ARTIGO
Comunicação instrumental, diretiva e afetiva em impressos hospitalares
Instrumental, directive, and affective communication in hospital leaflets
Paulo Roberto Vasconcellos-SilvaI,II; Francisco Javier Uribe RiveraIII; Luis David CastielIV
IDireção Geral, Instituto Nacional de Câncer. Praça Cruz Vermelha 23, Rio de Janeiro, RJ 20230-130, Brasil. paulor@inca.gov.br
IIEscola de Medicina e Cirurgia, Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, Universidade do Rio de Janeiro.Rua Mariz e Barros 775, Rio de Janeiro, RJ 20270-004, Brasil
IIIDepartamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
IVDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
RESUMO
Este trabalho se ocupa dos típicos sistemas semânticos extraídos dos recursos comunicativos de equipes hospitalares, que tentam validar informações como um "objeto" a ser transferido aos pacientes. Descrevemos modelos de comunicação textual em 58 impressos de orientações aos pacientes de cinco unidades hospitalares, coletados de 1996 a 2002. Identificamos três categorias fundamentadas na teoria dos atos de fala (Austin, Searle e Habermas): (1) Proferimentos cognitivo-instrumentais descrições por meio de termos técnicos validados por argumentação auto-referente, incompleta ou inacessível; função educativa implícita. (2) Proferimentos técnico-diretivos auto-referentes (contexto dos setores de origem); deslocamento freqüente de atos cotidianos para o terreno técnico com função disciplinadora; impessoalidade. (3) Modulações expressivas: necessidade de conexões intersubjetivas para fortalecer laços de confiança; tendência à infantilização. Concluímos que as categorias estudadas expõem: base em origens fragmentárias; pressupostos de univocidade de mensagens e consumo invariante da informação (motivações e interesses idealizados, alheios às perspectivas individuais); pressuposto de interesses universais como geradores de conhecimento.
Palavras-chave: Comunicação; Educação em Saúde; Impressos Avulsos
ABSTRACT
This study focuses on the typical semantic systems extracted from hospital staff communicative resources which attempt to validate information as an "object" to be transferred to patients. We describe the models of textual communication in 58 patient information leaflets from five hospital units in Brazil, gathered from 1996 to 2002. Three categories were identified, based on the theory of speech acts (Austin, Searle, and Habermas): 1) cognitive-instrumental utterances: descriptions by means of technical terms validated by self-referred, incomplete, or inaccessible argumentation, with an implicit educational function; 2) technical-directive utterances: self-referred (to the context of the source domains), with a shifting of everyday acts to a technical terrain with a disciplinary function and impersonal features; and 3) expressive modulations: need for inter-subjective connections to strengthen bonds of trust and a tendency to use childish arguments. We conclude that the three categories displayed: fragmentary sources; assumption of univocal messages and invariable use of information (idealized motivations and interests, apart from individualized perspectives); and assumption of universal interests as generators of knowledge.
Key words: Communication; Health Education; Broadsides
À luz da teoria das organizações, os hospitais são caracterizados por sua natureza autônoma, atomizada e corporativa (Mintzberg, 1995), onde projetos coletivos se inviabilizam em contextos fracamente relacionais (Rivera, 1995). Com base nestes aspectos organizativos assim como em perspectivas comunicacionais derivadas, Peduzzi (2001), descreve uma tipologia dos times multiprofissionais de saúde, referindo-se às suas características como equipes/integração ou equipes/agrupamento. Desta forma, define estas últimas como aglomerações de especialistas convivendo com grande independência de seus projetos setoriais e expressando desigualdades de valores, com hierarquização e disciplinação de saberes. Tais configurações se reproduzem, em sua esfera cultural, por intermédio de racionalidades instrumentais, essencialmente despidas de interesse pelo diálogo, que excluem de sua percepção diversos conteúdos sociais, biográficos e culturais por não estarem plenamente acessíveis ao seu foco instrutor. À medida que esta racionalidade, de índole fracamente relacional, entra em contato com as dificuldades geradas por tais lapsos, alguns déficits comunicacionais (que por sua vez geram comportamentos dissonantes) são interpretados como demandas de natureza cognitiva, como observa Lupton (1995).
Partindo destas premissas e premidos pela necessidade de entendimento para ação, alguns profissionais concluem pela superação de tais hiatos por intermédio de recursos igualmente instrumentais os impressos para orientação de pacientes. Produzem-se textos como resíduos de atos de fala especialistas no formato de mensagens de natureza fragmentária, amiúde redundantes e, por vezes, contraditórias. Neste meio, a unidirecionalidade da comunicação impressa, admitida na sua concepção mais linear, acrescenta limitações importantes em determinados aspectos.
A ênfase deste trabalho se concentra no uso do texto escrito como recurso comunicativo, em substituição aos atos de fala nas organizações profissionais. Cartilhas, manuais, folders e folhetos funcionam, em contextos específicos como próteses comunicativas (Vasconcellos-Silva et al., 2003) que, além de insensíveis à alteridade e ao ambiente extra-técnico, frustram seus autores em sua inabilidade em influenciar nas mudanças comportamentais almejadas (Chung et al., 2002; Dickson et al., 2001; Drossaert et al., 1996; Foltz & Sullivan, 1999; George et al., 1983; Howells et al., 1999; Meredith et al., 1995; Murphy et al., 1993; Murray et al., 2001; Newton, 1995; Paul et al., 1998). O estímulo à ação se materializa em mensagens (e lacunas) que têm o universo clínico hospitalar, ou um seu compartimento especialista, como fonte de referências. Tal fenômeno se observa independentemente do tipo de atividade especializada a que se dedica a organização, pelo que pode ser observado pela literatura revisada. Tais centros produtores de saberes, aqui denominados de "setores-fonte", circunscrevem os limites invisíveis de um arquipélago institucional, isolado do ambiente externo e pródigo em papéis que almejam transmitir mensagens. Os atos de fala reduzidos às "próteses de comunicação" freqüentemente são desenvolvidos para compor lapsos na estruturação cognitiva e simbólica de situações, o que se expressa como empobrecimento de competências comunicativas como fonte do entendimento necessário à ação.
