI 2021 a partir da renda per capita domiciliar relacionada ao valor normativo da cesta básica normativa (Canasta Alimentaria Normativa - CAN), cujo valor cobre as necessidades calóricas mínimas 2222. Correa G. Medición de la pobreza y estratificación social a través de las ENCOVI. In: Venezuela: vivir a medias. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida 2015 (ENCOVI). Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2016. p. 15-32.. Nos casos em que a renda per capita é maior ou igual a duas vezes o valor da CAN per capita, o entrevistado é considerado “não pobre”. Se a renda per capita for maior ou igual ao valor do CAN, mas menor que o dobro do seu valor, considera-se “pobre não extremo”. Se a renda per capita do entrevistado é menor que o valor da CAN, considera-se “extremamente pobre”;

Escala de Insegurança Alimentar estimada na ENCOVI 2021 com base na Escala Latino-americana e Caribenha de Segurança Alimentar (Escala Latinoamericana y Caribeña de Seguridad Alimentaria - ELCSA) 2323. Comité Científico de la ELCSA. Escala Latinoamericana y Caribeña de Seguridad Alimentaria (ELCSA): manual de uso y aplicaciones. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2012.. A ELCSA é constituída a partir de 15 questões que se referem a situações que os entrevistados enfrentaram durante os três meses anteriores à data da entrevista, relacionadas com a quantidade e a qualidade dos alimentos disponíveis e com as estratégias que utilizam em busca de aliviar as carências alimentares. As categorias contemplam: insegurança alimentar severa; insegurança alimentar moderada; insegurança alimentar leve e sem insegurança alimentar. Aqueles com insegurança alimentar severa foram considerados em situação de fome;

Migração parental definida como a emigração recente de um familiar corresidente, identificada a partir da pergunta “Durante os últimos 5 anos, desde janeiro de 2016, alguma pessoa que vive ou viveu com você em sua residência foi morar em outro país?”, a qual tinha como possibilidades de respostas sim ou não.

Análise

Inicialmente, realizou-se a caracterização da população estudada segundo as variáveis consideradas no estudo por meio da distribuição percentual e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). Em seguida, estimaram-se as prevalências de autoavaliação de saúde regular/ruim segundo características demográficas e socioeconômicas e a associação entre as variáveis foi verificada pelo teste qui-quadrado de Pearson com correção de Rao-Scott, considerando-se um nível de significância de 5%.

Na análise dos fatores independentemente associados à autoavaliação não positiva da saúde, foram consideradas as variáveis que apresentaram associação significativa com o desfecho na análise bivariada, sendo elas: sexo, faixa etária, escolaridade, nível de pobreza monetária, insegurança alimentar e migração parental. Foram estimadas as razões de prevalências (RP) e IC95% por meio de modelos de regressão de Poisson com variância robusta. As análises foram realizadas no pacote estatístico SPSS 21 (https://www.ibm.com/), considerando o peso amostral obtido para calibração da amostra.

Aspectos éticos

Por ser uma pesquisa que utiliza exclusivamente dados secundários de domínio público está dispensada de submissão e aprovação por Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos, de acordo com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

A população do estudo foi predominantemente feminina (64,8%; IC95%: 64,0-65,5) e de pessoas com 30 a 59 anos de idade (60,3%; IC95%: 59,5-61,1) (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição percentual da população adulta venezuelana segundo características demográficas e socioeconômicas. Venezuela, 2021.

A precária condição socioeconômica de grande parte da população venezuelana é evidenciada pelos resultados da Tabela 1. Mais de 90% estavam em algum nível de pobreza monetária ou de insegurança alimentar. Destacam-se os casos extremos: quase 7 em cada 10 venezuelanos se encontravam em extrema pobreza (68,9%; IC95%: 68,2-69,6), enquanto 25,7% (IC95%: 25,0-26,4) enfrentavam a insegurança alimentar severa, ou seja, estavam passando fome.

Cerca de 80% dos adultos venezuelanos avaliaram sua saúde positivamente, com 38,7% (IC95%: 38,0-39,4) classificando-a como muito boa e 43,5% (IC95%: 42,9-44,2) como boa (Tabela 1).

