ARTIGO ARTICLE

 

Lúcia Maria Frazão Helene 1
Maria Josefina Leuba Salum 1

A reprodução social da hanseníase: um estudo do perfil de doentes com hanseníase no Município de São Paulo

 

Social reproduction of Hansen disease: a case study in the city of São Paulo

1 Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 419, São Paulo, SP 05403-000, Brasil. lmfhelen@usp.br  

Abstract This study discusses the relationship between work and living conditions among leprosy patients enrolled in the São Paulo municipal public health system in 1996. Social patterns were studied based on the theory of social determination of the health-disease process. The main purpose of the study was to emphasize evidence of the disease determination network, seeking new knowledge to improve public policies on leprosy. Data were gathered from a sample of leprosy patients registered in the city's public health system. Although patients' families are characterized by a common social thread, different work/life possibilities allow for a classification of patients into three social groups. The majority belong to groups that are marginalized from social production, living in areas where social exclusion is more extreme, on the outskirts of the city. If the trends in this study persist, incident leprosy cases will result from the social exclusion of migrants from Brazil's Southeast and Northeast. The study also discusses the position of young people and female patients in the determination network of this infectious disease in the city of São Paulo.
Key words
Leprosy; Health-Disease Process; Epidemiology

 

Resumo Tomamos como objeto de estudo a relação trabalho-vida de hansenianos sob controle do setor público do Município de São Paulo, em 1996. Fundamentando-se na teoria da determinação social do processo saúde-doença, a preocupação foi a de ampliar o reconhecimento da rede de determinação da hanseníase, buscando produzir conhecimentos que subsidiem a extensão dos projetos de intervenção. Foram colhidas informações junto a uma amostra proporcional de hansenianos - a família como unidade amostral -, classificando-os de acordo com sua inserção social. Os resultados mostram que a maioria dos hansenianos se concentra nos grupos marginalizados da produção social, deslocados para regiões em que a exclusão social é mais acentuada, diferenciando-se pelo trabalho que realizam. A manter-se a tendência de concentração dos hansenianos nos estratos intermediário e inferior, renovar-se-á a construção da hanseníase, tendo como origem os excluídos do Sudeste do Brasil ou os migrantes nordestinos que sobrevivem nos subempregos, na malha periférica da produção capitalista, pulverizados em trabalhos precários, desqualificados, e no espaço de reprodução social que parece favorecer um maior acometimento da doença em jovens e mulheres.
Palavras-chave
Hanseníase; Processo Saúde-Doença; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

Este trabalho tomou como objeto de estudo a reprodução social (relação trabalho/vida) dos hansenianos sob controle do setor público de saúde, no ano de 1996, no Município de São Paulo. À época do estudo, vivíamos os primeiros impactos do ajuste econômico, ruptura no modelo de gestão vigente e no enfrentamento da exclusão social e de suas inflexões na saúde (Cohn & Elias, 1998). Convivíamos com as primeiras investidas da progressiva degradação da vida social: metamorfoses no mundo do trabalho e seus desdobramentos sociais - as iniqüidades no usufruto do espaço social, da cultura e dos avanços tecnológicos, a violência, a insegurança - foram estruturando um processo contraditório de aperfeiçoamento/regressão nos padrões de morbidade em nossa sociedade.

Entre aqueles afortunados pela inclusão social, a disseminação das doenças crônico-degenerativas enfrentou novas possibilidades de expandir e aperfeiçoar a sobrevida, bem como o acesso aos recursos tecnológicos que o mercado da saúde oferece. À maioria, confinada nos diversos graus de exclusão/inclusão social, restou a carga da expansão dos novos males (a AIDS, a drogadição), o recrudescimento de males já esquecidos (dengue, cólera, leishmaniose, doença de Chagas), numa batalha em que a fome, as doenças imunopreviníveis, mais a tuberculose, a hanseníase e o acesso iníquo aos equipamentos sociais e em saúde contentaram-se em consolidar-se como estampas naturais do tecido social (Barreto et al., 1996; Minayo, 1995).

