Organizações sociais de saúde: análise sobre as especialidades e exames contratados pelo Estado de São Paulo, Brasil

Gabriella Bigossi Francis Sodré Lorena Estevam Martins Fernandes Gabriella Barreto Soares Fabiana Turino Sobre os autores

Resumo

As organizações sociais de saúde (OSS) são entidades privadas que recebem repasses de governos para gestão de serviços públicos de saúde. Com o histórico de interesses mercadológicos na saúde pública e o aporte de vultosos recursos às OSS, questiona-se se a lógica de mercado permanece inserida nesse modelo de gestão. Conhecer a dinâmica da oferta de serviços à população ao longo das contratações pode ajudar a compreender como se comportam as possíveis alterações nos serviços contratados. Trata-se de estudo descritivo-exploratório com abordagens quanti e qualitativa. Realizou-se pesquisa documental com coleta de dados dos contratos de gestão e termos aditivos. A escolha pelo estado de São Paulo se deu por este ter sido pioneiro na implantação da gestão de serviços do SUS por OSS e pela sua representatividade econômica. Especialidades médicas foram incluídas em 184 repactuações (6,14%) e excluídas em 187 (6,24%), enquanto as não médicas foram incluídas em 26 repactuações (2,97%) e excluídas em 144 (16,44%). Quanto aos exames, 101 repactuações (18,07%) aumentaram metas e 60 (10,73%) reduziram, enquanto 6 repactuações (1,07%) incluíram exames e 12 (2,14%) excluíram.

Palavras-chave:
Organização social; Sistema Único de Saúde; Gestão de serviços de saúde

Introdução

As organizações sociais (OS) são entidades privadas sem fins lucrativos que recebem repasses financeiros públicos dos governos para gestão de atividades que seriam, inicialmente, responsabilidade direta do Estado, por se tratarem de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, como o direito à Saúde11 Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil [Internet]. 1988. [acessado 2017 ago 4]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf
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. No entanto, a iniciativa privada atuante no setor, acostumada até antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) a vender leitos, serviços e insumos para o poder público - que até então não tinha uma rede estruturada de saúde -, garantiu no processo constituinte sua participação no sistema de forma complementar.

Logo após a implementação do SUS, ainda na década de 1990, foi lançado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). Essa reforma propôs o processo de publicização, ou seja, a transferência para o terceiro setor (entidades privadas sem fins lucrativos) da execução de serviços não exclusivos do Estado, como pesquisa científica, educação, cultura e saúde, enfatizando como solução o modelo de administração gerencial. O documento alega incapacidade da administração pública burocrática de atender a sobrecarga de demandas dirigidas ao Estado, sobretudo na área social, e faz uma crítica a essa forma de administração como sendo rígida e ineficiente22 Brasil. Presidência da República. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado [Internet]. 1995. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/plano-diretor-da-reforma-do-aparelho-do-estado-1995.pdf
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Com o histórico de interesses mercadológicos da iniciativa privada na saúde pública e o aporte de vultosos recursos públicos destinados às organizações sociais de saúde (OSS) durante vários anos33 Sodré F, Bussinguer ECA, Bahia L, organizadores. Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde. São Paulo: Hucitec; 2018., questiona-se se a lógica de mercado permanece inserida no modelo de gestão dessas instituições. O incremento contínuo das OSS na administração de serviços do SUS tem ocorrido sem mais profundos estudos que apontem efetividade nos resultados desse tipo de gestão44 Soares GB, Borges FT, Santos RR, Garbin CAS, Moimaz SAS, Siqueira CEG. Organizações sociais de saúde (OSS): privatização da gestão de serviços de saúde ou solução gerencial para o SUS? Rev Gest Saude 2016; 7(2):828-850., o que traz à tona a necessidade de mais pesquisas que estejam empenhadas em desvelar os efeitos dessas parcerias em serviços de saúde ofertados aos cidadãos.

Essas pactuações entre OSS e Estado estão, ou deveriam estar, previstas e acessíveis em documentos contratuais: os contratos de gestão (CG) e termos aditivos (TA). Conhecer a dinâmica da oferta de serviços à população ao longo das contratualizações realizadas entre as OSS e as secretarias de saúde pode ajudar a compreender como se comportam essas parcerias no que se refere a possíveis alterações nos serviços contratados. É necessário que haja controle e transparência na forma como entidades privadas como as OSS realizam a gestão pública, já que é possível que interesses de mercado estejam inseridos na complexa administração dos serviços que compõem a rede do SUS.