A prevalência da autoavaliação de saúde regular/ruim de acordo com as características demográficas e socioeconômicas analisadas são apresentadas na Tabela 2. Do total de venezuelanos adultos, 17,8% (IC95%: 17,2-18,4) relataram autoavaliação de saúde regular/ruim. Os grupos que mais frequentemente avaliaram sua saúde negativamente foram: pessoas idosas (32,9%; IC95%: 31,3-34,5); pessoas que, no máximo, completaram o ensino primário (24,6%; IC95%: 23,2-25,9); pessoas com insegurança alimentar severa (23,8%; IC95%: 22,5-25,1); e pessoas com familiares emigrados recentemente (22,7%; IC95%: 20,5-24,9). Por outro lado, jovens adultos e pessoas sem insegurança alimentar apresentaram prevalência de autoavaliação de saúde regular/ruim abaixo de 10% (Tabela 2).

Tabela 2
Prevalência de venezuelanos adultos com autoavaliação da saúde regular/ruim, segundo características demográficas e socioeconômicas. Venezuela, 2021.

Na análise dos fatores independentemente associados à autoavaliação não positiva da saúde (Tabela 3), observou-se que ser mulher, ter mais idade, menor escolaridade, maior nível de pobreza e insegurança alimentar e ter um familiar que emigrou em período recente foram fatores associados a esse desfecho. Na análise ajustada, dois fatores se destacaram como os mais associados à autoavaliação de saúde regular/ruim: idade e insegurança alimentar; entre os idosos, a percepção negativa da saúde foi cerca de quatro vezes maior em relação aos mais jovens (RP = 3,81; IC95%: 3,29-4,41) e, naqueles indivíduos em situação de insegurança alimentar severa, essa percepção foi duas vezes maior em comparação aos que não enfrentavam nenhum nível de insegurança alimentar (RP = 2,00; IC95%: 1,61-2,47).

Tabela 3
Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas da autoavaliação da saúde regular/ruim, segundo características demográficas e socioeconômicas em pessoas adultas. Venezuela, 2021.

Discussão

Este estudo verificou que, na população adulta venezuelana, a pior autoavaliação de saúde está associada a fatores sociais e econômicos comumente descritos na literatura 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.,55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65., tais como ser idoso, mulher, estar em situação de pobreza, ter baixo nível de escolaridade e estar em situação de insegurança alimentar, sendo o primeiro e o último fatores aqueles com maior força de associação. Destaca-se, ainda, a associação da autoavaliação não positiva da saúde com a emigração de um familiar nos últimos cinco anos, mesmo quando considerados os fatores de forma independente.

A Venezuela apresenta um baixo percentual de adultos que avaliam a própria saúde de forma não positiva (17,8%), se comparado a estimativas de países vizinhos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai) 2121. Vincens N, Emmelin M, Stafström M. Social capital, income inequality and the social gradient in self-rated health in Latin America: a fixed effects analysis. Soc Sci Med 2018; 196:115-22.. Segundo dados de inquéritos coletados entre 2010 e 2014, esse indicador varia, nesses países, entre 20 e 30%, à exceção do Peru, que apresentou prevalência de 46%. A situação relativamente positiva da autoavaliação de saúde na Venezuela foi documentada em pesquisas anteriores. Estudo de coorte de base populacional realizado entre 2003 e 2007 1010. Falk H, Skoog I, Johansson L, Guerchet M, Mayston R, Hörder H, et al. Self-rated health and its association with mortality in older adults in China, India and Latin America: a 10/66 Dementia Research Group study. Age Ageing 2017; 46:932-9., que incluiu 16.940 pessoas com idade de 65 anos ou mais na China, Índia, Cuba, República Dominicana, Peru, México, Porto Rico e Venezuela, mostrou que este último tinha alta prevalência de autoavaliação de saúde positiva, atrás apenas da China rural e da Índia urbana. Nos países europeus, observaram-se variações nas prevalências não positivas para a saúde autoavaliada semelhantes à dos países latino-americanos, conforme verificado em estudo que a estimou para 11 países da União Europeia e para a Turquia 77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65., variando de 49,2% em Portugal a 19,7% na Suécia. Ressalta-se que a comparação direta deve ser cuidadosa, considerando que esses países apresentam maior proporção de pessoas idosas do que a Venezuela.