Especialmente, o Programa de Controle da Hanseníase fora totalmente comprometido, resultando no abandono de 1.800 pacientes (Helene & Salum, 1997; Oliveira, 1997). De outra parte, passados seis anos de implementação da poliquimioterapia (PQT) na área metropolitana de São Paulo, persistiam áreas de alta endemia e com elevadas taxas de detecção, que constituíam problemas na obtenção de resultados positivos em direção à eliminação da hanseníase (SES-SP, 1996a, 1996b).

A suposição de que o recrudescimento da doença poderia estar intimamente ligado à desintegração social do trabalho e da vida, o impacto representado pelo afunilamento do acesso aos serviços de saúde e a necessidade de ampliar o conhecimento a respeito da rede de determinação da hanseníase nos inclinou a estudar as formas de reprodução social dos hansenianos e sua distribuição em nosso município. Tomamos como referência o alerta de Monteiro (1987), que apela para a necessidade de se ajustar a produção de conhecimentos acerca da dinâmica da interação entre fenômenos demográficos, econômicos e sociais e o perfil da endemia na metrópole paulistana, integrando conceitos e categorias que permitam superar os limites da visão clássica da história natural da doença: o objeto de investigação/intervenção não é apenas constitutivo do mundo da natureza, separado e independente do mundo social (Nemes, 1989). Nessa perspectiva, estruturamos o trabalho sob o marco teórico da determinação social do processo saúde-doença (Breilh & Granda, 1986; Laurell, 1989), circunscrevendo-o, na sua especificidade, aos encaminhamentos de Sabroza et al. (1992), que reconhecem as relações entre o espaço e os processos endêmico-epidêmicos.

 

 

O social: causalidade e determinação em hanseníase

 

Os estudos clássicos sobre a hanseníase gerados no campo da saúde pública trataram o social como um dos fatores de risco e ofereceram informações rigorosamente sistematizadas sobre alguns aspectos da realidade social que circunscreve a ocorrência dessa doença. O campo da saúde coletiva, por sua vez, procedeu a uma reinterpretação desses fatores, considerando-os como eventos mediadores que integram uma rede de determinação hierarquicamente organizada: os processos sociais assumem caráter central e as manifestações biopsíquicas a eles se subsumem (Breilh, 1991; Facchini, 1995; Laurell, 1983). O objeto de estudo são os grupos sociais, agregados sob a lógica da reprodução social, cujo reconhecimento ajuda a situar e a hierarquizar categorias fundamentais no entendimento das diferenças de saúde dos grupos sociais (Facchini, 1999).

Nesse sentido, impossível desconsiderar os resultados obtidos por Lie (1933), que articulam a regressão da doença e a história cultural e econômica na Noruega, entre 1856 e 1927; Doull et al. (1936), que associaram a promiscuidade à ocorrência da doença, em estudo epidemiológico extenso nas Filipinas; Worth (1996), que sugeriu associação entre as transformações sócio-econômicas e a diminuição da incidência da hanseníase, entre 1866 e 1936, no Hawai. Devem-se considerar, ainda, os achados de Tello (1978), em estudo descritivo e longitudinal, num período de trinta anos, em Córdoba, na Argentina, e Parra (1996), em estudo de caso, realizado na Venezuela, que consideraram que o fator econômico-social constituía causa predisponente da hanseníase.

