Condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde em um contexto de saúde digital: velhos e novos desafios

Condiciones de trabajo de las agentes comunitarias de salud en un contexto de salud digital: viejos y nuevos desafíos

Romário Correia dos Santos Lenira Ferreira Ribeiro Cláudia Fell Amado Lívia Milena Barbosa de Deus e Méllo Liliana Santos Sobre os autores

Resumos

O uso de ferramentas da saúde digital tem sido intensificado na Atenção Primária à Saúde (APS) e nas práticas de agentes comunitários de saúde (ACS). Este artigo tem como objetivo analisar os desafios impostos pelas condições de trabalho dos ACS no contexto da saúde digital. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com triangulação de métodos envolvendo lideranças sindicais, gestores e profissionais da saúde. Os resultados apontam uma reedição de velhos desafios em torno do trabalho dos ACS, como maior burocratização, controle, divisão social e técnica. Porém, novos desafios emergem em torno da manutenção, da qualidade dos instrumentos e da formação profissional. Conclui-se demarcando a necessidade de uma garantia logística, financeira e política para a implementação da saúde digital no trabalho dos ACS.

Palavras-chave
Atenção primária à saúde; Agentes comunitários de saúde; Condições de trabalho; Saúde digital; Trabalho


El uso de herramientas de la salud digital se ha intensificado en la Atención Primaria de la Salud (APS) y en las prácticas de Agentes Comunitarias de Salud (ACS). El objetivo de este artículo es analizar los desafíos impuestos por las condiciones de trabajo de las ACS en el contexto de la salud digital. Se trata de una investigación cualitativa, con triangulación de métodos, envolviendo liderazgos sindicales, gestores y profesionales de la salud. Los resultados señalan una reedición de viejos desafíos alrededor del trabajo de las ACS, tales como mayor burocratización, control, división social y técnica. Sin embargo, surgen nuevos desafíos alrededor del mantenimiento, calidad de los instrumentos y formación profesional. Se concluye demarcando la necesidad de una garantía logística, financiera y política para la implementación de la salud digital en el trabajo de las ACS.

Palabras clave
Atención primaria de la salud; Agentes comunitarios de salud; Condiciones de trabajo; Salud digital; Trabajo


Introdução

Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são profissionais de nível médio com reconhecida atuação no desenvolvimento e no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS), por meio de um processo de trabalho baseado em práticas de cuidado, vigilância, comunicação e educação em saúde, além de uma atuação intersetorial e territorializada11 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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A institucionalização da profissão dos ACS no Brasil foi acompanhada por transformações não apenas políticas, mas técnicas e materiais como categoria profissional, seja pelo alcance de direitos trabalhistas, como piso salarial, provimento por concurso público ou uma lei da profissão22 Morosini MV, Fonseca AF. Os agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saude Debate. 2018; 42 Spec No 1:261-74. ; seja pela formulação de diretrizes e orientações para uma formação de nível técnico33 Méllo LMBD, Santos RC, Albuquerque PC. Agentes comunitárias de saúde com ensino superior: normas, saberes e currículo. Trab Educ Saude. 2022; 20:e00517188. ou até incremento de novos instrumentos materiais na rotina de seu trabalho, como medidor de glicemia, tensiômetro, tablet, computador, sistemas de informação na saúde e, mais recentemente, a intensificação do uso do telefone celular na pandemia de Covid-1911 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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,44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220..

Salienta-se que esses últimos instrumentos baseados em tecnologias digitais, além de revestir os ACS de uma nova morfologia prática e social, também teriam a capacidade de potencializar antigos ou imprimir novos contornos de precarização do ponto de vista das condições de trabalho, inclusive com o risco de esvaziamento do sentido do trabalho. O resultado final seria a captura do trabalho vivo em ato por um trabalho morto44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220.,55 Ferreira VSC, Andrade CS, Franco TB, Merhy EE. Processo de trabalho do agente comunitário de saúde e a reestruturação produtiva. Cad Saude Publica. 2009; 25(4):898-906. .

No que se refere à precarização do trabalho, é necessário contextualizar que sua expansão no mundo se dá a partir de 1970, impulsionada por uma crise estrutural do modelo de produção capitalista, bem como dos princípios do estado de bem-estar social66 Souza DO. A funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado por plataformas digitais. Rev Katálysis. 2022; 25(2):383-91. . Surge nesse contexto um novo modelo de desenvolvimento pautado em retrocessos trabalhistas e perdas de direitos com fortalecimento do neoliberalismo77 Andrade DP. O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais. Rev Soc Estado. 2019; 34(1):211-39.. Salienta-se que a configuração atual da precarização da classe trabalhadora não converge apenas em direitos e segurança trabalhista em torno de vínculo, remuneração e previsibilidade, mas “coaduna elementos econômicos, sociais, políticos e jurídicos que ratificam a exploração do trabalho”88 Souza DO. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00311143. (p. 2), ou seja, a precarização está associada às condições objetivas e subjetivas de um determinado processo de trabalho nos quais os trabalhadores exercem determinada atividade99 Maciel RHMO, Santos JBF, Rodrigues RL. Condições de trabalho dos trabalhadores da saúde: um enfoque sobre os técnicos e auxiliares de nível médio. Rev Bras Saude Ocup. 2015; 40(131):75-87..