Tendo em vista que a situação socioeconômica é um reconhecido determinante para a autoavaliação de saúde 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61., esperava-se que um país em profunda crise econômica, com altos níveis de pobreza e insegurança alimentar, tivesse uma população que avaliasse negativamente seu estado de saúde. Nesse sentido, os resultados supracitados levantam dúvidas sobre o atual paradigma teórico da autoavaliação de saúde e indicam que outros fatores, como a cultura, talvez tenham influência subestimada na literatura.

No que se refere ao período de realização da ENCOVI 2021 - durante a pandemia de COVID-19 -, estudos têm mostrado um impacto da crise sanitária na autoavaliação de saúde dos indivíduos. No Brasil, estudo apontou que o sedentarismo e as medidas de distanciamento social adotadas durante a pandemia foram fatores que contribuíram para uma piora na autoavaliação de saúde 2424. Szwarcwald CL, Damacena GN, Barros MBA, Malta DC, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, et al. Factors affecting Brazilians' self-rated health during the COVID-19 pandemic. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00182720.. Já na Venezuela, uma pesquisa realizada com 150 participantes no Estado de Mérida constatou que aproximadamente 35% deles apresentaram sintomas de estresse, ansiedade ou depressão durante a pandemia 2525. Martínez F, Azkoul M, Rangel C, Sandia I, Pinto S. Efectos de la pandemia por COVID-19 en la salud mental de trabajadores sanitarios del estado Mérida, Venezuela. Gicos 2020; 5:77-88.. Destaca-se que a pesquisa ENCOVI 2021 não usou perguntas específicas para avaliar o impacto da pandemia, impossibilitando uma avaliação relacionada à autoavaliação de saúde no período.

A pior autoavaliação de saúde de mulheres, em comparação aos homens, é verificada em estudos de diversos países 55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65.,2626. Murendo C, Murenje G. Decomposing gender inequalities in self-assessed health status in Liberia. Glob Health Action 2018; 11 Suppl 3:1603515.,2727. Lee SY, Kim SJ, Yoo KB, Lee SG, Park EC. Gender gap in self-rated health in South Korea compared with the United States. Int J Clin Health Psychol 2016; 16:11-20.,2828. Bora JK, Saikia N. Gender differentials in self-rated health and self-reported disability among adults in India. PLoS One 2015; 10:e0141953., evidências que vão ao encontro dos achados deste estudo. Conforme demonstrado na análise ajustada, venezuelanas apresentam prevalência de autoavaliação de saúde regular/ruim 35% maior do que venezuelanos. Diferenciais maiores foram encontrados em estudos voltados à Coreia do Sul 2727. Lee SY, Kim SJ, Yoo KB, Lee SG, Park EC. Gender gap in self-rated health in South Korea compared with the United States. Int J Clin Health Psychol 2016; 16:11-20. (66%), à Turquia 77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65. (55%) e à Índia 2828. Bora JK, Saikia N. Gender differentials in self-rated health and self-reported disability among adults in India. PLoS One 2015; 10:e0141953. (70%), embora os dois últimos tenham categorizado a autoavaliação de saúde de forma diferente, excluindo a categoria regular do desfecho. Estudo brasileiro que categorizou a autoavaliação de saúde de forma semelhante a esses demonstrou que a desvantagem feminina no país é menor, porém significativa (23% maior para mulheres) 55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44..

A explicação para a desigualdade de gênero na autoavaliação de saúde varia na literatura. Alguns sugerem que a associação, criada socialmente, do ser homem/ser forte e ser mulher/ser frágil, os sujeitam a se apresentarem como mais saudáveis do que as mulheres 2929. Moura EC, Gomes R, Pereira GMC. Percepções sobre a saúde dos homens numa perspectiva relacional de gênero, Brasil, 2014. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:291-300.. Outros destacam o papel e a posição da mulher na sociedade, que a condiciona a uma dupla jornada de trabalho e a desvantagens no mercado de trabalho remunerado 3030. Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saúde Pública 2013; 29:723-34.. A maior prevalência de doenças crônicas incapacitantes e com baixa letalidade entre mulheres, como a artrite e a depressão, também é apontada como possível explicação 2929. Moura EC, Gomes R, Pereira GMC. Percepções sobre a saúde dos homens numa perspectiva relacional de gênero, Brasil, 2014. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:291-300.,3131. Mendoza-Sassi RA, Béria JU. Gender differences in self-reported morbidity: evidence from a population-based study in southern Brazil. Cad Saúde Pública 2007; 23:341-6..