Em nosso país, também sob o projeto da saúde pública, desde a década de 40 (Ornellas, 1997), questões sociais, como o padrão de vida e a profissão exercida, foram associados à doença (Becchelli, 1949; Quagliato, 1951). Mas foi a produção do Professor Walter Belda (Belda, 1974, 1977, 1981; Belda & Lombardi, 1979a, 1979b) que, na década de 70, alimentou a discussão sobre o fator social na causalidade em hanseníase, com base nos pressupostos da história natural da doença. E, no final da década de 80, nas Regiões Norte e Nordeste brasileiras, quando a precariedade do trabalho e da vida social atingiu implacavelmente a nossa sociedade, alguns estudos passaram a oferecer suporte à retomada da tese da centralidade do social na rede de determinação que articula trabalho/vida e hanseníase. Citamos as comunicações de Britto (1989) e Albuquerque et al. (1989), que alertam para a disseminação da doença entre jovens menores de 15 anos, assim como as de Domingos et al. (1998) e Queiroz & Duarte (1998), que detectaram coeficientes hiperendêmicos para essa mesma faixa etária, associados a indicadores de pobreza em dois estados brasileiros.

Tais indicações confirmam os achados clássicos aqui citados, evidências inquestionáveis para superar o entendimento da hanseníase como um fenômeno explicado pela história natural da doença. A distribuição da hanseníase no mundo, por sua vez, é um testemunho da centralidade do social: quem negaria a situação de extrema exclusão em que ainda sobrevive a maioria das populações dos continentes asiático, africano e latino-americano, que abrigam a maior parte dos 739.091 hansenianos oficialmente registrados no planeta (WHO, 1998)?

Para tratar da hanseníase e de sua relação com as transformações sociais recentes, será preciso lembrar que a discussão sobre a história social da doença na América Latina foi retomada no final da década de 60, quando se iniciou uma das mais intensas crises capitalistas deste século (Breilh,1991; Laurell, 1989). Os estudos do México e do Equador foram decisivos para colocar em pauta o nexo entre o biopsíquico e o social e a subsunção daquele a este. Nesse sentido, o campo da saúde coletiva tem recebido a contribuição de diversos autores que têm se dedicado a realizar estudos que buscam associar trabalho/vida e saúde. Podemos citar, por exemplo, a produção intensiva do grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas, os quais propuseram um modelo teórico hierarquizado que privilegia o conceito de classe social e que integra mediadores das formas de trabalhar e de viver para explicar os fenômenos biopsíquicos (Facchini, 1995; Lombardi et al., 1988; Victora et al., 1991).

No âmbito das doenças transmissíveis, além do trabalho instigante de Barata (1988), talvez tenha sido o de Guimarães (1990) aquele que primeiramente reuniu e sistematizou dados, tendo como base tal modelo teórico; nele, o autor analisou a evolução da tuberculose ao longo do século XIX e do século XX. Sem querer penalizar a fecunda produção acadêmica oriunda dos mais diversos centros de pesquisa em saúde coletiva, não se pode deixar de destacar, no entanto, o trabalho de Sabroza et al. (1992), os quais se valeram do exemplo da hanseníase para advogar a articulação entre as doenças transmissíveis e o modelo de desenvolvimento econômico capitalista, que desloca um grande grupo de marginalizados da produção para o circuito econômico espacial inferior, em que diferentes ciclos zoonóticos estão estabelecidos. A intensificação da mobilidade intra-urbana e urbano-rural intensifica, por sua vez, a taxa de contatos sociais e de reprodução dos parasitos, numa conjuntura em que convivem a aglomeração e a promiscuidade das habitações, bem como a precariedade dos locais de trabalho, mediadores incontestes da proliferação e transmissão de agentes infecciosos.

Compreendemos que os problemas de saúde devem ser referidos a um dado espaço geo-social, por isso, fundamentadas na origem social da doença, julgamos necessário reconhecer, num território específico, as particularidades de reprodução social dos hansenianos e sua distribuição espacial, pressupondo que a teorização da relação entre espaço e processos sociais pode constituir um convite à ação (Sabroza et al., 1995).

 

 

Objetivos

 

Este trabalho teve como objetivos: reconhecer as formas de reprodução social (formas de trabalhar e de viver) sob as quais se constituem as famílias dos hansenianos e os espaços sociais a estas destinados e caracterizar as diversidades e as semelhanças entre as famílias.