O estado de São Paulo (SP), para além de sua importância econômica, sendo o mais representativo perante a região sudeste e o Brasil55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades [Internet]. 2018. [acessado 2018 mar 21]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/
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, foi o primeiro a implementar, em 1998, uma legislação regulamentando a atuação das OSS66 São Paulo. Lei complementar nº 846, de 4 de junho de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo 1998; 5 set.. Tem ainda o maior número de contratos e aditivos pactuados com as organizações sociais de saúde, e concentra a maioria das organizações, sendo território de atuação das maiores OSS do Brasil77 Turino F, Sodré F, Bahia L. A dupla certificação na saúde: a articulação política entre as instituições filantrópicas e as Organizações Sociais de Saúde. In: Sodré F, Bussinguer ECA, Bahia L, organizadores. Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2018. p. 66-88.. Muitos dos estudos disponíveis na literatura sobre o tema se referem a SP, uma vez que este realiza há mais tempo parcerias com o terceiro setor. Com isso, apostou-se que os dados mais representativos sobre as OSS no país estariam inseridos nesse estado. Sendo assim, esta pesquisa se delineou em torno dos contratos e aditivos pactuados com a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo (SES/SP).

Nesse contexto, o objetivo foi analisar as especialidades e exames pactuados nos CG e TA firmados entre as OSS e a SES/SP, englobando análise da dinâmica da oferta desses serviços ao longo das contratualizações. Considerando que dados sobre especialidades e exames diagnósticos estavam disponíveis nos documentos contratuais acessíveis nos sítios eletrônicos do estado de SP, sua escolha como objeto deveu-se ao fato de que, durante a leitura flutuante88 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2002. do universo amostral dos contratos e aditivos com assinatura entre 2013 e 2017, observou-se que a grande maioria dos contratos tratavam da gestão de ambulatórios médicos de especialidades e hospitais com oferta de serviços ambulatoriais, além de exames (entre gestão de outros equipamentos, como Central de Regulação e Centro Estadual de Armazenamento e Distribuição de Insumos de Saúde). Além disso, percebeu-se constantes mudanças nas quantidades e qualidades desses serviços contratados, então buscou-se averiguar quais seriam essas alterações.

É importante mencionar que este estudo integrou, em âmbito nacional, o projeto de pesquisa “Complexo econômico industrial da saúde (CEIS), inovação e dinâmica capitalista: desafios estruturais para a construção do sistema universal no Brasil” (CNPq nº 405077/2013-0).

Métodos

Trata-se de estudo descritivo-exploratório com abordagens quantitativa e qualitativa. Realizou-se pesquisa documental com coleta de dados dos CG e TA pactuados entre as OSS e a SES/SP. A leitura e análise das informações contratuais foram facilitadas pelo fato de os documentos necessários ao estudo estarem disponibilizados no Portal de Transparência da respectiva secretaria. Por se tratarem de informações de interesse público, sua coleta teve respaldo pela lei nº 12.527 de 201199 Brasil. Presidência da República. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 18 nov., a Lei de Acesso à Informação, que transforma em direito constitucional o acesso a essas informações.

Selecionou-se para este estudo a totalidade de contratos e aditivos de SP que tivessem dados de pactuação de especialidades e/ou de exames contratados, com assinatura compreendida no período de 2013 a 2017, referentes à gestão dos seguintes estabelecimentos que prestam assistência direta à saúde da população: ambulatórios médicos de especialidades (AME), centros de referência do idoso (CRI), hospitais gerais e maternidades. Excluiu-se os TA que, apesar de terem assinatura no período estudado, se referiam a CG anteriores a 2013, e também os TA e CG com data de assinatura dentro do escopo, mas com efeitos para 2018. Apesar de o estudo ter uma limitação na amostra, que não abarcou os TA referentes a CG anteriores a 2013, enfatizamos que a totalidade das unidades de saúde de média e alta complexidade do estado de São Paulo foi analisada, não havendo alteração na base populacional do estudo.

