ARTIGO ARTICLE
Juvenal S. Dias da Costa1 | Assistência médica materno-infantil em duas coortes de base populacional no Sul do Brasil: tendências e diferenciais Maternal and child care in two population-based cohorts from southern Brazil: trends and differences |
1 Departamentos de Medicina Social e Materno-Infantil, Universidade Federal de Pelotas. C.P. 464, Pelotas, RS 96001-970, Brasil. | Abstract Two cohort studies of mothers and children (1982 and 1993) were used to document changes in health care utilization patterns. The cohorts included all hospital deliveries in the city of Pelotas, Southern Brazil, for the two years. Some 20% of the mothers and children were visited at home at a median interval of one year later. However, there was a reduction in the percentage of mothers seeking care after the fifth month of pregnancy. The mean number of prenatal consultations increased to 7.6. Prenatal care indicators were significantly worse for low-income and high-gestational-risk women. In 1993, caesarean sections accounted for 31% of deliveries. The proportions of deliveries assisted by medical doctors increased to 88%. Low-income and high-risk mothers were less likely to have a caesarean section or to be assisted by a medical doctor. Over half of the deliveries in the highest income group were caesareans. Vaccine coverage at 12 months increased over the decade. Socioeconomic differentials were also observed. The mean number of medical consultations during the first year of life decreased to 10.5, mainly due to a drop in preventive care. Although most health care indicators improved over the course of the decade, health services are still biased towards those who least need them. Key words Medical Care; Prenatal Care; Vaccination; Delivery; Child Health Resumo Os padrões de utilização de serviços de saúde durante a gestação, o parto e o primeiro ano de vida foram analisados em duas coortes de mães e crianças, em 1982 e 1993. As coortes incluíram todos os nascimentos hospitalares ocorridos em Pelotas, Rio Grande do Sul, assim como o acompanhamento prospectivo de amostras de cerca de 20% das crianças. Reduziu-se o percentual de mães que buscaram atendimento após o quinto mês de gestação. O número médio de consultas pré-natais cresceu para 7,6. Os indicadores de assistência pré-natal foram significativamente piores para mães de baixa renda familiar e para aquelas com alto nível de risco gestacional. Em 1993, cesarianas foram realizadas em cerca de 31% dos partos, contra 28% em 1982. Os partos atendidos por médicos aumentaram para 88%. Mães pobres e de alto risco tiveram menores índices de cesarianas e de atendimento médico. As coberturas vacinais das crianças cresceram durante a década. O número médio de consultas das crianças, decresceu de 12,0 para 10,5, principalmente às custas da redução nas consultas preventivas. Embora a maior parte dos indicadores tenha mostrado progresso durante a década, os serviços de saúde seguem concentrando seus esforços nas camadas da população que deles menos necessitam. |
Introdução
Nas duas últimas décadas, as políticas de assistência médica em nosso país atravessaram importantes mudanças. Há necessidade premente de estudos de base populacional que possam revelar o impacto destas mudanças sobre o nível de utilização de serviços e sobre a cobertura atingida por diversos programas.
No presente artigo, são avaliadas as mudanças ocorridas entre 1982 e 1993 no atendimento à saúde de mães e crianças residentes em Pelotas, RS. Após 1982, o sistema de saúde da cidade foi transformado pelas diversas reformas proporcionadas pelas políticas nacionais setoriais (Medici, 1994). Assim, particularmente entre 1985 e 1988, diversos postos de saúde foram implantados para levar assistência médica à periferia da cidade. O Plano Municipal de Saúde, elaborado ao final de 1987, planejado com base na regionalização e hierarquização, foi estruturado a partir de três níveis de atendimento:
Primeiro nível: Constituído por postos de saúde com médicos e outros profissionais, servindo como porta de entrada do sistema e do desenvolvimento de ações básicas de saúde. No final da década de 80, existiam 37 postos na zona urbana e 12 zona rural.
Segundo nível: Integrado por cinco ambulatórios de especialidades, ligados às universidades e hospitais. Cada ambulatório deveria servir de referência para um determinado segmento geográfico (grandes bairros) da cidade, embora, na realidade, nunca tenha existido a regionalização e hierarquização destes serviços.
Terceiro nível: Constituído pelos seis hospitais conveniados da cidade, sendo dois universitários e quatro filantrópicos, dos quais, dois eram hospitais gerais e dois psiquiátricos.
A existência de duas faculdades de Medicina na cidade, com cerca de 900 estudantes, leva ainda a uma alta prevalência de médicos na população: um para cada 260 habitantes.