 

 

Procedimentos metodológicos

 

  População de estudo, amostra, unidade amostral

 

Nossa população de estudo constituiu-se dos 2.156 doentes com hanseníase que, durante o ano de 1996, estavam registrados nas Unidades de Saúde da Cidade de São Paulo, tomando-se informações a eles referentes na Divisão Técnica de Vigilância Epidemiológica da Hanseníase do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. Estudamos 4,9% dessa população - 105 doentes - valendo-nos da formulação de uma amostra proporcional (método de Monte Carlo), cuja seleção tomou como referência a distribuição das quatro formas clínicas da doença (Baliña & Valdez, 1994), sendo estes os únicos dados armazenados no sistema de informações que poderiam ser tomados como base acerca de eventuais heterogeneidades na população estudada. A composição final da amostra foi a seguinte: sete doentes diagnosticados com a forma indeterminada (I); nove com a forma tuberculóide (T); 21, com a dimorfa (D) e setenta, com a virchowiana (V). A unidade amostral foi a família do hanseniano, considerada como suporte das relações sociais, marcada pelas determinações e mediações sociais (Campaña, 1997; Escorel, 1999). Consideramos ainda as observações de Andrade et al. (1994), segundo os quais, sendo uma unidade fundamental no estudo da reprodução social, o domicílio, espaço onde a família vive, também é a menor unidade espacial onde se realiza o processo de transmissão do parasito.

 

  Variáveis estudadas para caracterizar os perfis de reprodução social

 

Para caracterizar as formas de reprodução social dos hansenianos do Município de São Paulo, fundamentamo-nos na base teórica, metodológica e operacional, proposta por Queiroz & Salum (1997), a qual pré-define e encaminha para identificação três possibilidades de reprodução social ou três grupos sociais homogêneos por semelhantes formas de trabalhar e de viver. Utilizando as recomendações das autoras, trabalhamos com dois conjuntos de informações (variáveis de corte) acerca das formas de trabalhar e de viver das famílias. Cada um desses conjuntos (formas de trabalhar: renda familiar per capita - RFPC; usufruto familiar de benefícios sociais decorrentes da inserção no trabalho; inserção formal dos trabalhadores na produção e formas de viver: posse da habitação, grau de agregação social e grau de riqueza ou investimento patrimonial, este último avaliado pelo recolhimento de imposto territorial) sofreu um processo de combinação interna de modo a classificar as famílias pela estabilidade/instabilidade de suas formas de trabalhar e/ou de viver. Elas foram assim conceituadas em virtude das marcas da polarização social contemporânea que ora exclui, ora inclui as diferentes classes ou grupos em espaços qualificados de produção e de vida (Queiroz & Salum, 1997). Famílias com formas de trabalhar e de viver estáveis foram agrupadas no estrato superior; aquelas com formas de trabalhar estáveis e formas de viver instáveis, ou vice-versa, foram agrupadas no estrato intermediário e famílias com formas de trabalhar e de viver instáveis foram agrupadas no estrato inferior. Além desses dois conjuntos de variáveis, trabalhamos ainda com variáveis compostas que possibilitassem ampliar o retrato das formas de reprodução social, avaliando o acesso aos serviços de saúde, tipo de trabalho/ocupação, faixa etária, sexo, autoctonia (Bechelli, 1949; Belda, 1974, 1977, 1981; Belda & Lombardi, 1979a, 1979b; Quagliato, 1951). Levantamos, ainda, como recomendam Queiroz & Salum (1997), outras informações que ampliassem a caracterização do trabalho e da vida.

 

Coleta de dados

 

Tomamos como referência o formulário descrito por Queiroz (1996) e Salum et al. (1998) e o ajustamos, de acordo com as variáveis por nós selecionadas, para compor um instrumento com perguntas fechadas e respostas pré-codificadas, segundo as recomendações de Witt (1973). Depois de terem sido submetidos a um pré-teste, os formulários foram preenchidos em entrevistas realizadas pela pesquisadora principal, as quais tiveram até 25 minutos de duração. A coleta de dados ocorreu durante o período de março a agosto de 1998.