Para a análise dos dados, primeiro os termos aditivos foram categorizados de acordo com o que estava previsto nos objetos contratuais. Em seguida, procedeu-se à tabulação das unidades analíticas de interesse em planilha elaborada no programa Microsoft Office Excel. Todas as especialidades médicas e não médicas contratadas, bem como os exames diagnósticos ofertados, foram planilhados e suas alterações mapeadas.

Análise das especialidades

Nesta análise, verificou-se quais foram as especialidades médicas e não médicas pactuadas nos estabelecimentos de saúde que prestam serviços assistenciais e estabeleceu-se um ranking das mais e menos contratadas. Considerou-se a especialidade contratada por estabelecimento de saúde caso ela tenha aparecido ao menos uma vez nos documentos contratuais ao longo de toda a vigência estudada.

Verificou-se também o total de repactuações com possibilidade de serem encontradas alterações nas especialidades. O objetivo da obtenção desse total foi realizar o cálculo do percentual de inclusões e exclusões de especialidades nas repactuações em TA ou em CG “contínuos” - aqueles que dão continuidade ao último contrato e seus aditivos. Uma especialidade foi considerada “incluída” todas as vezes que apareceu em TA ou em CG contínuo, não tendo sido contratada no primeiro CG estudado. Por outro lado, uma especialidade foi considerada “excluída” todas as vezes que desapareceu em TA ou em CG contínuo, tendo sido identificada na primeira pactuação.

Para obtenção dos percentuais desta análise, considerou-se como unidade de repactuação cada possibilidade de (re/des)contratação da especialidade, dada pela característica do documento contratual de conter o dado pertinente. Mostrou-se necessário utilizar como denominador a soma das repactuações apenas dos documentos que trazem as especialidades, pois do contrário o cálculo percentual das inclusões e exclusões não traria um valor real, mas subestimado, já que algumas repactuações não trazem dados de especialidades. Utilizou-se então a seguinte fórmula para gerar o percentual real de especialidades incluídas e excluídas: divisão do total de TA e CG contínuos (repactuações) que incluem ou excluem especialidades (numerador) pelo total de repactuações possíveis de terem essas alterações (denominador), multiplicado por cem. Fez-se o cálculo para cada especialidade e considerando todas juntas. Estabeleceu-se então outro ranking: as especialidades médicas e não médicas mais incluídas e excluídas.

Análise dos serviços de apoio diagnóstico e terapêutico externo

Quanto aos exames ofertados pelos serviços de apoio diagnóstico e terapêutico externo (SADT externo), referem-se, de acordo com os Anexos Técnicos I (Descrição de Serviços) dos documentos contratuais, a exames ofertados a pacientes externos à unidade de saúde em questão, ou seja, “àqueles pacientes que foram encaminhados para realização de atividades de SADT por outros serviços de saúde, obedecendo ao fluxo estabelecido pela Secretaria Estadual de Saúde”.

Nesta análise, verificou-se o total de estabelecimentos onde os exames foram ofertados e estabeleceu-se um ranking dos exames mais e menos contratados, e ainda dos exames com a maior ampliação da oferta (considerando os aumentos nas quantidades de exames contratados e as inclusões de novos exames) e maior redução da oferta (seja através de diminuições nas quantidades de exames contratados, seja pelas exclusões de exames), considerando os estabelecimentos de saúde pesquisados.

Importante pontuar que os tipos e quantidades de exames previstos nos TA com a repactuação para o exercício subsequente, bem como nos CG contínuos, foram comparados aos documentos contratuais referentes à vigência anterior para se estabelecer a inclusão/exclusão ou aumento/redução da oferta do exame. Já os demais TA foram comparados às pactuações previstas nos CG ou TA de “repactuação” referentes à mesma vigência contratual. Quanto ao total de exames contratados, menciona-se uma limitação nesta análise, já que se levou em conta apenas se a repactuação aumentou ou diminuiu a oferta, não sendo quantificado o quanto essa oferta foi alterada.

Resultados

Identificou-se, no site da SES/SP, 101 CG e 518 TA no período de 2013 a 2017, sendo recorte desta pesquisa apenas os contratos e aditivos dos estabelecimentos com oferta de serviços assistenciais em que constam as especialidades contratadas e os exames diagnósticos ofertados. Os resultados estão apresentados de acordo com as etapas propostas na metodologia, englobando diferentes recortes.

