Afonso Dinis Costa Passos1
Ana Alice M. C. Castro e Silva2

Aparecida Heloisa C. Ferreira2
Jorgete Maria e Silva1
Maria Elizabeth Monteiro2

Roseli Claudino Santiago2

Epizootia de raiva na área urbana de Ribeirão Preto, SP, Brasil

Rabies epizootic in the urban area of Ribeirão Preto, São Paulo, Brazil

 

1 Núcleo de Vigilância Epidemiológica, Hospital
das Clínicas, Departamento de Medicina Social,
Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Av. Bandeirantes 3900, Ribeirão Preto, SP
14049-900, Brasil.
2 Divisão de Vigilância Epidemiológica, Secretaria Municipal de Saúde
de Ribeirão Preto.
Rua São Sebastião 1324, Ribeirão Preto, SP
14015-040, Brasil.

 

 

  Abstract This report describes some epidemiological aspects of a rabies epizootic that started in 1995 in the urban area of Ribeirão Preto, SP, Brazil, and discusses its main causes. All laboratory confirmed cases were described according to a set of epidemiological variables. Simultaneously, information was raised concerning rabies vaccine coverage and epidemiological surveillance activities. In addition to one human case, 58 rabid animals were confirmed in 1995 (54 dogs, 3 cats. and 1 bat). There were 20 cases in 1996 (18 dogs and 2 cats). Geographical distribution was uneven in the city, with higher concentrations observed in the Western, Northern, and Southwestern sections, corresponding to the poorest areas. No seasonal variation was observed. The main reasons for the epizootic were low rabies vaccine coverage in animals and severe failures in epidemiological surveillance activities in the years immediately prior to 1995. This epizootic illustrates the risk of neglecting such activities, even in a city with a reasonably good health system, located in one of the most economically developed areas of the country. Vigorous preventive measures markedly reduced the number of cases.
Key words Rabies; Zoonoses; Epidemiology  

Resumo Este estudo objetiva descrever uma epizootia de raiva iniciada em 1995 na área urbana de Ribeirão Preto e estudar os fatores que propiciaram o seu aparecimento. Foram revistos e estudados todos os casos laboratorialmente confirmados de raiva animal ocorridos a partir de janeiro de 1995. Paralelamente, foram levantadas informações relativas à cobertura vacinal e às atividades de vigilância. Em 1995, além de um caso humano, ocorreram 58 casos de raiva animal (54 cães, três gatos e um morcego). Em 1996, foram observados vinte casos (18 cães e dois gatos). A concentração de casos foi diferente conforme as áreas distritais, com maiores valores sendo observados nas regiões mais pobres da cidade. A distribuição de casos não variou conforme os meses do ano. Baixas coberturas vacinais e quase ausência de atividades de vigilância, traduzida pelo não-envio sistemático de amostras para exames laboratoriais nos anos imediatamente anteriores a 1995, foram os fatores determinantes do aparecimento da epizootia. Este evento ilustra os riscos de se negligenciar a profilaxia permanente da raiva, mesmo numa cidade com razoável estrutura dos serviços de saúde e localizada numa das áreas de maior desenvolvimento econômico do País.
Palavras-chave Raiva; Zoonose; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

Em razão das suas conseqüências em termos de mortalidade e de custos decorrentes das medidas de controle, a raiva permanece como um grave problema de saúde pública em inúmeras regiões do mundo, particularmente nas áreas menos desenvolvidas (Germano, 1994; OPS, 1995; MS, 1996; Schneider et al., 1996). Por constituir uma zoonose, com um grande número de diferentes espécies animais podendo funcionar como reservatório na natureza, o seu controle exige a aplicação de medidas dirigidas à redução da circulação do vírus naquela(s) espécie(s) de maior relevância epidemiológica numa determinada região geográfica.