 

A sistematização e análise das informações

 

As informações obtidas foram armazenadas em quatro bancos de dados, utilizando-se o programa D-Base III (Borland International, 1986) e um programa especialmente construído para sistematizar os dados por estratos ou grupos (PROGREL, formulado por Orsini & Koganezawa, 1996). Os dados foram tabulados, tabelados e analisados estatisticamente através do programa Epi Info - versão 6 (Dean et al., 1997), empregando-se o teste de Qui-Quadrado e a análise de variância (ANOVA), considerando-se o nível de significância de 5%.

 

 

Resultados

 

A Tabela 1 sintetiza as principais características das formas de reprodução social encontradas na amostra estudada, categorizadas segundo as variáveis de corte. A distribuição das famílias heterogeneamente entre os três estratos sociais pré-estabelecidos, era pouco expressiva a freqüência de famílias com formas de trabalhar e de viver estáveis. Nesse sentido, compondo o estrato superior, apenas 10,5% da amostra estudada era constituída majoritariamente por famílias protegidas da precarização no trabalho, usufruindo da possibilidade de acesso ao uso do espaço geo-social e convivendo com um padrão diferenciado de consumo e de representação coletiva. De outro lado, 41,0% das famílias estudadas apresentavam formas de trabalhar estáveis e de viver instáveis, ou vice-versa, compondo, assim, o estrato intermediário, sob tensão entre a possibilidade de aperfeiçoamento de sua reprodução social ou de perda das condições aperfeiçoadas de trabalho ou vida por elas conquistadas e/ou mantidas. Finalmente, quase 50% da amostra (48,6%) foi classificada no estrato inferior, ou seja, aquele em que se encontrava fundamentalmente no espaço da exclusão social - inserção desqualificada na produção e padrão desqualificado de existência.

 

 

Construídos e mantidos, sobretudo, nos espaços de exclusão, os três estratos, ainda que diferissem entre si, mantinham semelhanças supragrupais, prevalecendo famílias nucleares completas e pequenas, dominadas por adultos jovens e com um número reduzido de filhos (Tabela 2).

 

 

As identidades também estavam presentes nos dados mais gerais da inserção no trabalho e na vida (Tabelas 3 e 4). O trabalho era realizado sobretudo no setor privado por trabalhadores majoritariamente na faixa dos 15 anos e mais, sendo praticamente nulo o trabalho infantil. Diga-se de passagem que a renda auferida pelas famílias nos três estratos originava-se ora somente do trabalho de seus membros, ora, simultaneamente, do trabalho e de outras fontes, ora apenas de outras fontes. A maioria das famílias em todos os estratos morava em casas servidas pela rede pública de serviços urbanos, mas localizadas em espaços insalubres, que as expunham a ameaças cotidianas, indo do contato com esgoto a céu aberto a outros poluentes. Acrescente-se que cerca de 10% das famílias que pertenciam aos estratos intermediário e inferior mencionaram a convivência com drogas e violência. Suas casas eram equipadas com televisão e geladeira, e assistir à televisão era o lazer a que mais freqüentemente se dedicavam (Tabela 4).

 

 

 

A despeito das semelhanças até aqui listadas, diversidades outras fragmentavam as famílias dos hansenianos, o que se expressa na composição etária de seus membros, sua procedência e, especificamente, nas formas particulares de inserção no trabalho (Tabela 5), bem como na heterogênea ocupação do espaço na cidade de São Paulo (Figura 1).