Quanto aos objetos contratuais dos termos aditivos, ao todo, foram identificadas nove categorias: 1) repactuação exercício subsequente (RES); 2) ampliação/inclusão de serviços; 3) supressão/exclusão de serviços; 4) projetos especiais/mutirões; 5) readequação/ajuste de metas (com ou sem ajuste financeiro); 6) recursos de investimento; 7) descontos no custeio por descumprimento de metas; 8) outras retirratificações e; 9) termo de retificação. Para este estudo, apenas as categorias 1, 2, 3 e 5 foram levadas em consideração, já que as alterações nas pactuações de interesse estavam presentes apenas nessas categorias.

As especialidades médicas e não médicas apareceram em pactuações de 73 estabelecimentos de saúde (48 AME, 1 CRI e 24 hospitais gerais). Nesta análise, não se levaram em consideração as duas maternidades encontradas, devido ao perfil diferenciado de especialidades contratadas, o que poderia trazer distorções nesse recorte. Ao todo, foram identificadas 47 especialidades médicas e 9 não médicas contratadas. Dessas, 44 especialidades médicas e 9 não médicas sofreram alterações ao longo das contratualizações (não se observou alterações em três especialidades médicas contratadas, por não apresentarem repactuações). No Quadro 1 temos o ranking das especialidades médicas mais e menos contratadas, e também das especialidades não médicas mais e menos contratadas, bem como a quantidade de estabelecimentos em que elas aparecem.

Quadro 1
Ranking das especialidades médicas e não médicas mais e menos contratadas em 73 estabelecimentos de saúde do estado de São Paulo (2013 a 2017).

Quanto ao total de inclusões, 30 (68,18%) de um total de 44 especialidades médicas e 4 (44,44%) de um total de 9 especialidades não médicas foram incluídas por meio de TA em estabelecimentos onde estas não foram inicialmente contratadas. Já em relação às exclusões, 37 (84,09%) especialidades médicas e 9 (100,00%) especialidades não médicas foram excluídas ao menos uma vez ao longo das contratualizações. Com relação ao total de repactuações possíveis de terem alterações, por categoria de TA, bem como o percentual de inclusões e exclusões de especialidades médicas e não médicas, considerando todas as categorias de TA estudadas, estes estão descritos na Tabela 1.

Tabela 1
Total de repactuações possíveis de terem alterações, por categoria de TA, e percentual de inclusões e exclusões de especialidades médicas e não médicas contratadas em 73 estabelecimentos de saúde do estado de São Paulo (2013 a 2017).

Além de uma variedade maior de especialidades médicas excluídas (37), em relação às incluídas (30), o total de exclusões em repactuações também foi maior (187), se comparado ao total de inclusões (184). O mesmo ocorre com as especialidades não médicas, porém com um abismo maior entre o total de inclusões e exclusões: enquanto apenas quatro tipos de especialidades foram incluídas, todas as nove especialidades não médicas foram excluídas pelo menos uma vez ao longo das contratualizações estudadas. Foram encontradas ainda cerca de 5,5 vezes mais exclusões (144) do que inclusões (26) de especialidades não médicas nas repactuações possíveis. O Quadro 2 mostra o ranking das especialidades médicas e não médicas mais incluídas e excluídas, bem como o total de inclusões e exclusões.

Quadro 2
Ranking das especialidades médicas e não médicas mais incluídas e excluídas em 73 estabelecimentos de saúde do estado de São Paulo (2013 a 2017).

A pactuação de exames do SADT externo foi verificada nos 75 estabelecimentos de saúde analisados. Identificaram-se ao todo 11 tipos diferentes de exames contratados. O ranking dos três exames mais e menos contratados e ainda dos exames com oferta mais ampliada e mais reduzida estão descritos no Quadro 3.

Quadro 3
Ranking dos exames diagnósticos mais e menos contratados e com maior ampliação e redução da oferta em 75 estabelecimentos de saúde do estado de São Paulo (2013 a 2017).