Em áreas urbanas, nas situações onde as medidas de controle falham no seu objetivo de interromper a cadeia de transmissão, este papel é representado quase que invariavelmente pelo cão, principal reservatório e fonte de infecção da moléstia (Germano, 1994; Schneider et al., 1996). Assim, epizootias urbanas podem surgir e colocar em risco extensos segmentos populacionais, de modo particular aqueles que habitam áreas periféricas de cidades do terceiro mundo, onde cães errantes se reproduzem com rapidez e vivem em situação de grande proximidade com seres humanos. Lamentavelmente, ocorrências dessa natureza têm sido registradas em diferentes partes do mundo, incluindo o nosso País (OPS, 1995; Schneider et al., 1996).

O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas características de uma importante epizootia de raiva iniciada em 1995 na área urbana de Ribeirão Preto, discutindo alguns fatores que permitiram a sua ocorrência e manutenção numa das regiões de maior renda per capita do Brasil.

 

 

Antecedentes

 

Epizootias de raiva em áreas urbanas têm ocorrido em diferentes municípios do Estado de São Paulo, evidenciando circulação ativa do vírus entre diversas espécies animais (MS, 1996). Esporadicamente, casos humanos têm sido verificados, realçando a importância da adequada implementação de medidas efetivas de controle voltadas a essa zoonose (MS, 1996; Silva et al., 1997).

No Município de Ribeirão Preto, uma análise de anos recentes (Tabela 1) revela que as atividades de vigilância epidemiológica para a raiva animal, expressas pelo número de amostras enviadas para exame laboratorial, encontravam-se praticamente desativadas. Assim é que de 1988 a 1991 as estatísticas oficiais revelam uma quase total falta de informações acerca da coleta e envio de amostras para análise, mesmo em anos quando foram detectados casos positivos (1988 e 1990). A situação apresentou uma melhora a partir de 1992, muito embora com números ainda bastante baixos de amostras enviadas para pesquisa da presença do vírus, não tendo sido observado qualquer exame positivo nos anos de 1993 e 1994.

 

 

No que diz respeito à cobertura vacinal canina, os dados mostrados na Tabela 2 revelam que, entre 1989 e 1994, a mesma oscilou entre 49,6% (1989) e 69,2% (1993). A despeito de todas as dificuldades inerentes ao cálculo correto dos níveis de cobertura, uma vez que esses dados se baseiam na premissa de que a população canina corresponde a 10% da humana, verifica-se que em nenhum momento se atingiu um nível de vacinação que pudesse representar uma barreira efetiva à disseminação do vírus rábico entre cães na cidade de Ribeirão Preto.

 

 

 

 

Descrição da epizootia

 

Em 06 de janeiro de 1995, a Secretaria Municipal de Saúde recebeu do Escritório Regional de Saúde 50 (Ersa 50) a informação de que havia sido confirmado o primeiro caso de raiva animal na cidade de Ribeirão Preto, desde 1992. Tratava-se de uma amostra positiva oriunda de um cão de guarda da raça Pastor Alemão, que apresentou sintomas sugestivos de raiva no dia 27/12/1994 e foi a óbito quatro dias após. Esse animal permanecia preso durante todo o dia na residência do proprietário, mas era solto durante a noite numa instituição de atendimento a idosos. Nesse local, o animal tinha contato com cinco outros cães e animais de grande porte, no entanto nenhum deles veio a adoecer. A confirmação diagnóstica foi feita pelo Instituto Pasteur, através de imunofluorescência direta em amostra de sistema nervoso do cão.

No mesmo mês, quatro outros casos em cães foram confirmados. Conforme pode ser visto na Figura 1, a epizootia manteve-se em nível constante durante 1995, com uma média mensal de 4,8 casos, distribuídos em todos os meses do ano. No total, foram confirmados 58 casos, compreendendo 54 cães, três gatos e um morcego frugívoro (Artibeus lituratus), encontrado morto numa praça. Em apenas um deles não ocorreu confirmação laboratorial, com o diagnóstico tendo sido feito em base clínico-epidemiológica. Este caso corresponde a um cão que apresentou sintomas suspeitos de raiva no final de março, ocasião em que mordeu um indivíduo que viria a falecer com quadro confirmado de raiva humana em 08 de maio de 1995, sem qualquer outra referência de acidente suspeito que não a mordedura provocada por aquele cão (Silva et al., 1997).