Procedimentos metodológicos
A intenção do presente estudo foi oferecer uma ilustração acerca de uma construção teórica, que se tornará mais compreensível nestes formatos. As categorias foram criadas com base no modelo teórico dos atos de fala de Searle modificadas por Habermas (1984, 1990). Prestam-se a modelos de definição e não a modelos preditivos, essencialmente assertivos. Descrever assertivamente uma tal construção teórica seria uma contradição, já que o que se coloca à frente das ilustrações é um processo argumentativo que se ergue partindo das coerências internas aqui explicitadas, por sua vez apoiadas em referenciais notórios. Nos interessam aspectos textuais e seus derivados, quais sejam: bases de argumentação, jargões e neologismos que cumprem funções assertóricas, apelativas e expressivas. Acreditamos que, neste terreno, as racionalidades que pretendemos retratar se expõem como saberes técnicos, acionados para fins de convencimento que exclui a necessidade de diálogos e consensos.
Com base em revisão recente (Vasconcellos-Silva et al., 2003), de autores que relatavam suas experiências no campo da produção de impressos na área da saúde, foram observadas ênfases comunicativas transmissionais mal percebidas como tal. As falhas em promover saúde, atenuar ansiedades face à necessidade de procedimentos, esclarecer detalhes sobre diversos tipos de intervenção terapêutica, entre muitas outras tematizações, têm sido encaradas pelos autores, salvo exceções (Baillie et al., 2000), como desafios puramente cognitivos. Na literatura científica mundial nos últimos 20 anos, foram selecionados para estudo autores de diversas especialidades e categorias profissionais que destacavam os atributos textuais considerados substantivos em suas áreas. Percebe-se, na área da saúde, tendências invariantes relacionadas à forma de expressão textual o que se deseja analisar no presente estudo em contraste com a tensão de forças derivadas das falhas destes produtos em influenciar pacientes e promover autonomia, como aponta Dixon-Woods (2001). Transcendendo às questões textuais formais e da racionalidade subjacente que os instrui, a autora classifica os textos hospitalares como "iluministas" (herméticos receptáculos da verdade científica oficial) e os impressos que promovem o "patient empowerment", que surgem como contra-reação organizada a superar os lapsos de atributos cognitivos contidos nos primeiros.
No presente estudo não foram avaliados os atributos cognitivos dos impressos em si (legibilidade, adequação eficiente da informação em vista dos propósitos explicitados, incorreções ou lacunas de informação), sobretudo por considerarmos contraditória e improfícua a caracterização de racionalidades por intermédio de si mesmas ao avaliar seus próprios produtos, como não raro observado na literatura (Bauman, 1997; Cole, 1979; Gibbs et al., 1990; Little et al., 1998; Mant et al., 1998; Mumford, 1997; Newton, 1995; entre outros). Não se trata, portanto, de um juízo de eficiência e sim, muito mais, de uma descrição de racionalidades (incluindo comentários sobre pertinências).
Coleta do material
Foram coletados 58 impressos de orientação para pacientes ao longo de seis anos (fevereiro de 1996 a julho de 2002) nas cinco unidades assistenciais do Instituto Nacional de Câncer. Todo material foi elaborado por profissionais da saúde para esclarecer pacientes sobre procedimentos diagnóstico-terapêuticos, influenciá-los na adaptação a determinadas circunstâncias clínicas e alinhar comportamentos às normas de conduta em ambiente hospitalar. Os impressos, segundo a função a que se destinavam, foram classificados em quatro tipos (Tabelas 1 a 4). As versões originais foram coletadas e estudadas pelo Comitê de Padronização de Impressos do Instituto Nacional de Câncer (INCA), grupo responsável pela organização textual e gráfica do material impresso distribuído no Instituto. Os impressos foram remetidos ao comitê para estudo de viabilidade de reprodução na gráfica do Instituto e, em sua maioria, eram reproduzidos em copiadoras a partir de versões editoradas em computadores. Todos foram produzidos por equipes envolvidas na assistência (na sua maioria enfermeiros) e eram distribuídos nos ambulatórios, enfermarias e nas visitas domiciliares
Foco da análise
Tendo em vista o enfoque comunicacional aqui adotado, optou-se por enfatizar os conteúdos dos proferimentos textuais como descrições de estado de coisas (nas suas dimensões objetivas, sociais e subjetivas) que ensejavam a coordenação de planos para ações. Foram estudados os aspectos assertóricos (afirmações, atos de fala constatativos) relacionados à descrição, explícita ou não, de estado de coisas. Além destes, levamos em conta os textos de tom apelativo e imperativo (que remetem às regras do ambiente social em estudo), além dos expressivos (relacionados às experiências e motivações do mundo subjetivo dos autores), como recurso à construção de categorias sensíveis aos modelos instrutores dos discursos.