Concomitantemente à ampliação da rede municipal de serviços de saúde, durante a década, programas preventivos na área materno-infantil foram elaborados e implementados. Houve a preocupação do Ministério da Saúde em normatizar o Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança, estabelecendo suas principais atividades nas áreas de Acompanhamento do Crescimento e Desenvolvimento, Aleitamento Materno, Imunizações, cuidados com os pacientes com doenças diarréicas e doenças respiratórias agudas.
No presente artigo, avaliou-se o impacto dessas mudanças sobre a utilização e cobertura de programas materno-infantis.
Metodologia
A assistência à saúde foi avaliada para as coortes de mães e crianças de 1982 e 1993. Detalhes da metodologia do estudo encontram-se no primeiro artigo do presente suplemento (Victora et al., 1996) e em publicações adicionais (Barros et al., 1990; Victora et al., 1996; Victora et al., 1989). Os dados referentes à assistência médica foram colhidos durante os estudos perinatais e os acompanhamentos aos 12 meses para 1982, e aos seis e 12 meses para 1993.
Nos estudos perinatais, todas as crianças nascidas nos hospitais da cidade - onde mais de 99% dos partos são hospitalares - foram recrutadas através de visitas diárias às maternidades da cidade. As mães foram entrevistadas por médicos e estudantes de Medicina a respeito do atendimento pré-natal e ao parto. Foram também colhidos dados sobre fatores de risco para a gestação, incluindo idade materna e número de gestações, renda familiar, fumo, estatura, se vive com marido ou companheiro, presença de diabetes, história prévia de aborto, perda perinatal ou filho de baixo peso. Estes fatores de risco foram ponderados e somados, conforme uma metodologia desenvolvida na Inglaterra (Chamberlain, 1978) e adaptada ao nosso meio durante a pesquisa de 1982 (Victora et al., 1989). Por exemplo, uma gestante de 40 anos, com quatro filhos prévios, portadora de diabetes seria classificada como de alto risco, enquanto uma gestante de 25 anos, com apenas uma gestação anterior de parto normal apresentaria baixo risco.
Durante os estudos perinatais, coletaram-se ainda informações sobre os grupos de renda familiar e a filiação previdenciária. Para esta última variável, os critérios utilizados no estudo de 1993 não puderam ser comparados aos de 1982 em virtude das alterações ocorridas no sistema de saúde. A universalidade, implantada a partir de 1985, por exemplo, permitiu que toda a população independente de sua filiação previdenciária, residindo na zona urbana ou rural, utilizasse o sistema público de saúde. Portanto, em 1993 perguntou-se sobre a modalidade de pagamento pelo parto ao invés da filiação. Assim, a variável situação previdenciária se constituiu das seguintes categorias: particular (parto realizado por médico privado, com pagamento integral das despesas de hospital e profissionais pelo paciente), seguro saúde, INSS (utilização do sistema público ou credenciado disponível) e INSS+diferença (modalidade que utiliza parte do sistema público acrescido de cobrança suplementar).
Para a coorte de 1982, os dados sobre assistência durante o primeiro ano de vida foram coletados durante o primeiro estudo de acompanhamento. Este estudo, realizado no início de 1983, incluiu as crianças nascidas entre janeiro e abril de 1982, quando tinham em média cerca de um ano de idade. Quase 18% das crianças da coorte não puderam ser localizadas durante este estudo. Os dados de imunizações se referem ao segundo acompanhamento, realizado em 1984. Este teve como objetivo cobrir todas as crianças da coorte quando tinham em média cerca de 20 meses, havendo cerca de 13% de perdas.
Para 1993, os dados de assistência foram colhidos durante os estudos de acompanhamento dos seis e 12 meses de idade. Como estes estudos haviam sobreamostrado as crianças de baixo peso ao nascer, os dados foram ponderados para reproduzir a população geral. Os índices de perdas foram de cerca de 3% aos seis e 7% aos 12 meses.
A análise de dados inclui a comparação de médias através de análise de variância e teste do Qui-Quadrado para tabelas de contingência (Kirkwood, 1988).
Resultados
Os dados relativos à assistência pré-natal e ao parto dizem respeito a todos os nascimentos ocorridos em 1982 e 1993, incluindo natimortos. Os números de crianças estudadas foram respectivamente 6.011 e 5.304. Os números de mães e crianças em cada categoria de renda encontram-se no primeiro artigo do atual suplemento (Victora et al., 1996). Para os acompanhamentos da coorte de 1982, 1.556 crianças foram estudadas aos 12 meses e 5.165 aos 20. Em 1993, 1.414 foram estudadas aos seis meses e 1.364 aos 12.