Segundo Morosini1010 Morosini MVGC. Precarização do trabalho: particularidades no setor saúde brasileiro. Trab Educ Saude. 2016; 14 Supl 1:5-7., o trabalho em saúde, nas configurações contemporâneas do capitalismo, é atravessado por uma tensão que preconiza racionalização dos recursos, otimização dos resultados e simplificação das atividades, o que de certa forma também lhe impõe um processo de precarização. No entanto, essa precarização não atinge os trabalhadores de uma forma ampla e igualitária, ela reflete as próprias especificidades das categorias de acordo com sua formação, suas atribuições, o valor social e a organização.

No caso do trabalho dos ACS, por exemplo, o cenário de incorporação tecnológica na APS traz como necessidade a utilização de novos recursos digitais que possibilitem a execução das atividades de televigilância, telemonitoramento, tele-educação e coleta de dados por aplicativos ou dispositivos móveis. Há iniciativas internacionais e nacionais para o avanço desses recursos no setor saúde e as vantagens são extensamente documentadas para o processo de trabalho dos ACS, como ampliação da cobertura, qualificação do cuidado territorial e descentralização de diagnósticos e exames44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220.. Tal conjuntura tecnológica associa os ACS na APS a um novo paradigma de cuidado entendido atualmente como saúde digital, no qual, segundo Rachid et al.1111 Rachid R, Fornazin M, Castro L, Gonçalves LH, Penteado BE. Saúde digital e a plataformização do Estado brasileiro. Cienc Saude Colet. 2023; 28(7):2143-53. :

[...] é apresentada como um campo de prática que emprega novas tecnologias, como dispositivos móveis e vestíveis, bem como processos interconectados a distância. (p. 2144)

Apesar das importantes contribuições da saúde digital nas práticas dos ACS, chama a atenção que seu processo de trabalho parece se adaptar a um novo estágio de reestruturação produtiva do capital que desloca, depois de mais de trinta anos de existência dessa profissão no Brasil, sua atuação territorial para uma interação mediada por tecnologias digitais que precisa ser mais bem compreendida44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220.. Haja vista que um determinado processo de trabalho não é estático no tempo, mas aberto às novas possibilidades segundo necessidades históricas impostas pelo cotidiano dos serviços1212 Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6..

Existe um consenso na literatura de que faltam elementos que possam subsidiar a decisão política de incorporação tecnológica na APS, embora seja crescente o nível de financiamento dessas tecnologias nos sistemas nacionais de saúde1313 Santos AF, Fonseca SD, Araujo LL, Procópio CSD, Lopes ÉAS, Lima AMLD, et al. Incorporação de Tecnologias de Informação e Comunicação e qualidade na atenção básica em saúde no Brasil. Cad Saude Publica. 2017; 33(5):e00172815., com um aumento de demanda pela sociedade, Estado e mercado1414 Moraes IHS, Gómez MNG. Informação e informática em saúde: caleidoscópio contemporâneo da saúde. Cienc Saude Colet. 2007; 12(13):553-65. . Não obstante, esse cenário se agrava ao considerar que essas evidências ausentes poderiam assegurar, também, um pleno exercício das capacidades e potencialidades da força de trabalho dos ACS44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220..

Os prejuízos desse vazio na literatura que discute as repercussões da incorporação tecnológica, como as provocadas pela saúde digital nos processos de trabalho dos ACS, se apresentam em duas perspectivas: a primeira aponta o risco de uma incorporação acrítica, sobretudo impulsionada pelos interesses do setor privado na arena das políticas públicas, desconsiderando sua influência na vida dos trabalhadores1515 Paula AC, Maldonado JMSV, Gadelha CAG. Healthcare telemonitoring and business dynamics: challenges and opportunities for SUS. Rev Saude Publica. 2020; 54:65.. A segunda perspectiva aponta o pouco reconhecimento profissional dos ACS como trabalhadores estratégicos da saúde que precisam ser formados, apoiados e acompanhados, levando-se em consideração o modelo de Atenção à Saúde pelo qual se luta e o qual se disputa no Sistema Único de Saúde (SUS)11 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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Assim, este artigo tem como objetivo analisar os desafios impostos pelas condições de trabalho dos ACS no contexto da saúde digital.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa ancorada na interpretação dos significados que os sujeitos atribuem às suas experiências, seus comportamentos e valores. Esta pesquisa foi desenvolvida no estado da Bahia considerando os posicionamentos de lideranças sindicais, gestores e profissionais da saúde nos níveis estadual, municipal e local, por meio de uma triangulação de métodos1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8a ed. São Paulo: Hucitec; 2004. (Quadro 1).