Construção e características das categorias
Como já mencionado, a construção das categorias se pautou pelo modelo dos atos de fala de Austin (1962) e Searle (1976), modificado por Habermas (1984, 1990), já que foram considerados pelo último como "elementos comunicativos básicos nos quais se inscreve toda a ação social".
Searle (1976), estabeleceu a seguinte taxonomia:
Atos de fala Constatativos: constatação de estados de coisas.
Atos de fala Diretivos: ordens, intenções de que o outro realize um estado de coisas esperado.
Atos de fala Compromissários: promessas de realizar uma ação.
Atos de fala Declarativos: criação de algo novo no mundo (declarar um par casado).
Atos de fala Expressivos: expressão de um estado interno.
Habermas assinala que os atos diretivos de Searle se dividem em diretivos legítimos, isto é, em ordens acatadas com base numa institucionalidade ou legalidade aceitas pela maioria (atos com conteúdo normativo que encerram sentido de justiça e legalidade) e em imperativos, que correspondem a atos de fala que buscam efeitos perlocucionários não explicitados, ou seja, que se inserem em contextos estratégicos, na busca de êxitos. Estes últimos não precisam atender ao critério do entendimento lingüístico, peculiar ao agir comunicativo. Correspondem a atos de fala não compromissados com a autonomia do ouvinte e sim à coordenação indireta da ação estratégica que aqui se apóia em sanções, no exercício do poder e no ocultamento de ideologias. Desta maneira, o autor inclui ambos nos atos regulativos, típicos do agir normativo.
Em síntese, os atos de fala reconhecidos por Habermas são quatro: imperativos (ou perlocuções, característicos do agir estratégico); constatativos; regulativos e expressivos. Os três últimos se inserem na categoria dos atos de fala ilocucionários ou inerentes ao agir comunicativo, onde os fins perseguidos com a ação estão plenamente incluídos no conteúdo do ato de fala e o critério de validade do mesmo é o entendimento. Os atos constatativos e os imperativos estariam voltados para o mundo objetivo dos estados de coisas; os primeiros como meros reconhecimentos de situações de fato, e os segundos com um caráter diretivo imediato, no qual o ouvinte teria de cumprir uma ação segundo orientações não pautadas pelo entendimento (uma orientação que não se explicita integralmente, que reconhece um saber oculto ou monopolizador).
É importante ressaltar que, embora os impressos tenham sido divididos e classificados em termos da função pretendida na dinâmica hospitalar, os textos que os estruturam nem sempre se articulam com tais objetivos. Em outras palavras, seria atraente a vinculação da forma e do sentido à sua utilidade, para melhor compreender a origem das racionalidades envolvidas na produção de impressos. Poderíamos admitir que os textos com ênfases cognitivas são essenciais à produção de impressos educativos. Da mesma forma, os estilos diretivos, se adequariam plenamente à organização de serviços e atividades. Não obstante, pelo material empírico analisado, não encontramos padrões que fundamentassem tais correspondências. Conteúdos cognitivos, diretivos e afetivos estão presentes em impressos com origens e utilização diversas. Há intenções educativas e organizadoras que assumem formatos ora cognitivos, ora diretivos. Estas observações se alinham com o trabalho de Fawdry (1994), que descreveu os impressos hospitalares como projetos pessoais desenvolvidos para atender a demandas setoriais. Em seu artigo critica vários aspectos da cultura hospitalar e sua afeição à produção de papel impresso para transmissão de informações (unilateralmente definidas como relevantes). Reconhece, ainda, que a disseminação deste recurso contribuiu para a compartimentalização de setores classicamente herméticos.
Conteúdos cognitivo-instrumentais
Um aspecto importante é o paralelo com os atos de fala constatativos e sua natureza assertiva (afirmativa que exprime compromisso com uma verdade). Freqüentemente, estão desacompanhados de uma argumentação plena que o vincule à verdade embutida (cuja demanda os autores dos textos não percebem na clientela). Os conteúdos fundamentam-se em pressupostos que não se explicitam de forma clara o que os aproximaria das perlocuções. Na verdade se aproximam mais de verdades reveladas ou depositadas, como descrito em Freire (1979, 1983), com o modelo da "educação bancária". São auto-referenciais já que encontram sentido pleno somente na cientificidade na qual se apóiam. Observa-se abundância de conteúdos impregnados de elementos técnicos, relacionados a fenômenos clínicos de difícil compreensão, embora familiares aos setores-fonte. Há freqüentes descontinuidades argumentativas por conta de assertivas sem qualquer estruturação lógica perceptível (ou por conta de estruturação incompleta, inadequada ou inacessível ao leigo e que não é percebida como tal):"Sinais de alarme: entre em contato se observar ... aparecimento de erupções dermatológicas,... impossibilidade de tomar a medicação prescrita (referindo-se às dificuldades de deglutição) ..." onde se observa a ênfase para o alarme, sem a explicitação do perigo que o encerra.
"Crianças que receberam irradiação no corpo todo devem ser examinadas e acompanhadas quanto ao desenvolvimento dos dentes permanentes..." onde não se estabelecem os nexos entre a radioterapia, o corpo e a dentição.
"É importante observar: ...aumento do tamanho do cateter,... mudanças na saída e trajeto do cateter, como vermelhidão, dor e inchação..." onde não é clara a preocupação com a saída acidental do cateter, além de manifestações de infecção.