 

 

 

A Tabela 6, finalmente, apresenta as características gerais dos hansenianos segundo o estrato social a que pertenciam. Como se pode notar, era significantemente diversa a sua forma de inserção no trabalho e, mesmo que o tratamento estatístico não tenha revelado diferenças significantes, nos estratos intermediário e inferior uma freqüência menor de homens era portadora da doença, uma freqüência expressiva procedia das regiões Norte e Nordeste do País, e, à medida que progredia a exclusão, era mais freqüente a ocorrência da doença em adultos jovens e menos freqüente em idosos. Embora predominassem as formas multibacilares em todos os estratos, a forma dimorfa, progressivamente atingia os hansenianos dos estratos intermediário e inferior, que também eram os menos cobertos pelo tratamento com PQT.

 

 

 

Discussão

 

Nos limites e possibilidades de um estudo que pretendeu integrar os conceitos da história social da doença, pudemos constatar que, majoritariamente, os hansenianos reproduziam-se em situações precárias de trabalho e vida (estrato intermediário) ou sob o manto da exclusão social (estrato inferior). Em segundo lugar, as identidades que guardavam entre si, se não eram aquelas que fazem parte das características mais gerais da população paulistana (famílias pequenas, nucleares, com um número pequeno de filhos - DIEESE, 1998), eram as mais genéricas possíveis, fosse em relação às formas de trabalhar (vínculo ao setor privado, ausência de trabalho de menores e expressiva situação de sobrevivência às custas de outras fontes que não o trabalho), fosse em relação às formas de viver (acesso aos serviços básicos de saneamento, moradia em locais insalubres, exposição à violência, drogas e riscos associados).

Porém, algumas tênues manifestações de heterogeneidade entre os três estratos delineavam-se à proporção que, saindo da esfera da generalidade, passamos a avaliar, com mais detalhes, suas estratégias de sobrevivência: por exemplo, a posse de aparelhos eletrodomésticos mais sofisticados, como o aparelho de CD, era mais freqüentemente presente entre as famílias do estrato superior do que entre as do intermediário, e mais entre estas quando comparadas às do estrato inferior. Por sua vez, se o hábito de ver TV e a realização de visitas eram práticas de lazer tendenciosamente mais freqüentes entre as famílias dos estratos intermediário e inferior, o hábito de leitura e a prática de esportes, ainda que pouco freqüentes em todos os estratos, eram mais intensamente reduzidos entre as famílias dos estratos intermediário e inferior.

Tais tendências, parece-nos, constituíam o prenúncio de diversidades mais relevantes na expressão da vida social e na própria caracterização do doente. As semelhanças que consideramos supragrupais - pertencem ao espaço da generalidade da existência marginal -contrastavam com diferenças que permitiram evidenciar o lado mais desvalido, pobre e cinza, assim como o contraste entre as diferentes nuances, lado sob o qual vem se reproduzindo a periferia paulistana (DIEESE, 1998; Sposati, 1996).

Num primeiro momento, preocupa um insidioso e diferenciado processo de juvenilização familiar: do estrato superior ao inferior, deparamos com famílias e doentes progressivamente mais jovens. Num segundo momento, não era desprezível a presença de migrantes nordestinos nos estratos intermediário e inferior. Até que ponto estaríamos diante dos primeiros esboços da transformação do padrão de exposição à doença no Município de São Paulo, como Domingos et al. (1998) puderam constatar no Estado de Pernambuco?