Os resultados deste estudo corroboram com achados de pesquisas anteriores ao evidenciar a influência da idade na autopercepção de saúde. Estudos apontam que o envelhecimento está associado a uma maior probabilidade de autoavaliação de saúde negativa 55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65.,3030. Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saúde Pública 2013; 29:723-34.. Dados da Pesquisa Mundial da Saúde, no Brasil, destacaram que o aumento da idade diminui a chance de autoavaliação de saúde positiva em homens e mulheres, mesmo após o ajuste por variáveis socioeconômicas 3030. Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saúde Pública 2013; 29:723-34.. Essa tendência pode ser explicada por diversos fatores. Pessoas mais jovens geralmente têm menos problemas de saúde crônicos 3232. Veras R, Parahyba MI. O anacronismo dos modelos assistenciais para os idosos na área da saúde: desafios para o setor privado. Cad Saúde Pública 2007; 23:2479-89., o que pode contribuir para uma melhor autoavaliação de saúde. Não obstante, Paskulin & Vianna 3333. Paskulin LMG, Vianna LAC. Perfil sociodemográfico e condições de saúde auto-referidas de idosos de Porto Alegre. Rev Saúde Pública 2007; 41:757-68. pontuam que a percepção de saúde está mais relacionada às capacidades funcionais dos indivíduos do que à presença de doenças crônicas.

Como indicado neste estudo, há uma relação inversa entre o nível de escolaridade e a percepção não positiva da saúde. Indivíduos com níveis educacionais mais elevados frequentemente descrevem sua saúde de forma positiva 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.,55. Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.,77. Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65.,3434. Alves LC, Rodrigues RN. Determinantes da autopercepção de saúde entre idosos do Município de São Paulo, Brasil. Rev Panam Salud Pública 2005; 17:333-41.. Estudo baseado nos dados da pesquisa Saúde, Bem-estar e Envelhecimento na América Latina e Caribe (SABE) 3434. Alves LC, Rodrigues RN. Determinantes da autopercepção de saúde entre idosos do Município de São Paulo, Brasil. Rev Panam Salud Pública 2005; 17:333-41. revela uma relação complexa entre a escolaridade e a autoavaliação de saúde. Embora haja uma tendência de melhora na autoavaliação de saúde à medida que a escolaridade aumenta, essa relação não é linear. Ela é influenciada pelas oportunidades sociais, como informação, serviços de saúde e melhores condições de vida. Alvarez-Galvez et al. 44. Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61., por outra parte, sinalizam que a escolaridade determina em maior grau a autoavaliação de saúde do que outros indicadores socioeconômicos, como a renda.

A pobreza monetária, embora tenha se mostrado associada à autoavaliação não positiva da saúde no modelo bivariado, apresentou uma associação fraca quando considerados os demais fatores socioeconômicos. A captação e identificação da renda, sem um adequado tratamento, ou seja, utilizada em termos absolutos, é um indicador socioeconômico frágil 3535. Moura Júnior JF, Cidade EC, Ximenes VM, Sarriera JC. Concepções de pobreza: um convite à discussão psicossocial. Trends Psychol 2014; 22:341-52.. O fundamental não é o que uma pessoa tem, mas sim o que ela pode fazer com isso. Essa ideia, incorporada ao conceito de “capabilities” de Amartya Sen 3636. Sen A. The political economy of targeting. Washington DC: World Bank; 1992., é esclarecedora para a interpretação dos achados deste estudo. Embora a captação da pobreza na ENCOVI 2021 tenha sido feita com base em uma estimativa das necessidades do povo venezuelano 2222. Correa G. Medición de la pobreza y estratificación social a través de las ENCOVI. In: Venezuela: vivir a medias. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida 2015 (ENCOVI). Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2016. p. 15-32., ela, ainda assim, é baseada em termos de renda, não sendo suficiente para identificar a situação de carência das famílias. Isso explica, em grande medida, o porquê da situação de insegurança alimentar apresentar associação mais forte com o estado de saúde.