Nestes textos, a informação não se impõe por força de recursos imperativos (como na categoria a seguir), já que seu compromisso com uma "missão educativa" se concentraria em "revelar verdades" e não em ocultá-las. Nesta categoria predominam afirmações relacionadas à objetividade dos fatos clínicos, o que leva seus autores à priorização das pretensões de veracidade (sem explicitar nitidamente pretensões de correção ou sinceridade), ordenadas por critérios inadvertidamente mal esclarecidos.
A missão "educativa bancária" (Freire, 1979), que preside a produção destes itens, pressupõe como verdadeiras e acessíveis ao conhecimento as afirmações vinculadas a um objeto ou fato biológico em si (ou a uma relação unívoca e "real"). Tais verdades se ligam às Ciências Médicas e independem do entorno intra-institucional, o que dispensaria, pelo menos provisoriamente, os conteúdos disciplinadores como será visto adiante.
Organização dos conteúdos
Observou-se com freqüência a classificação dos temas por partições anatômico-funcionais, à maneira dos textos técnicos. Desdobramentos de ações diagnóstico-terapêuticas e sintomas que prenunciam complicações são descritos como alterações funcionais segmentadas em sistemas ou aparelhos (A). As percepções e sensações cotidianas são extraídas da dimensão pessoal e deslocados para um campo acessível ao saber/poder biomédico. Da mesma maneira, fenômenos familiares ao senso comum adquirem status de ações intencionais ou de processos patológicos: "se fizer febre...; se evoluir com alergias..."; "em caso de complicações de natureza gastro-intestinal,... respiratória,... neurológica,... imunológica", no lugar de: em caso de sintomas como diarréia, falta de ar, tonteiras, alergia. As ações corriqueiras são tecnicalizadas: "É aconselhável o decúbito lateral" em lugar de "É aconselhável deitar de lado; "... há indicação de deambulação no 2º dia...no lugar de "é prudente retornar a caminhar" "...assim que a ferida formar tecido de granulação" no lugar de "assim que a ferida cicatrizar". Os processos fisiológicos corriqueiros também assumem feições patológicas: "em caso de menstruação no mesmo formato que em caso de febre", "na presença de gravidez" no mesmo formato que na presença de infecção.
Interessante observar que o termo "indicação" aqui adquire status de ato diretivo legítimo no interior da racionalidade médica, instruída por um viés cognitivo-instrumental. A força perlocucionária é atenuada quando a "indicação" se reveste de sentido ligado a uma sugestão de alternativa resolução de problemas (à guisa de sugestão da técnica correta). Por outro lado, sua ênfase seria diretiva se colocada em contexto de exigência de conduta frente a situações que devem ser regidas por critérios clínicos não partilháveis: "em caso de depressão há indicação de medicação antidepressiva". Há conotação de premência por circunstâncias adversas de natureza clínica: "em caso de dor há indicação de analgésicos" atenuando seu sentido de demonstrar, revelar, apontar, designar, enunciar, expor, determinar, estabelecer, esboçar ou aconselhar (Ferreira, 1999).
Conteúdos técnico-diretivos
Nesta categoria encontram-se os textos em que predominam proferimentos apelativos e imperativos relacionados às premências derivadas de necessidades clínicas localmente priorizadas. Importante ressaltar que esta segunda categoria é derivada da primeira (técnica), nos momentos em que esta se apóia em premissas sustentadas pelo saber biomédico. Não obstante, difere no sentido da força perlocutória pretendida quando potencializada pela forma imperativa dos verbos. Além de se estruturar em argumentos independentes de condições individuais e do ambiente externo, incluída aí a ambiência hospitalar, os proferimentos técnico-diretivos se afastam dos cognitivo-instrumentais quanto à sua vinculação unívoca com um único tipo de ambiente, o setor-fonte. Por estes motivos, percebem-se nesta categoria mensagens admitidas como unívocas, que geram desníveis argumentativos e estruturação incompleta, inadequada ou inacessível, posto que esta última se fundamenta em premissas locais. Enquanto os conteúdos cognitivo-instrumentais valorizam como fonte de conhecimento a exposição aos elementos clínicos em si, isolados e com poder transformador próprio, os técnico-diretivos levam em consideração um único ambiente (o mundo clínico do setor-fonte) onde se inscrevem, exclusivamente, tais elementos. Desta feita, os autores "professam sua fé" (Habermas, 1971), não somente na força da verdade cientificamente validada, mas também na correção e adequação destes a um único mundo o setor-fonte onde exercem suas atividades, epicentro do arquipélago hospitalar. Aqui, a missão não é apenas educativa/transmissional revelar conteúdos à maneira dos textos cognitivos-instrumentais mas também disciplinadora. Desta forma, nestes textos proliferam termos que envolvem concessões admitidas "sob júdice": "aguarde liberação para... reiniciar a deambulação, ...reiniciar as atividades sexuais etc".
Função disciplinadora
Há necessidade de alinhar comportamentos para salvaguardar pacientes de riscos. É indispensável, portanto, a observação de uma regulamentação técnica a ser validada em normas apoiadas em um saber complexo pouco acessível ao leigo e que por isto deve ser contornado nos textos. A força perlocucionária de um imperativo necessita de apoio em argumentos de autoridade que validem os proferimentos, no caso, a autoridade biomédica. Desprovido de intersubjetividade, não visa o entendimento mútuo, já que não explicita motivações e sim êxitos ambicionados objetivamente em um contexto onde estes não são declarados. A ação teleológica-estratégica embutida em alguns textos técnico-diretivos, lança mão dos atos de fala perlocucionários na busca de efeitos em ouvintes, como insumo para obtenção de ações que se desdobrem em êxitos.