Um terceiro aspecto a considerar diz respeito ao trabalho: as famílias dos hansenianos, ainda que situadas, majoritariamente, nos espaços de pobreza e degradação familiar, vinham sendo diferenciadamente atingidas pela desintegração social. Se, no estrato superior, um maior número de membros arcava com as responsabilidades pelo sustento da família - avaliado pela razão entre o total de membros e o número de trabalhadores desta - progressivamente, nos demais estratos, o grau de dependência aumentava, reduzindo-se o contingente de trabalhadores capazes de realizar essa tarefa. Não resta dúvida de que tais atributos do trabalho guardam as marcas da redução do trabalho na indústria e na construção civil, ao lado da crescente terceirização da estrutura ocupacional, da tendência à desqualificação e precarização do trabalho (Brandão, 1997). No entanto, a inserção dos trabalhadores das famílias dos hansenianos e dos próprios doentes nos diferentes ramos da produção não era homogênea: no estrato superior, prevaleciam ocupações na indústria e no setor de serviços (serviços gerais). Nos estratos intermediário e inferior, predominavam as ocupações no setor de serviços, incluindo-se não só os serviços gerais, mas também os domésticos, estes bem mais expressivos no estrato inferior. Finalmente, era entre os trabalhadores deste estrato que prevaleciam as tarefas não qualificadas e o trabalho autônomo, pouco valorizados pelo novo padrão de acumulação capitalista (Antunes, 1995), contrastando com o que ocorria nos demais estratos, em que, gradualmente, assumiam importância as tarefas semiqualificadas e o trabalho assalariado. É preciso considerar, ainda, que a distribuição espacial das famílias dos diferentes estratos mostrava uma inegável tendência dos estratos inferior e intermediário a um movimento em direção à periferia. Seria prematuro formular qualquer conclusão, mas incomoda-nos o fato de serem os hansenianos dos estratos intermediário e inferior aqueles que mais apresentavam a forma dimorfa, além de serem menos privilegiados com o tratamento poliquimioterápico.

No início da década de 80, ao rever a evolução cronológica da moléstia em nosso país, Belda (1981) já começava a vincular a hanseníase ao desenvolvimento econômico, questionando a gênese familiar da doença, mantendo-se como doença característica de população pobre. O autor destacava ainda o acesso aos serviços de saúde e a qualidade de vida como elementos importantes: distribuída nos conglomerados periféricos, a hanseníase passava a conferir à nossa cidade o caráter de importante foco de infecção.

Julgamos, assim, possível reler os fatores que a epidemiologia clássica tão bem soube apontar ao longo da história de descrição da causalidade em hanseníase. Não é a ocupação isoladamente, tampouco o fenômeno da migração ou do acesso a padrões desejáveis de escolaridade ou mesmo o tempo de vida de cada família que darão conta de prevenir a extensão da hanseníase, mas o pertencimento a famílias e grupos sociais homogêneos, cujas estratégias de reprodução são mais efetivas e possibilitam melhores condições de vida e saúde (Facchini, 1995).

As evidências oferecidas por este estudo, se contrapostas à tecnologia no tratamento da hanseníase, até então construída com seriedade e elevada competência, colocam em relevo a necessidade de transcender o conjunto de ações individuais e biologizantes dominante. Levam-nos a sugerir que se examine com atenção a suposição de que a hanseníase em nosso município estaria diante de um padrão de renovação construído sob a marca da estratificação da pobreza, contemporaneamente associada à intensificação das desigualdades sociais, considerando-se os excluídos da Região Sudeste ou os migrantes nordestinos e uma insidiosa exposição de mulheres e jovens. Suportam, pois, a necessidade de se trabalhar e expandir o conhecimento acerca dos processos de determinação e mediação inscritos na produção da vida social, traduzi-lo em modelos explicativos para, enfim, subsidiar intervenções que atinjam as raízes da manutenção e disseminação da doença.

 

 

Agradecimentos

 

À Fundação Paulista contra a Hanseníase do Estado de São Paulo e à Pró-Reitoria da Universidade de São Paulo, pelo estímulo e incentivo financeiro. Ao Prof. Ruy Donini Antunes, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo; a Priscila Batista Silva, Viviane Murilla Leão e Érika Koganezawa; a Gláucia Cuchierato; aos colegas da Divisão Técnica do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, especialmente ao Dr. Wagner Nogueira, à Enfermeira Tanya Eloise Lafratta e à Dra. Mitie Tada L. R. F. Brasil.

 

 

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Recebido em 18 de abril de 2000
Versão final reapresentada em 7 de março de 2001

Aprovado em 27 de março de 2001

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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