Quanto aos exames, 101 de 559 repactuações possíveis (18,07%) aumentaram metas, enquanto 6 repactuações (1,07%) incluíram exames, encontrando-se aumento de metas em 7 dos 11 tipos de exames. Destacam-se cinco TA da categoria “repactuação exercício subsequente” e um da categoria “readequação/ajuste de metas” que incluíram quatro tipos de exames ao longo das contratualizações em três estabelecimentos de saúde, enquanto dois TA da categoria “ampliação/inclusão de serviços” ampliaram a oferta do exame de “métodos diagnósticos em especialidades”, um devido a proposta de ampliação da atividade assistencial para um hospital, outro decorrente da implantação do “Serviço Especializado em Oftalmo Retina” em um ambulatório médico de especialidades (AME).

Com relação às reduções na oferta de exames, 60 de 559 repactuações (10,73%) reduziram metas assistenciais, enquanto 12 repactuações (2,14%) excluíram exames. Encontrou-se redução da oferta de serviços em 8 de 11 tipos de exames. Do total de exclusões, 12 TA da categoria “repactuação exercício subsequente” excluíram a oferta de 7 dos 11 tipos de exames em 6 estabelecimentos de saúde.

Discussão

Os dados das especialidades médicas demonstrados apontam para falta de comprometimento com as necessidades em saúde da população, uma vez que o remanejamento de especialidades ocorre de forma indiscriminada, como se ora fossem necessárias para a saúde da população, ora não, parecendo estar em um jogo mercadológico onde são retiradas e colocadas de acordo com a conveniência do poder público e das OSS.

No que se refere às especialidades não médicas, o fato do total de tipos de especialidades excluídas ter sido maior do que a quantidade incluída, bem como as vezes que essas desapareceram nas contratualizações também terem se sobreposto à quantidade de inclusões, demonstra pouca priorização na multidisciplinaridade, destacando-se a redução e exclusão na oferta de serviços de profissionais não-médicos tão essenciais para a integralidade da assistência.

Quanto à relação entre as inclusões e exclusões das especialidades nos CG e TA firmados entre as OSS e a SES/SP ao longo tempo e a oferta de serviços para a população, pontua-se que mesmo um remanejamento causa transtorno à população usuária, visto que muitas vezes está acostumada à oferta de certa especialidade em uma determinada unidade de saúde e a retirada de qualquer serviço daquele estabelecimento se torna um dificultador no acesso.

No entanto, o que se observa, considerando que a totalidade dos estabelecimentos foi analisada, é que existe sim a exclusão de serviços, pois mesmo que CG e TA anteriores não tenham sido analisados, a partir do estudo de determinado documento contratual observamos adiante a exclusão desses serviços, muito mais do que inclusões, em especial das especialidades não médicas.

Seguindo a lógica de mercado, muitas vezes não se considera que tal especialidade seja necessária (lei da oferta e da procura), o que está inclusive previsto nos contratos quando permitem o reajuste de metas de acordo com indicadores de produção anteriores. Mesmo que o serviço não seja o mais utilizado, ainda assim é direito do usuário o acesso a uma atenção integral. Mas o que está previsto nesse tipo de parceria, e que também é responsabilidade da gestão governamental que se propõe a esse tipo de contrato, é que na medida em que tal serviço seja mais ou menos demandado, ocorre uma pactuação de quantidade maior ou menor daquele serviço, ocorrendo muitas vezes a sua exclusão, o que pode acarretar desassistência para a população que venha a precisar do serviço em questão.

Esse jogo de “pactuação”, “repactuação” e “despactuação” também foi observado na oferta de exames diagnósticos. Apesar das repactuações terem apresentado mais aumentos do que reduções de metas, este estudo não contabilizou o total de exames ofertados, apenas quais foram ofertados e a sua dinâmica, ou seja, quantas vezes as metas aumentaram ou diminuíram e quantas vezes os tipos de exames eram incluídos ou excluídos, cabendo aqui a necessidade de mais investigações a fim de verificar o quanto as metas aumentam ou diminuem, pois há a possibilidade de metas serem aumentadas em menor quantidade do que são diminuídas.

Em uma análise similar à que foi feita nesta pesquisa, Castro1010 Castro GB. Organizações sociais de saúde: análise dos contratos de gestão e termos aditivos do estado de São Paulo [dissertação]. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo; 2019. (p. 124) aponta que 80% dos serviços analisados no estado de São Paulo entre 2013 e 2017 tiveram, na maioria de suas repactuações de exercícios subsequentes, aumento da meta mensal em relação à vigência anterior, contra apenas 20% que tiveram em sua maioria, redução. Com isso,

o esperado seria encontrar também aumento na maioria dos serviços [...], o que não ocorreu: apenas 40% dos serviços tiveram sua oferta real ampliada em relação à oferta estimada nas primeiras pactuações, contra 60% que acabaram com suas metas reduzidas em relação ao total estimado, demonstrando que as reduções nas ofertas estão camufladas por supostos aumentos de serviços. Se de um lado aumenta-se a meta mensal [...], de outro, diminui-se em maior quantidade essas mesmas metas [...], demonstrando que estes aumentos são menores que as reduções.