Como exemplo, citamos uma das versões mais antigas das "orientações para acompanhantes de pacientes internados" de uma das unidades hospitalares do INCA, onde foram incluídas regras sobre os "trajes apropriados aos acompanhantes e visitantes". Tais recomendações se originaram sob a alegação de que havia mulheres jovens que se trajavam de maneira indecorosa, portanto, "inadequada ao ambiente hospitalar". A primeira linha de argumentação (não explícita no plano textual), foi de ordem técnica: "as pacientes recém mastectomizadas se sentiriam inferiorizadas ao lado de acompanhantes ou visitantes com decotes mais exuberantes" A segunda linha de argumentação mais prosaica e igualmente não explicitada no formato impresso não recorreu a argumentos colhidos no terreno psicológico: "as mulheres jovens vestidas indecorosamente excitariam os funcionários, desviando sua atenção de seus afazeres".
Tecnificação da esfera pessoal
Observou-se, como nos conteúdos cognitivo-instrumentais, predileção por verbos derivados de termos atribuídos a procedimentos técnicos, em substituição a atos cotidianos. Não obstante, a revelação de verdades relacionadas à visão de mundo do setor-fonte não é relevante, e sim sua utilização para fins disciplinadores. O texto extrai sua força perlocucionária dos atos cotidianos que se transformam em atos especialistas, deslocando-os da esfera privada para a técnica, onde prevalece a lógica clínica. Desta forma, comportamentos bem familiares ao senso comum se revestem de relevância técnico-instrumental: "higienize (no lugar de lave) a ferida diariamente"; "administre (no lugar de dê) os antieméticos (no lugar de remédios para enjôo)"; "caso visualize (no lugar de observe) manchas avermelhadas"; "não permita que ninguém não habilitado manipule (no lugar de toque) o cateter"; "não se locomova (no lugar de caminhe) sem apoio nos primeiro dias após..."; "caso perceba alterações na gustação" (no lugar de alterações no gosto); "atenção às colorações alteradas" (no lugar de alteração das cores).
Distanciamento por lapsos, impessoalidade e normas
Observamos textos que se destacam por suas prescrições essencialmente técnicas, por vezes de difícil compatibilização com as limitações impostas pela faixa etária e condição clínica (A), limitações sócio-econômicas (B) e condições climáticas (C), o que expressa uma visão homogenizadora, tendência peculiar aos conteúdos impressos: (A) "...após a colocação da colostomia você poderá realizar exercício físicos, esportes e até mesmo atividades aquáticas..."; (B) "...evite lâmpadas de bronzeamento, ...saunas", "use luvas para lavar a louça"; (C) "...proteja sua pele da luz solar até um ano depois do fim do tratamento e use protetor solar fator 15 ou superior".
O débil comprometimento com a adequação do texto à situação socioeducacional dos pacientes também se expressa na complexidade vocabular o que já é fartamente descrito na literatura da qual se pode extrair força perlocucionária: "...em caso de náuseas, ingira antieméticos"
Neste contexto, quanto maior a complexidade na fundamentação dos argumentos acerca de instruções a ser acatadas, maior a impessoalidade dos discursos que se desdobravam em tônicas imperativas. A impossibilidade de descrever um fenômeno biológico complexo e, com base neste, fundamentar argumentação plausível, aliada à necessidade de recorrer à autoridade biomédica, conduz com facilidade a distanciamentos. A postura de índole disciplinadora se distancia ao não esclarecer conteúdos que originam desníveis argumentativos. O discurso impresso é unidirecional e, portanto, não admite espaços para negociação de sentidos. Admite que o conjunto dos receptores é homogêneo, ou seja, assimilam conteúdos unívocos da mesma maneira. A produção de um discurso lacônico e impessoal busca ajustar o molde da univocidade ao ideal de homogeneidade.
O exemplo da interdição à entrada de flores no ambiente hospitalar também é significativo. Na primeira versão do impresso "Orientações aos visitantes do hospital de câncer" existe tal proibição lacônica à entrada de flores, sem argumentação razoável que justifique tal interdição. Na verdade, o texto em um formato mais esclarecedor (que foi acrescentado em versões posteriores) deveria se referir ao risco de infecções que os microorganismos presentes nas flores oferecem aos pacientes imuno-deprimidos.
Podem ser citados numerosos exemplos em que se percebem espaços para argumentação abreviados, por vezes substituídos por conteúdos diretivos técnicos lacônicos. Exemplos típicos são os impressos que tratam da preparação dos pacientes para exames e procedimentos que exigem cuidados especiais. Poucas vezes fornecem sentido para informações do tipo "Coletar o jato de urina intermediário" (para evitar sedimentos indesejáveis acumulados nas paredes da uretra e bexiga), "evitar consumir frutos do mar e pintar os cabelos antes do exame com iodo radioativo" (porque os frutos do mar e a tintura para cabelo contêm altas concentrações de iodo), "ficar em jejum e usar laxativos antes do exame" (para atenuar a interferência de gases e das fezes na qualidade da imagem a ser analisada), entre outros.
