“Olá + convite: ‘Como as coleções terminam’”: o incêndio do Museu Nacional e histórias compartilhadas

Ricardo Ventura Santos Sobre o autor

Hello + invitation: ‘How Collections End’”. Esse era o “assunto” de uma mensagem eletrônica que recebi em 9 de maio de 2017 de Jenny Bangham, uma colega inglesa, historiadora da ciência. Conhecedora do meu vínculo com o Museu Nacional e de meus interesses nas áreas da Antropologia da Ciência e História da Antropologia, convidava para um seminário que estava organizando em parceria com Emma Kowal e Boris Jardine. O convite indicava que o intuito era reunir pesquisadores “...who write about biomedical collecting with those who study art and museum collections... We hope that talking about ‘endings’ - such as dispersal, completion, failure, loss, suspension and recycling - will offer a new perspective on the dynamics that shape collections, and the differences (and similarities) between biomedical and museum practices”. No texto de descrição do seminário, eram mencionados exemplos tão variados como o destino de coleções dos mais diversos objetos (rochas etc.) feitas por crianças (e como se dissipam ao longo da vida) e, no contexto dos debates pós-coloniais contemporâneos, as discussões sobre o retorno de coleções de arte grega albergadas em museus ingleses desde o século XVIII, assim como o “repatriamento” de materiais de procedência indígena em museus de história natural e laboratórios de ciência nas mais diversas partes do mundo. Também assinalavam os organizadores: “The end of collections is not always a passive process of neglect or absorption: ending can be violent and final”.

Achei a proposta original e (como me pareceu na ocasião) inusitada. Como estava com uma intensa agenda de viagens, não sem lastimar, optei por não aceitar participar pessoalmente. Não obstante, mencionei o convite para a colega Ana Carolina Vimieiro, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, que realizou pós-doutoramento na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) sob minha supervisão em 2017-2018. Findamos por redigir um trabalho para o seminário de Cambridge sobre coleções de antropologia biológica relacionadas a povos indígenas no Brasil. Na ocasião, Ana Carolina e eu discutimos muito como vincular as reflexões que estávamos realizando com o tema do “fim de coleções”. O argumento principal do texto foi de que, ao longo das últimas décadas, diversas coleções científicas do campo da antropologia biológica no Brasil têm experimentado uma radical transformação de suas configurações físicas. Se durante um longo período de tempo predominou, quase unicamente, um regime de colecionar remanescentes esqueléticos humanos em museus de história natural (caso exemplar das coleções ósseas de origem humana do Museu Nacional), as materialidades se transformaram, como exemplificado pela crescente proeminência de repositórios digitais de dados sobre frequências genéticas e de informações sociodemográficas, agora hospedadas em “nuvens” computacionais. Assim, os exemplos que analisamos em nosso texto eram menos de “fins de coleção” do que de reconfigurações relacionadas a in/materialidades. O seminário aconteceu na Universidade de Cambridge (Reino Unido) de 24 a 26 de outubro de 2017 e teve como título How Collections End: Objects, Meaning and Loss in Laboratories and Museums (https://networks.h-net.org/node/9782/discussions/538466/how-collections-end-objects-meaning-and-loss-laboratories-and, acessado em 25/Out/2018).

Quando comecei a redigir esse Editorial, introduzindo os dois artigos 11. Sá DM, Sá MR, Lima NT. O Museu Nacional e seu papel na história das ciências e da saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00192818.,22. Mendonça de Souza S, Rodrigues-Carvalho C. Meteoritos, dinossauros, borboletas... e também saúde. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00190918. do Espaço Temático “Museu Nacional e Saúde Coletiva” de CSP, escritos no contexto do devastador incêndio de 2 de setembro de 2018 e que destruiu a maior parte das coleções do Museu Nacional, veio à minha mente o convite para o seminário de Cambridge. Em certa altura da mensagem de Bangham, Kowal e Jardine aparecia a pergunta: “Do you have a story about ‘endings’ that you would like to share?”. Ao longo dos meses quando Vimeiro e eu discutimos nosso texto para o seminário, a lembrança que tenho é a de que estávamos sempre buscando nos aproximar do tema, uma vez que a questão do “fim das coleções” nos parecia distante, mesmo etérea. Muito infelizmente, desde dois meses para cá, temos, sim, eu e muitos outros colegas, não uma, mas múltiplas, próximas e duramente concretas “estórias sobre ‘términos’” a compartilhar.