A insegurança alimentar, diferentemente dos indicadores socioeconômicos tradicionais (renda, escolaridade e ocupação), é capaz de captar as disparidades nas demandas e dificuldades entre famílias 66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.,3737. Whelan CT, Layte R, Maître B, Nolan B. Income, deprivation, and economic strain: an analysis of the European Community Household Panel. Eur Sociol Rev 2001; 17:357-72.. Marshall & Tucker-Seeley 66. Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7., com o objetivo de investigar a associação de indicadores relacionados a formas específicas de dificuldades (dificuldade para pagar contas, estresse financeiro contínuo, dificuldade na obtenção de medicamentos e insegurança alimentar) com a autoavaliação de saúde, observaram que todos os indicadores estavam fortemente associados, sendo a insegurança alimentar a que apresentou maior força de associação. A maior parte da literatura voltada à insegurança alimentar concentra-se nas crianças, haja vista que a saúde delas é impactada de forma mais severa pela escassez de alimentos 3838. Gundersen C, Ziliak JP. Food insecurity and health outcomes. Health Aff 2015; 34:1830-9.. No entanto, a insegurança alimentar também está associada a diversos problemas de saúde na população adulta, tais como: desnutrição, diabetes, hipertensão, hiperlipidemia, problemas de saúde bucal, depressão e outros problemas de saúde mental 3838. Gundersen C, Ziliak JP. Food insecurity and health outcomes. Health Aff 2015; 34:1830-9..

Embora o país tenha sido reconhecido por suas políticas governamentais eficazes em segurança alimentar, a atual crise econômica e política tem impactado negativamente o acesso à alimentação adequada no país 3939. Hernández P, Carmona A, Tapia MS, Rivas S. Dismantling of institutionalization and state policies as guarantors of food security in Venezuela: food safety implications. Front Sustain Food Syst 2021; 5:623603.. Como evidenciado neste estudo, atualmente a insegurança alimentar tem altos níveis no país, atingindo 90% da população. De acordo com o relatório sobre o estado da segurança alimentar e nutricional no mundo (The State of Food Security and Nutrition in the World) 4040. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children's Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022: repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2022., a prevalência de desnutrição no país aumentou significativamente - de 8%, entre 2004 e 2006, para 23%, entre 2019 e 2021 -, enquanto a média dos países da América do Sul foi de 7% nesse último período. Isso indica uma preocupante deterioração da segurança alimentar na Venezuela nas últimas décadas.

A emigração de um familiar corresidente nos últimos cinco anos esteve associada à autoavaliação não positiva da saúde, mesmo quando levado em consideração os demais fatores socioeconômicos. Estudo recente 88. Guzmán MGR, Blanco TN. La diáspora venezolana: análisis de la salud de la familia que quedó y de las metas cumplidas por los emigrantes. Med Interna (Caracas) 2020; 36:124-37. analisou o estado de saúde das famílias venezuelanas que sofreram a emigração de alguns de seus membros e aponta que, em muitos casos, os familiares “abandonados” no país passam a se responsabilizar pela educação e sustento de menores dependentes, sejam próprios ou de terceiros, e pelos cuidados de pessoas idosas dependentes, situação que costuma gerar problemas familiares e pessoais. De acordo com o estudo, a prevalência de depressão entre esses indivíduos foi acentuada. O aumento de comportamentos prejudiciais à saúde, como o consumo de álcool e tabaco, também foi relatado 88. Guzmán MGR, Blanco TN. La diáspora venezolana: análisis de la salud de la familia que quedó y de las metas cumplidas por los emigrantes. Med Interna (Caracas) 2020; 36:124-37..

A grave crise econômica da Venezuela tem afetado a infraestrutura sanitária e as condições de vida e de saúde de sua população 1414. Page KR, Doocy S, Reyna Ganteaume F, Castro JS, Spiegel P, Beyrer C. Venezuela's public health crisis: a regional emergency. Lancet 2019; 393:1254-60.. O sistema de saúde venezuelano vem perdendo a sua capacidade operacional devido a fatores como: a escassez de medicamentos, vacinas e produtos básicos de saúde; a perda de profissionais de saúde emigrados; e a indisponibilidade de informações (especialmente a partir de 2017) 1313. Roa AC. Sistema de salud en Venezuela: ¿un paciente sin remedio? Cad Saúde Pública 2018; 34:e00058517.. Na perspectiva das condições de saúde da população, observa-se um aumento vertiginoso em diversos indicadores de saúde, entre os quais se destacam: a mortalidade materna e infantil; e a incidência de doenças evitáveis, como HIV, tuberculose, malária, sarampo e difteria 1414. Page KR, Doocy S, Reyna Ganteaume F, Castro JS, Spiegel P, Beyrer C. Venezuela's public health crisis: a regional emergency. Lancet 2019; 393:1254-60.. Nesse contexto, este estudo se destaca por fornecer informações confiáveis acerca daqueles que sofreram maior impacto em sua saúde no período recente.