Modulações expressivas
Embora as equipes produzam seus papéis educacionais e disciplinadores repletos de jargões, em alguns casos prevalecem elementos expressivos que se revelam tipicamente na necessidade de cultivar conexões intersubjetivas e empatia: " ...a equipe de enfermagem lhe orientará para que você também nos ajude a prestar os cuidados que seu familiar necessita...". Assim como nos demais, são evidentes os conteúdos repletos de ênfases cognitivo-instrumentais e técnico-diretivos, entretanto em alguns trechos emergem nuances afetivas, preocupadas em transmitir mensagens tranqüilizadoras e de solidariedade. A título de comparação para melhor esclarecimento, em alguns textos cognitivos ou diretivos encontramos: "permaneça em decúbito...", enquanto em outros, onde se percebe modulações expressivas, lemos: "fique deitado, repousando..." Em textos especialistas encontramos: "...aguarde parecer do especialista...", "...aguarde instruções do médico..." ou "...o especialista lhe passará a técnica correta..." em contraste com outros de modulação expressiva onde se lê: "... nós lhe ajudaremos a resolver os problemas"... "Aguarde ajuda de seu médico". Sobre a explanação de procedimentos mais complexos podemos encontrar: "...você obterá informações sobre a técnica correta..." ou "...alguém lhe instruirá quanto às normas sobre ..." o que sob modulação expressiva se expressa como: "Alguém lhe ajudará...", "...não hesite em esclarecer suas dúvidas..." "Pergunte-nos em caso de dificuldades".
Percebem-se pretensões de sinceridade e envolvimento afetivo por intermédio de mensagens otimistas, fundamentadas em preocupações com o bem-estar dos pacientes. Também, por conta deste aspecto, os textos são freqüentemente redigidos da primeira pessoa do plural ("nós, da equipe") para a terceira pessoa do singular ("para você, o paciente") ao contrário dos conteúdos técnico-diretivos que se valem da forma imperativa na segunda pessoa do singular ("proceda a preparação,... higienize a ferida") ou na forma infinitiva: "observar alterações;... comunicar sintomas".
Em função do envolvimento individual de profissionais percebe-se que, em alguns textos, os conteúdos cognitivo-instrumentais e técnico-diretivos são modulados com frases que contêm elementos da experiência de vida de seus autores: "...não se preocupe pois seus cabelos voltarão a crescer ainda mais bonitos que antes..." (pós-quimioterapia).
Seleção de imagens, infantilização e paternalismo
Embora mereça análise em estudo à parte, com metodologia específica a este tipo de conteúdo, é interessante ressaltar a seleção dos elementos gráficos na articulação com os conteúdos textuais. Na dimensão cognitiva técnica, as figuras expostas dizem respeito a imagens relacionadas a procedimentos colocação de dispositivos de colostomia, trajetos de sondas, cortes frontais, transversais e sagitais do corpo humano (para explicitação de detalhes anátomo-fisiológicos) etc. Por outro lado, nas modulações expressivas, as imagens adquirem a função de adorno e embelezamento como recurso às aproximações intersubjetivas, preocupadas em se contrapor ao impacto emocional de contextos de sofrimento e dor. Excluindo-se o contexto dos impressos para a Pediatria (inseridas em contextos gráficos e textuais específicos, que almejam comunicação com crianças e seus pais), a infantilização das figuras e a cartunização de personagens é freqüentemente observada em mensagens que expressam o viés da "educação de pacientes".
Na infantilização do estilo textual e gráfico aqui observada, admite-se o risco de expressar uma imagem do outro como sujeito incapaz de situações dialógicas em condições de igualdade, o que acrescenta força à lógica da alternativa transmissional. No esforço de simplificação dos conteúdos ocorre certa tendência à infantilização da linguagem, o que já foi classicamente descrito em outros estudos acerca do tema (Dixon-Woods, 2001; Rozemberg et al., 2002). Observamos a produção de textos com modulações afetivas tipicamente em setores-fonte relacionados às clínicas pediátricas: "Chegando ao hospital com seu filho", "Orientações para internação de crianças", "Radioterapia de crianças", assim como os textos produzidos pelo Grupo de Acompanhantes e pelo setor de Comunicação Social para divulgação de setores e convencimento para doações (sangue, medula óssea).
Sínteses e discussão
Foram estudados impressos para pacientes como projetos setoriais que ambicionam atingir metas comunicacionais. A racionalidade empregada neste tipo de atividade assume que somente a geração de conhecimentos (como se esta dependesse exclusivamente da via impressa), ou a autoridade apoiada na instituição biomédica são capazes de interferir em mudanças de atitudes. Tais pressupostos por atribuírem um peso excessivo à dimensão cognitiva-transmissional dos textos, tendem a desconsiderar quatro aspectos que emergem da leitura reflexiva do material:
Os impressos refletem a fragmentação e autonomização organizacional:
A estrutura insular demarca nitidamente papéis e funções dentro de um mecanismo de autonomização de seus centros operacionais. O processo de integração institucional é comprometido por múltiplas missões corporativistas despidas de pretensões relacionais, o que se expressa nos canais de comunicação entre equipes e destas com seus clientes. Como ressalta Rivera (1996), esta cultura fragmentária suscita, caracteristicamente, ações puramente instrumentais gerando numerosos hiatos comunicativos. Na estabilidade proporcionada por esses hiatos são reproduzidos os fenômenos da organização do trabalho de maneira estanque (em relação às demais atividades do hospital e à ambiência), assim como seu empobrecimento pela redução às suas dimensões técnicas essenciais. No terreno onde impera a objetivização e a especialização de perspectivas a serviço de um esforço de resolutividade, há aproximações problemáticas com dimensões scioeconômicas e afetivas. Estas tendem a ser consideradas como "infortúnios socioeconômico-psicológicos", o que conduz à circunscrição ao âmbito da Psicologia, assim como as dificuldades socioeconômicas são remetidas ao Serviço Social onde são tratadas como questões previdenciárias (Rozemberg et al., 2002).