A Tabela 1 mostra as alterações nos indicadores de assistência pré-natal e assistência ao parto entre os anos de 1982 e 1993. Observou-se um aumento na média de consultas durante o período pré-natal. Verificou-se, também, que um maior percentual de mulheres procuravam atendimento antes do quinto mês de gestação.
A Tabela 2 mostra os mesmos dados estratificados por renda, pelo escore de risco gestacional e pela situação previdenciária. Mulheres de baixa renda foram proporcionalmente as que menos procuraram cuidados de pré-natal, que tiveram a menor média de consultas e que buscaram assistência médica mais tardiamente. Os indicadores de assistência deste grupo de mulheres são piores do que para o conjunto de todas as mães de 1982.
Após a estratificação por níveis de risco gestacional, as mulheres de alto risco foram proporcionalmente as que menos receberam cuidados pré-natais, que apresentaram a menor média de consultas e que procuraram assistência médica mais tardiamente (Tabela 2). O mesmo foi observado para as mães que utilizaram os serviços do INSS.
A assistência prestada no momento do parto foi comparada para as duas coortes (Tabela 3). Verificou-se um marcado aumento no percentual de partos realizados por médicos e um aumento discreto no percentual, já elevado em 1982, de operações cesarianas. Os partos realizados por parteiras e estudantes caíram substancialmente.
A Tabela 4 mostra os diferenciais por renda, risco gestacional e situação previdenciária. Encontrou-se a mesma tendência verificada na assistência pré-natal: à medida em que aumentava a renda, o percentual de partos realizados por médicos crescia. Da mesma forma, os médicos foram responsáveis por uma maior proporção dos partos nas mulheres de baixo risco. Mesmo entre as mulheres de mais baixa renda, o percentual de partos realizados por médicos foi superior ao percentual global para 1982.
Como havia ocorrido em 1982, as operações cesarianas estiveram diretamente associadas com a renda familiar: mais da metade das crianças no grupo de alta renda nasceram de parto cirúrgico. Surpreendentemente, as mães que apresentavam maior risco foram menos freqüentemente submetidas a esse procedimento (28,4%) do que as de baixo risco (36,9%). Da mesma forma, a vinculação previdenciária (Tabela 2) revelou que as mulheres cujos partos foram realizados por médicos particulares ou que pagaram alguma diferença financeira foram muito mais freqüentemente submetidas aos riscos das operações cesarianas do que as usuárias dos serviços do INSS. Estas últimas foram também, proporcionalmente, menos assistidas por médicos.
A Tabela 5 comparou as coberturas vacinais entre 1982 e 1993. Vale lembrar que os dados de 1982 foram coletados aos 20 meses de idade, enquanto em 1993 são relativos às crianças com 12 meses. Apesar desta diferença metodológica, verificou-se que, com exceção da vacinação anti-sarampo, a cobertura sempre foi maior em 1993. Não é possível comparar a cobertura da vacina BCG porque, no Estado do Rio Grande do Sul, esta vacina somente foi introduzida para menores de um ano em 1990.
A Tabela 6 mostra que houve diferenciais por renda familiar em ambos os anos, no entanto, durante a década, as diferenças se reduziram para todas as vacinas. Ao passo que, em 1993, as melhoras na cobertura vacinal foram observadas nos dois grupos de mais baixa renda, praticamente não houve diferenças para as crianças dos grupos mais ricos, os quais, em 1982, já apresentavam coberturas bastante altas.
A Tabela 7 indica que as médias de consultas durante o primeiro ano de vida variaram de acordo com os grupos de renda e durante a década. Assim, quanto mais elevada a renda familiar, maior a média de consultas. Constatou-se, também, em média, que as crianças de 1982 tiveram 1,8 a mais de consultas do que em 1993.
Este achado surpreendente levou ao desdobramento dos motivos de consultas, verificando-se, assim, que a redução se deu às custas dos motivos preventivos (Tabela 7), havendo 1,6 a menos de consultas em 1993, em média. Esta queda atingiu todos os grupos de renda. Mas os diferenciais sociais persistiram: as crianças de maior renda familiar tiveram três consultas preventivas a mais do que as mais pobres, em ambos os anos. As médias de consultas por doenças (Tabela 7) não variaram entre os grupos de renda em 1993, embora em 1982 os mais pobres apresentassem maior número de consultas.