Quadro 1
Atores, inserção e técnicas da produção de dados

Os dados foram produzidos entre junho e setembro de 2023, sendo realizada uma entrevista (semiestrutura) com representante do Conselho de Secretários Municipais de Saúde da Bahia (Cosems-BA), e duas entrevistas com o Sindicato de Agentes Comunitários de Saúde da Bahia (Sindacs-Ba). Para o município de Salvador-BA, entrevistou-se um representante da Coordenação de Atenção Primária à Saúde e, para o recorte local, duas profissionais de nível superior de uma unidade de Saúde da Família (uSF). Foram totalizadas seis entrevistas consideradas de informantes-chave1717 Bisol CA. Estratégias de pesquisa em contextos de diversidade cultural: entrevistas de listagem livre, entrevistas com informantes-chave e grupos focais. Estud Psicol (Campinas). 2012; 29 Supl 1:719-26.. Para complementação da produção dos dados, outras duas técnicas foram acionadas: a primeira, um grupo focal onde estavam presentes cinco ACS da mesma uSF que as enfermeiras entrevistadas como informantes-chave, e a segunda, um conjunto de observações não participantes do processo de trabalho dos ACS1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8a ed. São Paulo: Hucitec; 2004. (Quadro 1).

Como critério de elegibilidade dos participantes, foram considerados incluídos aqueles que trabalharam pelo menos um ano no cargo, gestores e representantes sindicais ou uSF para profissionais; e excluídos aqueles em readaptação de função ou em algum tipo de licença.

As entrevistas tiveram em média cinquenta minutos cada uma e o grupo focal, noventa minutos, sendo realizadas em salas reservadas onde estavam presentes apenas dois pesquisadores e os participantes de cada técnica. Esses responderam a questionamentos sobre a saúde digital e ferramentas tecnológicas de comunicação e informação usadas no processo de trabalho dos ACS; vantagens, desvantagens e condições de trabalho no contexto das tecnologias digitais; além de relações de força, formação e perspectivas do processo de trabalho dos ACS com o uso de tais tecnologias. Salienta-se que os discursos obtidos foram gravados por um aparelho digital com posterior transcrição e revisão.

A observação não participante do processo de trabalho dos ACS teve uma carga horária total de trinta horas, também realizada por dois pesquisadores, e foram consideradas, nessa estratégia, as formas e expressões com que os ACS interagiam com as tecnologias digitais no cotidiano do trabalho. O diário de campo foi uma técnica transversal de produção dos dados para todos os sujeitos da pesquisa, servindo como meio de registro das reflexões sobre os sentidos vivenciados e construídos no decorrer do trabalho que posteriormente auxiliaram a interpretação dos dados1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8a ed. São Paulo: Hucitec; 2004..

Por fim, a partir do momento em que as informações obtidas apresentaram redundância, foi suspensa a produção de novos dados uma vez que foi considerado haver saturação teórica1818 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica. 2008; 24(1):17-27. .

Os dados obtidos foram sistematizados com base na análise de conteúdo obedecendo a três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, com sua organização temática1919 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. e posterior interpretação à luz do significado das condições de trabalho que se expressa para uma precarização ou não, levando em consideração seus aspectos objetivos, como vínculo, contratação, remuneração, outros direitos trabalhistas, além do ambiente físico, químico e biológico, condições de higiene, segurança e características gerais dos postos de trabalho; e seus aspectos subjetivos que se relacionam à divisão do trabalho, ao conteúdo da tarefa, ao sistema hierárquico e às modalidades de comando, de relações de poder e legitimidade social do trabalho99 Maciel RHMO, Santos JBF, Rodrigues RL. Condições de trabalho dos trabalhadores da saúde: um enfoque sobre os técnicos e auxiliares de nível médio. Rev Bras Saude Ocup. 2015; 40(131):75-87..

O projeto que deu origem ao estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e está registrado na Plataforma Brasil sob o n. CAAE: 68844323.3.0000.5030. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como de autorização e cessão de direitos de imagem.

Resultados e discussões

A animação diante das pretensas vantagens da saúde digital2020 Van-de-Vijver S, Tensen P, Asiki G, Requena-Méndez A, Heidenrijk M, Stronks K, et al. Digital health for all: how digital health could reduce inequality and increase universal health coverage. Digit Health. 2023; 9:1-6. não pode caracterizar um processo de incorporação acrítica e deslocada da realidade, sendo preciso conhecer e debater seus limites, riscos e questões éticas, seja para promover uma melhor assistência à saúde, seja para qualificar os processos de trabalho em saúde2121 Modolo L. Para construir uma teoria crítica da Saúde Digital [Internet]. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos Fiocruz Antônio Ivo de Carvalho; 2023 [citado 5 Fev 2024]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=para-construir-uma-teoria-critica-da-saude-digital
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. Aqui, especificamente, faremos um recorte para os ACS no SUS e a sua posição social e historicamente delimitada dentro do mercado de trabalho na APS. Assim, apresentamos os resultados e as discussões sob as perspectivas de velhos e novos desafios em torno das condições materiais e imateriais do trabalho dos ACS.