Apesar da experiência em São Paulo demonstrar remanejamento demasiado de serviços de saúde essenciais e falta de comprometimento com a integralidade da atenção, princípio do SUS, Sano e Abrucio1111 Sano H, Abrucio FL. Promessas e resultados da nova gestão pública no Brasil: o caso das Organizações Sociais de Saúde em São Paulo. ERA 2008; 48(3):64-80. (p. 77-78) avaliaram a implantação da chamada Nova Gestão Pública em diferentes unidades federativas no país e encontraram que o modelo das OSS no Brasil “tem na experiência paulista o seu caso mais bem-sucedido”, no entanto, explicam que isso se dá, em parte, devido à “precariedade do modelo ou de sua implementação nos outros estados e na União”. Afirmam ainda que apenas as legislações de Curitiba, Bahia e São Paulo preveem a obrigatoriedade de publicação na íntegra dos contratos de gestão, situando esses documentos como parte dos mecanismos de controle dos resultados.

Além da falta de comprometimento com a integralidade da atenção em saúde da gestão estadual evidenciada neste estudo, muitos autores apontam desajustes no que se refere à gestão por OSS. André1212 André MA. A efetividade dos contratos de gestão na reforma do estado. RAE 1999; 39(3):42-52. (p. 46) mostra que o Estado ainda não está preparado para a administração por objetivos e contratos de gestão e afirma que falta vontade política, que a estrutura é inadequada, as competências técnicas são insuficientes e que “é essencial à supervisão da gestão de uma instituição pelo Estado, ou por quaisquer representantes da sociedade, que a implantação de contratos de gestão tenha por lastro um sistema eficaz de avaliação de desempenho”1212 André MA. A efetividade dos contratos de gestão na reforma do estado. RAE 1999; 39(3):42-52. (p. 43).

Pinto e Amaral1313 Pinto EG, Amaral DJ. Controle de custos e resultados nos contratos de gestão da saúde: alguns apontamentos sobre suas prestações de contas. In: Sodré F, Bussinguer ECA, Bahia L, organizadores. Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2018. p. 145-185. (p. 145), sobre os processos de prestação de contas dos Contratos de Gestão nos municípios paulistas e na SES/SP em 2017, apontam fragilidades na operacionalização da gestão e execução das atividades e serviços de saúde por meio desses documentos. Recomendam a necessidade de verificação, pelo estado e municípios, de alguns pontos que funcionarão como “verdadeira matéria prejudicial à análise da idoneidade e regularidade do ajuste, bem como da sua execução contratual”1313 Pinto EG, Amaral DJ. Controle de custos e resultados nos contratos de gestão da saúde: alguns apontamentos sobre suas prestações de contas. In: Sodré F, Bussinguer ECA, Bahia L, organizadores. Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2018. p. 145-185. (p. 175).

As OSS, juntamente a entidades privadas atuantes no mercado da saúde, têm construído uma agenda, pautando regras ao SUS e se propondo como solução para os problemas enfrentados pela sociedade no acesso a serviços públicos de qualidade, sem, no entanto, apontarem dados que comprovem sua maior eficiência e qualidade. Também o fato de as informações referentes ao que ocorre com os serviços de saúde ofertados ao longo das contratualizações estarem dispersas nos documentos contratuais, necessitando uma análise aprofundada para compreensão dessa dinâmica, aponta para a dificuldade no controle social.

Os argumentos a favor da gestão por OS não se constituem unânimes, mas questionáveis e questionados. O primeiro seria o fato de que as contratações e processos envolvendo as OS desprezam os princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade (Lei nº 8.666/1993), da regra do concurso público. Além disso, conceitos como autonomia e controle social não são praticados naturalmente em um contexto em que as decisões não se mostram participativas ou discutidas, mas tomadas de forma arbitrária pelos governos1414 Fernandes LEM. Gestão de recursos humanos em hospitais estaduais sob contrato com organizações sociais de saúde [dissertação]. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo; 2017. (p. 44).