Congratulo a editoria de CSP pela sensível e importante iniciativa de abrir as páginas do periódico para publicar os textos O Museu Nacional e seu Papel na História das Ciências e da Saúde no Brasil11. Sá DM, Sá MR, Lima NT. O Museu Nacional e seu papel na história das ciências e da saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00192818., de autoria de Dominichi Miranda de Sá, Magali Romero Sá & Nísia Trindade Lima, e Meteoritos, Dinossauros, Borboletas... e Também Saúde22. Mendonça de Souza S, Rodrigues-Carvalho C. Meteoritos, dinossauros, borboletas... e também saúde. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00190918., de Sheila Mendonça de Souza e Claudia Rodrigues-Carvalho. As autoras, assim como eu próprio, somos pesquisadores, vinculados ao Museu Nacional e/ou à Fundação Oswaldo Cruz, que atuam em campos tão diversos como História e Sociologia da Ciência, Antropologia Biológica e Arqueologia, e que têm em comum trajetórias de pesquisa associadas às coleções do Museu Nacional. Além disso, dividimos um profundo envolvimento com a construção de parcerias entre as duas instituições ao longo das últimas décadas. As histórias que os dois textos compartilham exemplificam a magnitude e a capilaridade das redes de colaborações entre duas instituições centenárias e centrais na trajetória das ciências e das políticas públicas no Brasil.

Muito já se escreveu desde o fatídico 2 de setembro sobre o que representa, tanto na chave das perdas como das reconfigurações, o desastroso incêndio do Museu Nacional para nossa memória histórica coletiva, e como reflete as formas como o Estado tem priorizado, nas mais das vezes insuficientemente, o desenvolvimento científico no país 33. Zamudio ZR, Kellner A, Serejo C, de Britto MR, Castro CB, Buckup PA, et al. Lack of science support fails Brazil. Science 2018; 361:1322-3.,44. Graham F. Catastrophic fire at Brazil’s National Museum likened to burning of library of Alexandria. Nature 2018; 3 set. https://www.nature.com/articles/d41586-018-06176-9.
https://www.nature.com/articles/d41586-0...
. Em anos recentes, infelizmente temos convivido com muitos outros exemplos de “términos violentos” de importantes coleções e patrimônios culturais e científicos no país, como foram os casos dos incêndios da Capela Histórica da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo e do prédio de coleções zoológicas do Instituto Butantan, somente para citar alguns poucos casos.

Tomo os textos publicados no Espaço Temático como reflexões que transcendem o que aconteceu no Museu Nacional, fazendo-nos pensar sobre, como sociedade, concebemos e queremos preservar e construir, por meio de nosso patrimônio histórico e científico, nosso passado, presente e futuro.

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    Sá DM, Sá MR, Lima NT. O Museu Nacional e seu papel na história das ciências e da saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00192818.
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    Mendonça de Souza S, Rodrigues-Carvalho C. Meteoritos, dinossauros, borboletas... e também saúde. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00190918.
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    Zamudio ZR, Kellner A, Serejo C, de Britto MR, Castro CB, Buckup PA, et al. Lack of science support fails Brazil. Science 2018; 361:1322-3.
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    Graham F. Catastrophic fire at Brazil’s National Museum likened to burning of library of Alexandria. Nature 2018; 3 set. https://www.nature.com/articles/d41586-018-06176-9
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2018
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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