Os velhos desafios do processo de trabalho dos ACS na saúde digital: burocratização, controle e divisão social e técnica do trabalho

Historicamente, o processo de trabalho dos ACS tem sido tensionado em torno dos rumos em disputa da política de saúde no Brasil, com fortes perdas dos instrumentos imateriais do seu trabalho, como escuta ativa, competência cultural e vínculo2222 Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, Sociedade e História: Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo: Hucitec; 2017. e intensificação de elementos característicos do trabalho industrial e gerencial11 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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Na nova realidade de processo de trabalho dos ACS mediado por tecnologias digitais, sobretudo com o uso de tablet (Figura 1) como instrumento material para coleta de dados e produção de relatórios, parece haver um estranhamento do trabalho dos ACS associado ao aumento da sua burocratização. Segundo representante do Sindacs-BA:

Figura 1
ACS utilizando o tablet em uma visita domiciliar.

Isso tira todo o processo de trabalho que foi criado na época [...] lá em 92, que era a questão da promoção, a prevenção da saúde, onde você se preocupava com o peso das crianças [...] que você ia lá no cartão de vacina, você pesava [...]. Então tudo isso foi deixando [...] para hoje se trabalhar a questão de quantas gestantes foram atendidas no mês, quantos hipertensos foram atendidos no primeiro trimestre? Hoje está preocupado mais com um banco de dados, com o fornecimento de informação [...] Hoje não se pode mais fazer aquilo, porque você fica muito preso ao tablet, tem que comprovar lá a visita, comprovar lá o dado [...] se você não fizer o Ministério corta recurso, o município não quer pagar e vira aquela confusão.

(Sindacs-BA1)

Sabe-se que o trabalho apresenta centralidade na constituição dos homens, e as características peculiares do seu saber-fazer os distinguem dos animais, não pelo modo de produção, mas pela sua criatividade e imagem-objetivo1212 Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6.,2323 Marx K. O Capital, crítica da economia política. Livro 1. São Paulo: Bertrand Brasil/DIFEL; 1987. Vol. 1 e 2.. Todavia, o discurso acima revela que o uso de uma determinada tecnologia digital tem produzido intencionalidade nas atividades (Figura 1) do processo de trabalho dos ACS, relacionando-a ao alcance de metas por meio de uma indução financeira2424 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC. Conjuntura política brasileira e saúde: do golpe de 2016 à pandemia de Covid-19. Saude Debate. 2022; 46(134):842-56. .

Cenário parecido de indução do trabalho por uma tecnologia digital também foi relatado no estudo de Fonseca e Mendonça2525 Fonseca AF, Mendonça MHM. Parcelarização e simplificação do trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Rev Latinoam Estud Trab. 2015; 20(33):29-57. sobre o uso de Sistemas de Informação em Saúde (SIS) pelos ACS. Segundo as autoras, tal dispositivo:

[...] relaciona-se ao conteúdo e à finalidade do trabalho, visto que ele delimita aspectos para os quais deve convergir a atenção do profissional. O sistema instrui o profissional sobre os elementos em torno dos quais ele deverá organizar o seu trabalho a fim de produzir um determinado dado, cujo preenchimento lhe será cobrado pela gestão2525 Fonseca AF, Mendonça MHM. Parcelarização e simplificação do trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Rev Latinoam Estud Trab. 2015; 20(33):29-57.. (p. 46)

Dessa forma, desvaloriza-se a função social e mobilizadora dos ACS2626 Pedebos LA, Rocha DK, Tomasi Y. A vigilância do território na atenção primária: contribuição do agente comunitário na continuidade do cuidado. Saude Debate. 2018; 42(119):940-51. por induzir uma redução objetiva e subjetiva do que é exercido no território e transpassado na forma de relatórios digitados e registrados em tais sistemas.

O discurso acima também pode ser compreendido à luz das contribuições de Mendes-Gonçalves2222 Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, Sociedade e História: Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo: Hucitec; 2017., quando se evidencia a historicidade do trabalho em saúde verificada pela transformação de seus objetos e finalidades ao longo dos anos. É possível identificar a reconfiguração dos instrumentos de trabalho e a produção de uma nova lógica de atuação no território e do próprio cuidado. O acionamento de recursos materiais ou imateriais no trabalho dos ACS exprime um modo de existência que está em permanente mudança, contradição ou tensionamento, no modelo de Atenção à Saúde em que, por consequência, se observa um estranhamento do trabalho dos ACS pelo não reconhecimento de suas novas atividades2727 Nogueira ML. Expressões da precarização no trabalho do agente comunitário de saúde: burocratização e estranhamento do trabalho. Saude Soc. 2019; 28(3):309-23., gerando assim perda da identidade individual e coletiva por uma coerção pelo medo; nesse caso, do não repasse financeiro2828 Damascena DM, Vale PRLF. Tipologias da precarização do trabalho na atenção básica: um estudo netnográfico. Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00273104..