No ano de 1996, o número de casos se reduziu a vinte, compreendendo 18 cães e dois gatos. A média mensal caiu para 1,7 e os casos foram diagnosticados em oito meses do ano (Figura 1). Da mesma maneira que em 1995, a confirmação laboratorial foi realizada pelo Instituto Pasteur, através de imunofluorescência direta de tecido nervoso.

Os casos se apresentaram dispersos em todos os cinco distritos sanitários em que a cidade está dividida (Tabela 3 e Figura 2), com uma evidente concentração se fazendo presente, em 1995, nas áreas correspondentes ao Sumarezinho, Simioni e Vila Virgínia. Em 1996, observou-se uma redução bastante acentuada em praticamente todas as áreas distritais, de modo especial nos Distritos Simioni e Castelo Branco.

 

 

 

Discussão

 

Epizootias desta natureza constituem eventos graves do ponto de vista sanitário, uma vez que colocam extensos segmentos populacionais sob risco imediato de raiva e exigem dos serviços de saúde o estabelecimento imediato de medidas voltadas à profilaxia de casos humanos e à interrupção de transmissão viral.

Os dados da Tabela 1 mostram que a circulação do vírus rábico na área urbana de Ribeirão Preto vinha se fazendo na época anterior ao surgimento da epizootia, talvez em níveis reduzidos e que não chegaram a despertar maior atenção. Não pode ser descartado, todavia, que essa circulação já se fizesse de uma maneira bem mais acentuada e que não tivesse sido detectada em razão da inexistência de medidas de vigilância. A situação chegou a tal ponto que, no período de quatro anos, entre 1988 e 1991, os serviços de saúde não dispunham de informações acerca do número de amostras enviadas para exame laboratorial, a despeito de dois casos positivos detectados. Mesmo no período imediatamente anterior ao surgimento da epizootia, de 1992 a 1994, o número de amostras examinadas foi extremamente reduzido, evidenciando uma quase inexistência de atividades básicas essenciais para a vigilância epidemiológica da raiva em área urbana.

Somam-se a isso os baixos percentuais de coberturas vacinais no período anterior a 1995, que nunca chegaram a atingir valores iguais a 70%. Sobre este fato, dois comentários se impõem: em primeiro lugar, essas proporções se referem unicamente a cães, não se dispondo de dados acerca de vacinação entre gatos, um elo relevante na cadeia epidemiológica da raiva urbana. Além disso, na inexistência de censos sobre populações animais, esses dados se baseiam na premissa de que a população canina corresponde a 10% da humana, o que pode não representar a real situação vivida em nossas cidades. Empiricamente, verifica-se uma enorme diferença na quantidade de cães circulando livremente nas ruas quando se comparam áreas de diferentes níveis sócio-econômicos, com números muito mais elevados tendendo a se fazer presentes nos bairros periféricos menos favorecidos. Um censo canino levado a efeito durante o ano de 1997 em Pradópolis, cidade localizada a 40 km de Ribeirão Preto, evidenciou que a população total de cães atingiu 19,2% da população humana (Clésio Souza Soares, comunicação pessoal). Assim, embora especulativo, é possível pensar que as reais coberturas observadas em Ribeirão Preto pudessem ser ainda menores que as oficialmente reconhecidas. Isso pode ter ocorrido de modo particular nas áreas onde foram verificadas as maiores concentrações de casos confirmados (Tabela 3) (Figura 2), que correspondem àquelas partes da cidade com maior presença de favelas e de bairros onde se localizam grupos populacionais de mais baixa renda. Foi nessas áreas que os primeiros casos surgiram mais ou menos simultaneamente, acometendo de maneira especial cães errantes e parcialmente domiciliados, originando a disseminação para o restante da cidade.