Acerca da complexidade lexical resta um aspecto dúbio a ser esclarecido quanto aos termos técnicos insensíveis aos seus vínculos com o ambiente externo. Ou são ingênuos porque ignoram os desdobramentos de uma complexidade vocabular involuntariamente assumida ou, não tão ingênuos, uma vez que sedimentam jargões para se afirmar como setores-fonte autônomos e tecnicamente arrojados. A autoridade biomédica é aqui evocada com finalidades perlocucionárias, de controle de comportamentos para prevenção de riscos. Seja por insensibilidades a desníveis cognitivos ou por necessidade de afirmação e controle, a complexidade na fundamentação dos argumentos acerca de instruções a serem acatadas acaba por gerar distanciamentos e impessoalidade. Neste ponto, vale acrescentar que a inexistência da partilha de critérios, mesmo quando adequadamente esclarecido eventual desnível cognitivo, se apoiaria na complexidade vocabular para preservar seus planos autônomos à distância do olhar leigo.
Portanto, além da função educativa, organizadora e captadora de parcerias (assumidas explicitamente) localizamos uma Função Identitária, acionável quando na necessidade de fazer valer normas específicas nas quais os setores-fonte se afirmam como referência perante a organização. Em organizações fundamentadas à base de nichos corporativos, o desenvolvimento de regras guarda vínculos com a necessidade de orientação dos atores ao redor de valores comuns, freqüentemente (mas não exclusivamente) extraídos do terreno técnico. Nesta função se expressariam as normas decorrentes de acordos firmados coletivamente dentro de uma expectativa de comportamento setorial. As pretensões de validade normativa, reconhecidas intersubjetivamente, se relacionam com critérios de validade social e justificação ao redor de valores culturais vinculantes específicos. São manifestações culturais na qualidade de "conjunto de evidências partilhadas na organização", ou, "as regras do jogo informais que seriam vivenciadas pelas pessoas no interior da organização" (Thévenet, 1993 apud, Rivera, 1996). A corporificação de racionalidades na linguagem, pós-configurada em textos impressos que se relacionam aos seus cenários, funcionam como ordens legítimas por meio das quais os participantes da comunicação regulam sua pertença a grupos. As "culturas especialistas" revelam suas estruturas racionais na substituição dos processos de entendimento e coordenação de ações, o que neste trabalho se tenta retratar.
Os textos são conjuntos de mensagens padronizadas e unívocas
Nas justificativas do uso do impresso na comunicação hospitalar, por vezes a palavra escrita aparece como sendo capaz de padronizar o inevitável processo humano de reinterpretação e ressignificação já que "uma vez impressa, qualquer palavra parece adquirir o status de verdade para influenciar o público leigo" (Rozemberg et al., 2002:1686). Percebe-se que os impressos são colocados como recurso para algo que se tem como um "êxito comunicacional", que na verdade se expressa na busca por alinhamentos comportamentais. Parte-se de pressupostos orientados por idealizações sobre eficácia e adstritos ao modelo linear de comunicação. Sob tais perspectivas tudo se passa como se os indivíduos estivessem fixados semântica e socialmente em um universo de sentidos únicos e imutáveis, onde não haveria espaço nas práticas argumentativas às pretensões de veracidade, correção e sinceridade. A negociação de significados com os "elementos receptores" estaria descartada, uma vez que só haveria sentidos unívocos, acessíveis universalmente, sem necessidade de consensos entre os "elementos formuladores" e destes com os seus destinatários. A racionalidade orientadora destes produtos se encontra impregnada da perspectiva sintática, afeita às tecnologias de informação (Watzlavick et al., 1967), como principal instrutora dos estudos de legibilidade de textos.
A recepção dos textos é admitida como homogênea
No campo semântico há ênfase na exposição dos conteúdos, considerados unívocos, partindo-se do pressuposto que sua clientela estaria à procura de referenciais como um grupo homogêneo, que na verdade só existe no imaginário dos autores dos textos. Neste ponto se desconsideram suas motivações específicas como parceiros do processo comunicativo, assim como os lapsos que estes receptores não percebem como omissos, além de sentidos reconfigurados por perspectivas culturais, biográficas etc. Em tese seriam capazes de reconhecer de imediato todos os nós semânticos como sentidos omissos, à maneira de elementos de um quebra cabeças que não faria sentido, mesmo quando completo. Em suma, os elementos receptores, nivelados aos mesmos patamares de significação, são observados como consumidores à procura das informações científicas mais confiáveis. No campo sintático este nivelamento opera por intermédio da redução das mensagens às suas mínimas unidades cognitivas que, no limite, podem se tornar lacônicas ou infantilizadoras (se as modulações afetivas presidirem a produção textual).