Ainda como agravante para a conjuntura de uso das tecnologias no esteio da saúde digital, informantes-chave da gestão municipal e da uSF investigada trazem elementos do controle do trabalho dos ACS que saem de uma supervisão profissional comum da relação de profissionais de nível superior-médio para uma supervisão mediada por tecnologia.

[...] o dado que ele registra, só entra se ele estiver na área, naquela residência, se ele não tiver na residência ele não consegue alimentar a visita dele, entendeu? Se usa o geoprocessamento para isso. Então, aí isso já está gerando um problema pra gente, porque com o programa saúde na escola, eles além de estar desenvolvendo a atividade nas casas [...] também estão nas escolas [...] só que não conseguem registrar porque o tablet.

(Gestão municipal)

Eu acho que ajuda no sentido de que antes, se eu quisesse olhar o fichário, eu tinha que pedir ao agente de saúde, porque ficava guardado com eles [...]. Então é mais fácil de controlar, porque eu tenho acesso a tudo o que eles fazem.

(Enfermeira 2)

Os discursos acima e a observação não participante apontaram um constante monitoramento georrefenciado dos ACS que não reconhece suas atividades para além das visitas domiciliares in loco, que têm como finalidade do trabalho a geração de valor-informação2222 Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, Sociedade e História: Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo: Hucitec; 2017.. Gera-se assim uma possível subsunção dos ACS na sua forma de trabalho na APS, adaptações essas que têm a capacidade de esvaziar de sentido os objetos e as finalidades de atuação desses trabalhadores2929 Mészáros I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; 2011.,3030 Franco DS, Ferraz DLDS. Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cad EBAPEBR. 2019; 17 Spec No:844-56..

A uSF pesquisada apresenta um WhatsApp institucional no qual a comunidade adscrita tem acesso direto aos profissionais de saúde da unidade; os serviços ofertados nesse recurso tecnológico são:

[...] o que dá pra fazer com teleconsulta é feito, renovação de receita de medicamentos de uso contínuo, em forma de contraceptivos, alguns exames [...]. Quando assim, só pra mostrar exame tal, eu peço, eu faço a teleconsulta, se tiver necessidade eu peço a vinda presencial.

(Enfermeira 2)

Uma segunda via de receita [...] pra falar alguma coisa [...] relatório médico. Ele (o paciente) tira uma foto e envia, o médico olha.

(Grupo focal - ACS5)

Porém, chama a atenção que, embora a comunidade tenha esse recurso adicional de acessar a equipe de saúde, os ACS foram proibidos na uSF de manusear a tecnologia institucional, sendo exclusiva para os profissionais de Ensino Superior responderem às demandas de saúde. As justificativas das enfermeiras reafirmam o lugar dos ACS numa posição social e técnica de trabalho de subordinação e de ainda um não lugar de profissional de saúde.

[...] Quando a gente começou a utilizar o WhatsApp como ferramenta, a gente não recebeu nenhum tipo de protocolo nem nada, então meio que foi se ajustando à rotina da unidade [...] os pacientes começaram a dar informações que às vezes são sigilosas [...] a gente precisou restringir pra gente (profissionais com ensino superior) [...]

(Enfermeira 1)

[...] Sigilo ético mesmo. [...] aí eu chamo o agente de saúde e mostro a conversa, ele responde e tal, mas ele não fica pra ver tudo [...]

(Enfermeira 2)

Essa perspectiva de divisão sociotécnica do trabalho dos ACS na equipe de saúde já é conhecida da literatura3131 Santos RCS, Méllo LMBD, Éricson S, Albuquerque PC. Agente comunitário de saúde ou “técnico de enfermagem comunitária”? Dilemas e disputas na profissionalização. Tempus Actas Saude Colet. 2021; 15(01):247-74., porém ainda não foi debatida em torno do uso do suporte das tecnologias digitais. Os discursos revelam a concretude de um não lugar dos ACS na equipe como profissional de saúde com pouca legitimidade, aproximando-se de uma forma de precarização subjetiva dessa categoria99 Maciel RHMO, Santos JBF, Rodrigues RL. Condições de trabalho dos trabalhadores da saúde: um enfoque sobre os técnicos e auxiliares de nível médio. Rev Bras Saude Ocup. 2015; 40(131):75-87. que a localiza dentro de uma luta de classes com concentração de poder3232 Feenberg A. Transforming technology: a critical theory revisited. New York: Oxford University Press; 2002.. Nesse sentido, o que se observa em torno dos ACS na saúde digital, nesta uSF, é um trabalho em equipe fundado em dominação, “ou seja, alguém detentor de um saber que propicia um modo de fazer que se torna poder na relação com os outros”3333 Almeida-Filho N. Competência tecnológica crítica em saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):667-71. doi: 10.1590/1807-57622018.0257.
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(p. 670).