Por outro lado, algumas limitações devem ser consideradas. A ENCOVI 2021 enfrentou dificuldades para coletar dados presencialmente na pandemia de COVID-19, o que gerou falta de respostas em algumas áreas. Porém, a pesquisa aplicou ajustes para minimizar esse problema, conforme explicado no relatório técnico 99. Universidad Católica Andrés Bello. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida: documento técnico. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2021.. Além disso, o estudo é transversal e não pode inferir causalidade nas associações encontradas, o que requer uma interpretação cuidadosa dos achados.

Referências bibliográficas

  • 1
    Garbarski D. Research in and prospects for the measurement of health using self-rated health. Public Opin Q 2016; 80:977-97.
  • 2
    Kaplan GA, Camacho T. Perceived health and mortality: a nine-year follow-up of the human population laboratory cohort. Am J Epidemiol 1983; 117:292-304.
  • 3
    Idler EL. Age differences in self-assessments of health: age changes, cohort differences, or survivorship? J Gerontol 1993; 48:S289-300.
  • 4
    Alvarez-Galvez J, Rodero-Cosano ML, Motrico E, Salinas-Perez JA, Garcia-Alonso C, Salvador-Carulla L. The impact of socio-economic status on self-rated health: study of 29 countries using European social surveys (2002-2008). Int J Environ Res Public Health 2013; 10:747-61.
  • 5
    Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Lima LTM, Malta DC, et al. Determinantes da autoavaliação de saúde no Brasil e a influência dos comportamentos saudáveis: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 2:33-44.
  • 6
    Marshall GL, Tucker-Seeley R. The association between hardship and self-rated health: does the choice of indicator matter? Ann Epidemiol 2018; 28:462-7.
  • 7
    Aydin K. Self-rated health and chronic morbidity in the EU-28 and Turkey. J Public Health 2022; 30:553-65.
  • 8
    Guzmán MGR, Blanco TN. La diáspora venezolana: análisis de la salud de la familia que quedó y de las metas cumplidas por los emigrantes. Med Interna (Caracas) 2020; 36:124-37.
  • 9
    Universidad Católica Andrés Bello. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida: documento técnico. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2021.
  • 10
    Falk H, Skoog I, Johansson L, Guerchet M, Mayston R, Hörder H, et al. Self-rated health and its association with mortality in older adults in China, India and Latin America: a 10/66 Dementia Research Group study. Age Ageing 2017; 46:932-9.
  • 11
    Universidad Católica Andrés Bello. Condiciones de vida del venezolano, entre emergencia humanitaria y pandemia. https://www.proyectoencovi.com/ (accessed on 31/Jul/2023).
    » https://www.proyectoencovi.com/
  • 12
    Méndez CGT. Venezuela: contexto, análisis y escenarios. Revista Mexicana de Sociología 2019; 81:443-55.
  • 13
    Roa AC. Sistema de salud en Venezuela: ¿un paciente sin remedio? Cad Saúde Pública 2018; 34:e00058517.
  • 14
    Page KR, Doocy S, Reyna Ganteaume F, Castro JS, Spiegel P, Beyrer C. Venezuela's public health crisis: a regional emergency. Lancet 2019; 393:1254-60.
  • 15
    Doocy S, Ververs MT, Spiegel P, Beyrer C. The food security and nutrition crisis in Venezuela. Soc Sci Med 2019; 226:63-8.
  • 16
    Freitez A. Crisis humanitaria y migración forzada desde Venezuela. In: Gandini L, Lozano Ascencio F, Prieto Rosas V, editors. Crisis y migración de población venezolana: entre la desprotección y la seguridad jurídica en Latinoamérica. Mexico City: Universidad Nacional Autónoma de México; 2019. p. 33-58.
  • 17
    Jannuzzi PM. A importância da informação estatística para as políticas sociais no Brasil: breve reflexão sobre a experiência do passado para considerar no presente. Rev Bras Estud Popul 2018; 35:e0055.
  • 18
    Camelo LV, Coelho CG, Chor D, Griep RH, Almeida MCC, Giatti L, et al. Racismo e iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim: o papel da mobilidade social intergeracional no Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil). Cad Saúde Pública 2022; 38:e00341920.