A combinação de baixas coberturas vacinais e quase inexistência de atividades de vigilância, numa região com antecedentes de circulação do vírus rábico, caracterizavam Ribeirão Preto como área de raiva não controlada, segundo os critérios do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo (SSE, 1995). Os dois fatores acima mencionados traduzem a falta de priorização dada ao programa de controle nos anos imediatamente anteriores, o que propiciou a extensa circulação viral observada na cidade. Os determinantes de tal atitude, lamentavelmente comum no panorama da saúde pública brasileira, não constituem o objeto de discussão do presente trabalho. Todavia, estão por merecer uma abordagem aprofundada, que considere todos os aspectos envolvidos, sejam eles de natureza política, administrativa, institucional ou de qualquer outra ordem.

A ocorrência da epizootia levou à tomada de medidas enérgicas de controle, representadas por vacinação maciça de cães e gatos, captura e eliminação de animais errantes e intensificação das medidas de vigilância epidemiológica. Assim, em 1995 foram aplicadas 120.456 doses de vacina anti-rábica em cães e 17.609 doses em gatos, contra valores médios respectivamente iguais a 26.238 e 1.594 no qüinqüênio 1990-1994. As atividades de captura e eliminação de animais errantes, praticamente inexistentes até 1994, alcançaram valores respectivamente iguais a 2.875 e 1.755 durante o ano de 1995. No mesmo período, o número de amostras enviadas para exames laboratoriais atingiu 897, contra uma média anual de 29 no triênio 1992-1994. Sem dúvida, essa dinamização das atividades de vigilância contribuiu para a detecção dos 58 casos observados em 1995, assim como o conjunto das medidas profiláticas resultou numa queda de 65,5% no número de casos verificados no ano seguinte (Tabela 3) (Figura 2). A manutenção desse conjunto de medidas ao longo de 1996, com ênfase na vacinação casa a casa e em postos fixos, vem produzindo uma redução constante dos casos detectados, o que se exterioriza por apenas cinco confirmações em 1997 (com todas as ocorrências tendo sido verificadas em cães errantes).

Os imensos custos para o sistema de saúde decorrentes de uma situação como essa, a par dos sacrifícios e das perdas, tanto econômicas, como de vidas, impostos à população, apontam para a necessidade absoluta da manutenção de um programa constante de vigilância e combate à raiva em áreas urbanas. O ocorrido em Ribeirão Preto representa uma demonstração clara dos riscos de se negligenciar tal atividade, mesmo em cidades com sistemas de saúde razoavelmente estruturados e localizadas em regiões consideradas como das mais desenvolvidas do País.

 

 

Referências

 

GERMANO, P. M. L., 1994. Avanços na pesquisa da raiva. Revista de Saúde Pública, 28:86-91.         

MS (Ministério da Saúde), 1996. Programa Nacional de Profilaxia da Raiva. Brasília: FNS (Fundação Nacional de Saúde)/Cenepi (Centro Nacional de Epidemiologia)/Coordenação Nacional de Controle de Zoonoses e Animais Peçonhentos. (mimeo.)         

OPS (Organización Panamericana de la Salud), 1995. La situación de la rabia en América Latina de 1990 a 1994. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 119:451-456.         

SCHNEIDER, M. C.; ALMEIDA, G. A.; SOUZA, L. M.; MORAES, N. B. & DIAZ, R. C., 1996. Controle da raiva no Brasil de 1980 a 1990. Revista de Saúde Pública, 30:196-203.         

SILVA, J. M.; SILVA, A. A. M. C. C.; FERREIRA, A. H. C.; MONTEIRO, M. E.; SANTIAGO, R. C. & PASSOS, A. D. C., 1997. A case of human rabies in the urban area of Ribeirão Preto, SP, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, 39:175-176.         

SSE (Secretaria de Saúde do Estado), 1995. Manual de Controle da Raiva. São Paulo: Secretaria de Saúde do Estado/Centro de Vigilância Epidemiológica.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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