Por fim, nas entrevistas em grupo focal, chama a atenção que nenhum ACS apresentou discurso que abordasse um sentido do processo de trabalho articulado a uma maior burocratização, controle ou até aumento de sua divisão técnica e social, divergindo de outros estudos internacionais44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220.. No entanto, as relações não reconhecidas pelos ACS foram perceptíveis nas entrevistas com os atores-chave deste artigo, bem como na própria observação do trabalho desses profissionais na unidade pesquisada, apontando um cenário de romantização da tecnologia por esses trabalhadores3434 Faria JH, Meneghetti FK. Burocracia como organização, poder e controle. Rev Adm Empres. 2011; 51(5):424-39.,3535 Lima MS. Trabalho, tecnologia e capital: determinações de uma relação destrutiva revestida pelo desenvolvimento [dissertação]. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; 2016..

Entendemos que as condições de trabalho e seu reflexo em uma precarização ou não das atividades que os ACS exercem se dão na medida em que são reafirmadas por uma intensificação dos velhos desafios dos rumos dessa categoria profissional, que se associa a uma disputa maior em torno do projeto de sociedade, cidadania e saúde11 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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,2424 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC. Conjuntura política brasileira e saúde: do golpe de 2016 à pandemia de Covid-19. Saude Debate. 2022; 46(134):842-56. ,2727 Nogueira ML. Expressões da precarização no trabalho do agente comunitário de saúde: burocratização e estranhamento do trabalho. Saude Soc. 2019; 28(3):309-23.. Como marcadores desse cenário apontam-se as novas formas de contratação dos ACS por organizações sociais, o desfinanciamento da saúde, a lógica de produção industrial na saúde, o tipo de modelo de Atenção à Saúde hegemônico com secundarização da ESF e da APS, além da não priorização dos ACS como atores para uma APS ampla, robusta e democrática11 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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. Assim, é preciso reconhecer, como um desafio para o século 21, uma necessária reforma sanitária que também deverá ser digital2121 Modolo L. Para construir uma teoria crítica da Saúde Digital [Internet]. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos Fiocruz Antônio Ivo de Carvalho; 2023 [citado 5 Fev 2024]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=para-construir-uma-teoria-critica-da-saude-digital
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Manutenção, qualidade dos instrumentos e formação profissional em tempos de saúde digital: os novos desafios

Para o desenvolvimento das atividades mediadas por tecnologias digitais, os ACS usam equipamentos eletrônicos, em especial telefones celulares e tablets. Nesse sentido, vale destacar que a qualidade dos equipamentos pode interferir de forma significativa no resultado do trabalho. Observações do trabalho dos ACS na uSF e emergidos nas entrevistas sinalizam como a perda da informação coletada por problemas nas tecnologias digitais gera prejuízos para a assistência à saúde, a longitudinalidade do cuidado e o planejamento territorial.

[...] tablets que chegaram com defeito, tablets que foram recolhidos e devolvidos só um ano depois [...]

(Sindacs-BA 1)

Não vai pra lugar nenhum [a informação da visita]. [...] eu fui hoje fiz uma visita [...] o médico foi comigo, verificou pressão, fez glicemia, deu orientação de medicação, olhou ele, tudo direitinho, aí pronto, acabou a visita ali, a visita não está registrada em papel, não está registrada em tablet, não está registrado em nada.

(Grupo focal - ACS3 com tablet quebrado e não reposto há 4 meses)

Quando eles estão sem tablets pra gente também é ruim porque a gente tem um portal desatualizado, de vez em quando eu acesso para buscar as crianças menores de 1 ano [...] e aí eu sempre vinha no portal para ver como era que estava, porque às vezes surgia crianças novas, mudanças de território e por pelos ACS estarem sem o tablet eu acabei deixando até de acessar o portal com a frequência que eu acessava antes, porque eu acho que eu só fiquei com 2 ACS que tem o tablet, o resto tava com tablet em manutenção.

(Enfermeira 2)

Os discursos convergem para a necessidade de aprimoramento da capacidade logística e financeira, como também da política de garantia das condições de trabalho para os ACS, com qualidade, eficiência e em tempo hábil. Após a implementação e a indução de uso do tablet no trabalho dos ACS, sua posterior retirada com morosidade na reposição parece incidir em todo o processo de trabalho da uSF, como apontado acima, produzindo perda de memória clínica e das condições de saúde dos usuários, o que pode acarretar procedimentos desnecessários e ineficientes3636 Pinto HA, Santana JSS, Chioro A. Por uma transformação digital que assegure o direito à saúde e à proteção de dados pessoais. Saude Redes. 2022; 8(2):361-71..