Discussão
Informações epidemiológicas para a avaliar a efetividade de ações e serviços assistenciais são essenciais para a racionalidade e qualidade dos sistemas de saúde. As fontes tradicionais de informações, geralmente coletadas a partir de dados secundários, são sabidamente deficientes, na medida que não permitem inferências causais, têm problemas de classificação e subnotificação. Estudos de base populacional sobre a cobertura da assistência médica, embora raros em nosso meio, permitem a superação destas deficiências. Geralmente, são realizados estudos transversais para descrever a utilização de serviços de saúde, sendo raro o emprego de delineamento de coorte, pelas dificuldades inerentes a sua metodologia. A análise de duas coortes representativas, em 1982 e 1993, permitiu avaliar os efeitos de uma série de mudanças realizadas na assistência médica durante a década. O índice de perdas de acompanhamento em 1982 (17,7%) foi bastante superior ao de 1993 (6,6%), mas houve pouca variação nos percentuais de crianças localizadas nos diferentes grupos de renda (ver o primeiro artigo deste suplemento, Victora et al., no prelo). Deve-se levar em conta ainda que algumas comparações são limitadas por diferenças na definição de variáveis específicas, as quais serão comentadas abaixo.
Indicadores de assistência pré-natal revelam se os serviços foram procurados precoce e regularmente pelas gestantes. É fundamental que o atendimento inicie nos primeiros meses da gestação, possibilitando, em tempo hábil, o diagnóstico de problemas de saúde, como a sífilis congênita. O acompanhamento mensal é importante para avaliação do crescimento fetal e de intercorrências clínicas, prevenindo e minimizando possíveis danos à saúde das mães e às crianças. Portanto, em geral, mulheres que recebem cuidados de pré-natal desde o primeiro trimestre têm melhores resultados gestacionais do que aquelas com início tardio. Em Pelotas, os dados de 1993 mostraram que 5% das mulheres não receberam atendimento pré-natal, enquanto 9% das restantes o fizeram somente após o quinto mês. Portanto, uma em sete mulheres deixou de procurar os serviços em tempo hábil. Estes resultados são preocupantes, embora melhores do que os relatados para outras regiões do país - por exemplo, nos nove estados da Região Nordeste, encontraram-se percentuais que variavam entre 15% e 52% de gestantes sem pré-natal (Barros et al., 1995).
Ao se estratificarem os indicadores de cuidados pré-natais pelas variáveis sócio-econômicas comprovou-se, como em 1982, que quanto pior o nível de renda e maior o escore de fatores de risco, mais baixo o desempenho da assistência à saúde. O principal objetivo de trabalhar com níveis de risco é exatamente selecionar as mulheres merecedoras de atenção especializada e constante. O resultado paradoxal observado em 1982 e repetido na atualidade mostra que esta classificação não tem sido priorizada pelos serviços de saúde.
A média de consultas durante o pré-natal em 1993 também foi superior à de 1982. Porém, a análise por variáveis sócio-econômicas mostrou que gestantes com renda abaixo de seis salários mínimos e aquelas classificadas como de risco intermediário ou alto ficaram abaixo das nove consultas preconizadas para os Estados Unidos (DHHS, 1989). No entanto, todos os grupos ficaram com uma média superior às cinco consultas/pré-natal preconizadas pelo Ministério da Saúde do Brasil (MS, 1986).
Em relação à assistência médica recebida durante o trabalho de parto, repetiu-se a tendência encontrada em 1982, ou seja, os cuidados menos adequados foram dedicados às mães pobres, filiadas ao INSS e de alto risco gestacional. Gestantes portadoras de fatores de risco, como a baixa estatura, perdas reprodutivas prévias, ou intercorrências, como hipertensão arterial, apresentaram menor probabilidade de ser submetidas a uma operação cesárea do que mulheres de baixo risco. Como em 1982, a explicação para esta tendência não parece ser motivada por indicações técnicas, mas por razões financeiras. Cesarianas foram realizadas em mais da metade das mães de renda superior a 10 salários mínimos, dado ainda mais dramático do que o constatado em 1982 (Barros et al., 1991). Esse achado se repete em diversas regiões do Brasil: na Região Nordeste, por exemplo, cesarianas são feitas em cerca de 9% das gestantes com renda inferior a um salário mínimo, contra 39% naquelas com renda de cinco salários mínimos ou mais (Barros et al., 1995).
A cobertura vacinal aumentou durante a década. Devem-se ressaltar as diferenças metodológicas entre os dois estudos, sendo as crianças de 1982 estudadas com 20 meses de idade, contra 12 meses para as de 1993. Este fato possivelmente explica a cobertura vacinal anti-sarampo ligeiramente superior em 1982.