Observa-se na gestão por OSS dos serviços públicos de saúde do Brasil clara atuação mercadológica na execução de serviços essenciais prestados pelo SUS. Sestelo1515 Sestelo JAF. Empresariamento. In: Lima JCF, organizador. Dicionário de empresas, grupos econômicos e financeirização na saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2018. p. 148-153. (p. 148-149) situa as OSS como modelos de empresas do terceiro setor e define o termo empresariamento como “um neologismo que se refere à transformação em atividade empresarial de processos econômicos que anteriormente transcorriam sob outras formas de organização institucional”. Braga1616 Braga IF. Entidades empresariais e a Política Nacional de Saúde: da cultura de crise à cultura da colaboração [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2012. concorda com a ideia ao dizer que

[...] as forças políticas empresariais atuantes na área da saúde, valendo-se da cultura de crise, abriram caminho para um pacto de colaboração com as forças sociais em defesa dos valores, ideias e práticas instituídos pelo movimento sanitário. Esse processo, em última análise, promove o enfraquecimento das lutas pelo SUS como sistema público de saúde universal e regulado pelo controle social, bem como do ideário mais amplo da proposta de Reforma Sanitária, de democratização da saúde pela intersetorialidade e pela mudança da cultura médica e tecnológica centrada nos interesses empresariais1616 Braga IF. Entidades empresariais e a Política Nacional de Saúde: da cultura de crise à cultura da colaboração [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2012. (p. 168).

Mesmo que o estado de São Paulo possa ter mecanismos de controle de resultados e qualidade previstos nos CG, as OSS absorvem cada vez mais recursos com contrapartida insuficiente na oferta de serviços à população, já que não se pode contar que serviços que são normalmente ofertados permaneçam sendo disponibilizados nos estabelecimentos de saúde. Chamou atenção a grande quantidade de exclusões de especialidades não médicas, em especial o serviço social, a psicologia e a nutrição, que juntos foram excluídos em 75 repactuações, demonstrando falta de compromisso tanto do poder público quanto das OSS, pois são serviços essenciais na qualidade da assistência integral prestada à população, considerando a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”, conceito dado pela Organização Mundial da Saúde. Sobre esse aspecto, ressalta-se a mudança do paradigma de saúde em curso desde a década de 1960:

[...] a frustração com os resultados da biomedicina, crescentemente caudatária do complexo médico industrial, e responsável ela própria por provocar riscos e danos, fez com que surgisse [...] em várias partes do mundo ocidental, um pensamento crítico ao modelo e voltado para revalorizar as dimensões sociais e culturais determinantes do processo saúde-enfermidade, ultrapassando o foco exclusivo de combater a doença somente depois de instalada1717 Carvalho AI, Buss PM. Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014. p. 121-142. (p. 131).

No entanto, as OSS parecem não levar em conta esse novo paradigma, uma vez que excluem serviços diretamente relacionados a fatores determinantes e condicionantes da saúde1717 Carvalho AI, Buss PM. Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014. p. 121-142., como serviço social e psicologia. Sob o argumento não comprovado de maior eficácia e eficiência, bem como de maior competência na utilização dos recursos públicos, as OSS gozam ainda de grande flexibilidade na compra de equipamentos, materiais e insumos, assim como na contratação de profissionais, o que pode agilizar os processos administrativos na gestão de um serviço de saúde mas também pode fragilizar regras da administração pública e os princípios constitucionais da impessoalidade e da legalidade e a obrigatoriedade do concurso público.

A autonomia das OSS na utilização de recursos públicos precisa ser questionada e monitorada com mais rigor. É necessário ampliar em quantidade e qualidade os estudos sobre gestão dos serviços públicos de saúde por essas entidades, tendo em vista as evidências apontadas.

Delegar às organizações sociais de saúde a execução de serviços públicos que promovam o direito à saúde pode significar retrocessos nas propostas de mudanças nos paradigmas do setor Saúde almejadas no importante movimento da Reforma Sanitária Brasileira.

Referências

  • 1
    Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil [Internet]. 1988. [acessado 2017 ago 4]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf
    » http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
  • Publicado
    10 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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