Adicionalmente, a morosidade de reposição também parece ocasionar sofrimento nos ACS, como uma nova expressão da precarização do trabalho na era digital.

Eu acho que dá sim uma angústia, eu sinto falta, eu realmente tenho necessidade do meu tablet, ele facilita muito e eu fico meia perdida [...].

(Grupo focal- ACS 2)

Segundo Ursine et al.3737 Ursine BL, Trelha CS, Nunes EFPA. O Agente Comunitário de Saúde na Estratégia de Saúde da Família: uma investigação das condições de trabalho e da qualidade de vida. Rev Bras Saude Ocup. 2010; 35(122):327-39. , as condições de trabalho precárias também são produtoras de sofrimento, e na conformação digital do trabalho dos ACS emergem novas possibilidades de adoecimento pela não materialidade dos seus instrumentos, carecendo de maiores pesquisas que possam dimensionar o impacto das tecnologias na qualidade de vida dos ACS e na sua satisfação com o trabalho.

Ao menos desde 2010, a OMS tem incentivado planos estratégicos de incorporação e avaliação da saúde digital nos sistemas nacionais de saúde, seja no âmbito da assistência do cuidado, formação dos profissionais, seja na gestão dos serviços44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220.. Dados de 2014 ressaltam que na América Latina alguns países já apresentam projetos de grande porte nessa área, como Brasil, Colômbia, Equador, México, Panamá3838 Santos AF, D’Agostino M, Bouskela MS, Fernandéz A, Messina LA, Alves HJ. Uma visão panorâmica das ações de telessaúde na América Latina. Rev Panam Salud Publica. 2014; 35(5/6):465-70.. No entanto, tal estratégia apresenta grande diversidade de implantação, tendo os municípios rurais apresentado os piores graus de informatização do seu sistema, o que pode ser refletido em dificuldades do acesso à internet, a equipamentos eletrônicos e capacitação dos profissionais nesses territórios3939 Cielo AC, Raiol T, Silva EN, Barreto JOM. Implementation of the e-SUS Primary Care Strategy: an analysis based on official data. Rev Saude Publica. 2022; 56:5. , como apontado nos discursos abaixo.

[...] Você vê que as pessoas trabalham no tablet o dia todo, não tem como sincronizar as informações porque não tem internet, o local que trabalha a internet não chega, isso é o pior possível. [...] acho que é o maior problema [...]

(Sindacs-BA 2)

[...] a gente encontra muito, principalmente no interior, nas cidades mais afastadas, onde você tem uma categoria com uma certa idade [...] acima de 50 anos, e ali se tornou [...] uma dificuldade de você querer que a pessoa aprenda imediatamente o manuseio de um tablet, aonde ninguém nunca tinha visto, estava vendo ali pela primeira vez. [...] você tem que se preocupar com internet, sincronizar os dados, digitar ali, as letras bem pequenininhas.

(Sindacs-BA 1)

O ACS acabou assumindo esse papel de coletar informações [....] e boa parte do monitoramento das condições de saúde coletadas [...] o grande problema [...] pouco do que é tratado destes dados retorna para as ACS e isso é um prejuízo [...] imagine um profissional que detém um vínculo com a comunidade [...] mas a informação não retorna para que ele planeje suas ações.

(Cosems-BA)

Sobre o uso da internet pelos trabalhadores, pesquisas apontam que apenas aproximadamente 35% das equipes participantes do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica tinham acesso à internet4040 Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saude Debate. 2018; 42 Spec No 1:208-23. , o que leva a supor que a democratização do seu acesso, mesmo para trabalhadores do SUS, ainda é uma agenda inconclusa.

Percebe-se também, nos discursos, um conjunto de desafios relacionados a habilidades pessoais para o uso de tecnologias digitais, conhecimento que até então não era exigido como pré-requisito para o trabalho dos ACS. Por exemplo, a destreza para o uso de recursos e ferramentas tecnológicas é mais presente em pessoas com maior nível de escolaridade e mais jovens, o que pode reforçar uma barreira de acesso em relação ao desenvolvimento de atividades funcionais4141 Moretti FA, Scazufca M, Nakamura CA, Souza CHQ, Seward N, Araya R, et al. Use of WhatsApp by older adults screened for depression in socioeconomically deprived areas of Guarulhos, São Paulo State, Brazil: challenges and possibilities for telehealth. Cad Saude Publica. 2022; 38(12):e00093422..