Dados de literatura indicam ser a cobertura vacinal no Brasil nas crianças menores de um ano, entre 1990 e 1992, de 87%, 62%, 69%, 93% (UNICEF, 1994a e b) para as vacinas BCG, Sabin, DPT e anti-sarampo, respectivamente. No Estado do Rio Grande do Sul, em 1992, estas coberturas foram estimadas, a partir de dados administrativos, em 93,5%, 90,8%, 90,9% e 94,2%, respectivamente (SSMA, 1993). Os dados de Pelotas, portanto, estão próximos aos observados para o Rio Grande do Sul, com exceção da vacina BCG, cuja alta cobertura pode ser justificada pelos nascimentos hospitalares, e da baixa cobertura da vacina anti-sarampo, pelo menos até a idade de 12 meses, quando as crianças foram visitadas. A alta cobertura da vacina Sabin reflete a elevada aderência e a mobilização social resultantes de mais de dez anos de campanhas iniciadas em 1983.
Entre 1992 e 1993, reduziram-se os diferenciais de cobertura entre os grupos de menor e maior renda, até porque os últimos já apresentavam altas coberturas em 1982 e não poderiam progredir muito. Mesmo no grupo com renda familiar inferior a um salário mínimo, as coberturas alcançaram as metas globais de 80% preconizadas pelo UNICEF para 1995 (Grant, 1995; UNICEF, 1994a, 1994b). As metas de 90% de cobertura no ano 2000 ainda não foram atingidas pelas crianças de famílias com renda inferior a três salários mínimos. Assim, pode-se afirmar que as crianças de famílias com renda superior a seis salários mínimos estariam alcançando as metas para o ano 2000 pelo menos sete anos antes do prazo, enquanto as mais pobres ainda se encontram cerca de cinco pontos percentuais abaixo da meta. Esforços adicionais são necessários para elevar acima de 90% as coberturas de vacinas tríplice e anti-sarampo em todos os grupos sociais.
Relativamente ao número de consultas durante o primeiro ano de vida, foi surpreendente a redução observada na década. Esta diminuição atingiu todas as faixas de renda familiar. Embora houvesse algumas diferenças metodológicas na coleta da informação sobre o número e tipo de consultas, estas não parecem suficientes para explicar a redução nas consultas. A principal diferença foi o fato de que, em 1982, perguntou-se sobre as consultas do primeiro ano apenas aos 12 meses, ao passo que, em 1993, este dado foi obtido aos seis meses para o primeiro semestre e aos 12 para o segundo. O viés de recordatório, portanto, poderia ter reduzido a informação referente a 1982, e não o oposto como observado.
A análise das médias de consultas preventivas na coorte de 1993 em relação à renda familiar mostrou que o grupo que recebia menos de um salário mínimo ficava abaixo das sete consultas preconizadas pelo Ministério da Saúde (MS, 1992) para o primeiro ano. As ações preventivas essenciais no primeiro ano de vida se baseiam em um acompanhamento longitudinal de cada criança, de forma a propiciar educação alimentar, aplicação de vacinas e monitorização do crescimento e desenvolvimento. Assim, a diminuição nas consultas preventivas traduz um desempenho deficiente dos serviços. Pode-se especular se as campanhas de multivacinação, realizadas duas vezes ao ano desde 1983, não estariam resultando em uma redução na procura da rede de serviços para atividades de imunização, explicando, portanto, a redução média de quase duas (1,6) consultas anuais.
Os resultados do presente trabalho confirmam mais uma vez a 'lei da assistência inversa' de Tudor Hart, assim enunciada: "A disponibilidade de bons serviços médicos tende a ser inversamente proporci onal às necessidades da população atendida" (Hart, 1971). Os grupos mais discriminados da sociedade, de menor renda familiar, são justamente aqueles que apresentam pior desempenho em termos de desfechos gestacionais (mortalidade perinatal, baixo peso ao nascer) e durante o primeiro ano de vida (mortalidade infantil, desnutrição, hospitalizações), como evidenciam os demais artigos do presente suplemento. Os serviços de saúde, ao invés de corrigir, acentuam estes diferenciais, através de uma discriminação contra as mães e crianças mais pobres. Consciente ou inconscientemente, os cuidados pré-natais não seriam tão estimulados, os trabalhos de parto poderiam ser realizados por pessoas menos habilitadas e o acompanhamento das crianças menos intenso. É paradoxal ainda que a lógica perversa do modelo, que privilegia as mães e crianças de mais baixo risco, ao mesmo tempo os exponha ao risco de intervenções médicas desnecessárias, como os partos cesáreos que são realizados em mais da metade das mães de alta renda.
Referências
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