As perspectivas biográficas são naturalizadas no discurso técnico, o que se expressa em orientações alienadas (flores, lâmpadas solares). Seja assumindo uma postura de especialista em relação a um leigo, seja se percebendo como um adulto perante uma criança, estes impressos de vocação transmissional, possuem a busca do contato com o outro por suas lacunas e não por seus potenciais. Não percebem nas práticas dialógicas a possibilidade de um enriquecimento mútuo na habilidade de negociar sentidos a partir de referenciais díspares.
Na produção dos conteúdos, o conhecimento e os interesses que o estruturaram são díspares.
Como descrito nos primeiros estudos epistemológicos de Habermas (1971), a natureza dos interesses é que dá sentido aos conhecimentos, e não apenas a informação que é acessada por seu intermédio. Frente a isto, deve-se considerar que os profissionais que produzem manuais e cartilhas de orientação, adquiriram os conhecimentos que desejam transmitir à sua clientela por mecanismos díspares aos dela. A formação fragmentária dos profissionais, enfocada em uma visão organicista e segmentadora dos problemas explicaria dois aspectos encontrados: a divisão de conteúdos por órgãos e sistemas e a natureza assertórica auto-referenciada dos conteúdos. Os autores dos textos são insensíveis à natureza peculiar e diversa dos interesses (instrumentais, relacionados à atividade laborativa) que geraram o saber utilizado para a produção dos seus impressos. Na prática cotidiana, este saber se cristaliza em objetivos clínicos, ora comprometidos com a percepção de um determinado sinal ou sintoma considerado perigoso ("se fizer febre"), ora interessados em uma evolução ("em caso de gravidez"), mas sempre apoiados em premissas fisiopatológicas complexas de difícil explicitação no formato impresso. Não se percebem dentro do seu próprio caldo de cultura ao interagir adialogicamente e ignorar as demais dimensões que participam dos jogos de entendimento. As representações atribuídas à instalação e às repercussões das doenças e tratamentos se apresentam como algo externo, sem relação com seus "reais" condicionantes.
Atitudes desviantes
Embora a atividade de produzir textos para pacientes se encontre impregnada de um viés objetivador e impessoal, projetos pessoais repletos de modulações e atitudes expressivas também podem ser localizados no arquipélago. Segundo Rozemberg et al., (2002), alguns profissionais que desenvolvem isoladamente ou em grupos seus impressos, demonstram um grande prazer da atividade de adaptar conhecimentos científicos para apropriação leiga. Em muitos casos percebe-se uma enfática referência ao impresso, não como um fim informativo em si mesmo, mas como um instrumento útil ao processo comunicativo dialógico, na qualidade de dispositivo auxiliar para uma dinâmica de natureza relacional. No presente estudo observamos que indo além das mensagens técnicas e diretivas, há aquelas com ênfases afetivas que tendem a transgredir a impessoalidade do figurino oficial, dirigindo-se aos pacientes de modo atencioso e acolhedor. Tais profissionais tendem a reproduzir individualmente um processo de descobertas e de desenvolvimento do campo da educação/comunicação em saúde, dentro do qual, por conta do acaso e da necessidade, "assumem um admirável espírito quixotesco e a prepotência de quem reinventa diariamente a roda" (Rozemberg et al., 2002). O processo de isolamento desta iniciativa, expressa sintomaticamente a carência de uma política de comunicação regular e saudável no interior das instituições de saúde e o lugar de exceção que ocupam tais profissionais por iniciativa própria.
Conclusões
O hospital como organização insular aglomera especialistas motivados ao conhecimento por interesses instrumentais. Tais interesses os conduziram às representações biologicizadas, que observam a doença como fenômeno já instalado, à parte de uma ambiência socioeconômica historicamente inscrita em uma biografia. O caráter organizacional autonomizado e policêntrico do hospital, impulsionado pelos ditames da produtividade e eficiência, cultivam contatos adialógicos circunscritos a diversas categorias profissionais de diferentes especialidades. Estas equipes fundamentam seu discurso na viabilidade de ações coordenadas sem entendimento, além de excluírem a possibilidade das entrevistas profissionais se prestarem ao enriquecimento mútuo pelo diálogo.
A organização se percebe assim como uma conjunção de equipes de especialistas atentos a hiatos cognitivos nos quais seria possível injetar informações (com variadas ênfases expressivas). À medida que tais desafios cognitivos fracassam percebe-se, pelo estudo da literatura dedicada a este tipo de atividade, que há escassez de recursos que dêem conta de ambições comunicacionais, ainda não identificadas como tal. A atenção técnico-instrumental se volta para as falhas de seus apetrechos de comunicação.
Este trabalho se ocupa da compreensão da natureza das fontes culturais de onde o saber institucionalizado se abastece para construir seus sistemas de significação. Para construção de um modelo teórico que nos possibilite o acesso a tais sistemas, nosso foco se deslocou à procura dos eixos comunicacionais do discurso impresso. Partimos do estudo de artefatos impressos, substitutos dos atos de fala, elaborados para superar as demandas comunicativas. Levamos em consideração a origem econômica e instrumental de suas culturas geradoras, seu processo de reprodução nas relações de trabalho atomizadas e autônomas, e o modelo positivista instrutor da compreensão de seus objetos clínicos. Percebemos, por fim, que na atividade de produzir textos (admitida nestas organizações como comunicação impressa) há metas diretivas, identitárias ou educacionais, enfeixadas pela intenção de conferir concretude à informação, como um objeto que se almeja transferir sob variadas ênfases expressivas.
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Recebido em 24 de janeiro de 2003
Versão final reapresentada em 4 de abril de 2003
Aprovado em 21 de julho de 2003