A conformação profissional dos ACS em todo território nacional é diversa, múltipla, com trabalhadores ainda remanescentes de outra realidade de trabalho, em que o único requisito para ingressar na categoria era ler e escrever na década de 199011 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, Felipe DA, Queirós AAL. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e210306. doi: 10.1590/interface.210306.
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. Atualmente, tais ACS, além de apresentarem maior idade, podem permanecer com os menores níveis de escolaridade, carecendo de estratégias específicas de alfabetização digital, por exemplo. Pesquisas já apontam que ACS tinham, além de pouco conhecimento em trabalhar com recursos digitais, um sentimento de medo na busca por informações na internet, o receio de compartilhar notícias falsas pela limitada compreensão crítica da notícia4242 Paixão PBS, Freire VP, Lima MFM, Linhares RN, Mendonça AVM, Sousa MF. A prática de alfabetização em Informação e Comunicação em Saúde: o olhar dos agentes comunitários de Saúde sobre o projeto de Inclusão Digital em Sergipe, Brasil. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):937-46. doi: 10.1590/S1414-32832011000300029.
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Levando em consideração o fenômeno das notícias falsas que aumentaram nos últimos anos, impactando consideravelmente os rumos da pandemia da Covid-19 no Brasil4343 Barreto MS, Caram CS, Santos JLG, Souza RR, Goes HLF, Marcon SS. Fake news about the COVID-19 pandemic: perception of health professionals and their families. Rev Esc Enferm USP. 2021; 55:e20210007., é preciso priorizar, na Educação Permanente dos ACS, a criação e o desenvolvimento de uma competência tecnológico-crítica, articulada com o território e com a sensibilidade cultural3333 Almeida-Filho N. Competência tecnológica crítica em saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):667-71. doi: 10.1590/1807-57622018.0257.
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Rachid et al.1111 Rachid R, Fornazin M, Castro L, Gonçalves LH, Penteado BE. Saúde digital e a plataformização do Estado brasileiro. Cienc Saude Colet. 2023; 28(7):2143-53. afirmam que a saúde digital se configura como um campo de pesquisa urgente para a Saúde Coletiva por estabelecer novas relações entre sociedade, profissionais da saúde, Estado e capital. Nesse sentido, cabe questionar o futuro do trabalho dos ACS na saúde digital: Existe o risco da extinção da profissão de ACS pelo uso da tecnologia digital? Diante desse questionamento, Barros4444 Barros A. Para além de Prometeu? Crítica às teorias de superação do trabalho pela tecnologia no contexto da acumulação destrutiva [dissertação]. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; 2009. aponta que se a conjuntura política, econômica e social internacional para o mundo do trabalho prossegue capitalista, o homem continuará indispensável na produção de riqueza. Nessa linha de raciocínio e considerando a complexidade do objeto saúde e a necessidade inquestionável de um conjunto de abordagens para a sua garantia, o trabalho dos ACS permaneceria indispensável, porém associado a novas formas de precarização44 Santos RC, Silva LIM, Santos LDPJ, Méllo LMBD, Santos L. O uso de tecnologias digitais nas práticas de trabalhadores comunitários de saúde: uma revisão internacional de escopo. Trab Educ Saude. 2023; 21:e02146220..

Por fim, como estratégia de superação aos desafios aqui discutidos, é preciso reafirmar a implementação de políticas de gestão do trabalho e de educação na saúde que reconheçam o valor social do trabalho humano. No caso dos ACS, isso se dará com a execução de programas e ações que possibilitem o pleno exercício do seu trabalho, contemplando condições adequadas, regulação profissional, segurança e estabilidade de vínculos nos territórios, relações de trabalho saudáveis, além de Educação Permanente da categoria.

Considerações finais

As questões identificadas no percurso deste estudo em torno das condições de trabalho dos ACS no contexto da saúde digital se configuram como velhos desafios que se relacionam diretamente com a constituição histórico-social dessa categoria, como a burocratização, o controle e a divisão técnica e social do trabalho que se conformam subjetivamente na constituição desses trabalhadores e seu reconhecimento ou não como profissionais de saúde. Por outro lado, novos desafios surgem, como o uso da internet, a manutenção e a qualidade dos equipamentos e a alfabetização digital.

Os resultados apontam a necessidade de garantias logística, financeira e política para a implementação da saúde digital na APS que deem condições de produção de um processo de trabalho digno, emancipatório e contextualizado para os ACS. Não obstante, é preciso considerar, no novo cenário de atuação profissional desses profissionais, a formação de uma competência tecnológica crítica que transforme os ACS não apenas em coletores de informações por meio dos recursos digitais, mas em agentes de saúde implicados com a transformação da realidade socioepidemiológica do território.

Embora este trabalho tenha sido realizado com um recorte específico de atuação territorial de uma uSF do município de Salvador, podendo ser um limite do estudo trazendo contribuições em nível local e estadual, espera-se que outras pesquisas possam ser desencadeadas levando-se em consideração os diversos contextos e cenários de atuação dos ACS, bem como seu perfil sociodemográfico.

  • Santos RC, Ribeiro LF, Amado CF, Méllo LMBD, Santos L. Condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde em um contexto de saúde digital: velhos e novos desafios. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230548 https://doi.org/10.1590/interface.230548
  • Financiamento

    A pesquisa recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio de bolsa de Mestrado (código de financiamento 001) concedida a Romário Correia dos Santos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2023
  • Aceito
    04 Fev 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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