  • 19
    Sousa JL, Alencar GP, Antunes JLF, Silva ZP. Marcadores de desigualdade na autoavaliação da saúde de adultos no Brasil, segundo o sexo. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00230318.
  • 20
    DeSalvo KB, Bloser N, Reynolds K, He J, Muntner P. Mortality prediction with a single general self-rated health question. J Gen Intern Med 2006; 21:267-75.
  • 21
    Vincens N, Emmelin M, Stafström M. Social capital, income inequality and the social gradient in self-rated health in Latin America: a fixed effects analysis. Soc Sci Med 2018; 196:115-22.
  • 22
    Correa G. Medición de la pobreza y estratificación social a través de las ENCOVI. In: Venezuela: vivir a medias. Encuesta Nacional de Condiciones de Vida 2015 (ENCOVI). Caracas: Universidad Católica Andrés Bello; 2016. p. 15-32.
  • 23
    Comité Científico de la ELCSA. Escala Latinoamericana y Caribeña de Seguridad Alimentaria (ELCSA): manual de uso y aplicaciones. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2012.
  • 24
    Szwarcwald CL, Damacena GN, Barros MBA, Malta DC, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, et al. Factors affecting Brazilians' self-rated health during the COVID-19 pandemic. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00182720.
  • 25
    Martínez F, Azkoul M, Rangel C, Sandia I, Pinto S. Efectos de la pandemia por COVID-19 en la salud mental de trabajadores sanitarios del estado Mérida, Venezuela. Gicos 2020; 5:77-88.
  • 26
    Murendo C, Murenje G. Decomposing gender inequalities in self-assessed health status in Liberia. Glob Health Action 2018; 11 Suppl 3:1603515.
  • 27
    Lee SY, Kim SJ, Yoo KB, Lee SG, Park EC. Gender gap in self-rated health in South Korea compared with the United States. Int J Clin Health Psychol 2016; 16:11-20.
  • 28
    Bora JK, Saikia N. Gender differentials in self-rated health and self-reported disability among adults in India. PLoS One 2015; 10:e0141953.
  • 29
    Moura EC, Gomes R, Pereira GMC. Percepções sobre a saúde dos homens numa perspectiva relacional de gênero, Brasil, 2014. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:291-300.
  • 30
    Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saúde Pública 2013; 29:723-34.
  • 31
    Mendoza-Sassi RA, Béria JU. Gender differences in self-reported morbidity: evidence from a population-based study in southern Brazil. Cad Saúde Pública 2007; 23:341-6.
  • 32
    Veras R, Parahyba MI. O anacronismo dos modelos assistenciais para os idosos na área da saúde: desafios para o setor privado. Cad Saúde Pública 2007; 23:2479-89.
  • 33
    Paskulin LMG, Vianna LAC. Perfil sociodemográfico e condições de saúde auto-referidas de idosos de Porto Alegre. Rev Saúde Pública 2007; 41:757-68.
  • 34
    Alves LC, Rodrigues RN. Determinantes da autopercepção de saúde entre idosos do Município de São Paulo, Brasil. Rev Panam Salud Pública 2005; 17:333-41.
  • 35
    Moura Júnior JF, Cidade EC, Ximenes VM, Sarriera JC. Concepções de pobreza: um convite à discussão psicossocial. Trends Psychol 2014; 22:341-52.
  • 36
    Sen A. The political economy of targeting. Washington DC: World Bank; 1992.
  • 37
    Whelan CT, Layte R, Maître B, Nolan B. Income, deprivation, and economic strain: an analysis of the European Community Household Panel. Eur Sociol Rev 2001; 17:357-72.
  • 38
    Gundersen C, Ziliak JP. Food insecurity and health outcomes. Health Aff 2015; 34:1830-9.
  • 39
    Hernández P, Carmona A, Tapia MS, Rivas S. Dismantling of institutionalization and state policies as guarantors of food security in Venezuela: food safety implications. Front Sustain Food Syst 2021; 5:623603.
  • 40
    Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children's Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022: repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2023
  • Revisado
    22 Dez 2023
  • Aceito
    10 Jan 2024
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br