O parto e o nascimento são eventos que interessam, e muito, à sociedade, como já nos disse Maria Lúcia Mott 11. Mott ML. Parto. Revista Estudos Feministas 2002; 10:399-401.. E, para serem compreendidos, precisam de múltiplos olhares. Diferentes disciplinas produzem aproximações distintas, que, somadas, ampliam a noção da complexidade desses eventos. Em que pese essa complexidade, nem sempre nos atentamos ao modo como ela se traduz nas práticas de atenção à saúde. O parto e o nascimento têm sido alvo de políticas públicas que buscam incidir em mudanças relevantes nas suas práticas, entre elas a realização excessiva de cirurgias cesáreas, em um contexto mais ampliado de medicalização 22. Nicida LRA, Teixeira LAS, Rodrigues AP, Bonan C. Medicalização do parto: os sentidos atribuídos pela literatura de assistência ao parto no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:4531-46.. O cenário do parto no Brasil pôde ser melhor conhecido a partir do inquérito nacional sobre parto e nascimento (2011-2012) 33. Grupo de Pesquisa Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento (2011 a 2012). https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/?us_portfolio=nascer-no-brasil (acessado em Jun/2023).
https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/?... , mas cada nova abordagem nos apoia no percurso de desvendar especificidades desses eventos, de modo a garantir uma atenção pautada nos direitos (não só reprodutivos), na equidade e na humanização.
É nesse sentido de contribuição para a compreensão da diversidade e complexidade do parto que o livro O Parto na Luz do Daime: Corpo e Reprodução entre Mulheres na Vila Irineu Serra44 . Barreto JNR . O parto na luz do Daime: corpo e reprodução entre mulheres na Vila Irineu Serra. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.é aqui apresentado. Fruto da tese de doutorado da autora Juliana Nicolle Rebelo Barretto, a etnografia de oito meses junto à comunidade hoasqueira da Vila Irineu Serra - localizada no Município de Rio Branco, Estado do Acre, Brasil - provoca reflexões sobre relações de poder e hierarquias de gênero, fronteiras entre remédio e drogas (discussão muito bem situada e argumentada, por sinal) e, o ponto chave, sobre corpo e reprodução entre mulheres que interseccionam os rituais de parto e os rituais religiosos.
Essa intersecção talvez seja uma grande novidade para os pesquisadores e leitores sobre gestação e parto no Brasil. Com riqueza de detalhes, é possível mergulhar com a autora na compreensão de como gestações, partos e pós-partos foram vivenciados na cultura do Daime no Acre por mulheres “hoasqueiras” - em referência a hoasca, ou ayahuasca, uma bebida feita geralmente a partir da infusão vegetal.
O livro, desde a apresentação, instiga a problematizar a convivência de saberes e os percursos de cuidados empreendidos por diferentes mulheres, a forma como “o sistema de saúde” lida com mulheres que conjugam esses saberes e o traduzem em seus rituais de parto e, sobretudo, como hierarquias de gênero são preservadas (ou subvertidas) pelo feminino reconhecido como força e potência na reprodução.
Os três primeiros capítulos situam o leitor de modo contundente no tema. O capítulo 1 - Hoasca e as Políticas no Brasil - é base fundamental, em especial para quem não tem proximidade com a discussão sobre ayahuasca e as disputas narrativas entre uso religioso e consumo nocivo de drogas alucinógenas, principalmente entre gestantes. Os capítulos 2 - Pesquisa de Campo - e 3 - A Vila Irineu Serra -, além do texto, são enriquecidos por desenhos e fotos, que permitem ao leitor conhecer como e onde a pesquisa foi realizada. Neles, a autora registra os passos da incursão etnográfica, o acolhimento na vila, sua participação nos encontros, além de mostrar como os desenhos podem ser ricos em registros de campo na pesquisa. A Vila Irineu Serra ganhou vida com texto e imagens, assim como com a descrição dos rituais, hinos e o detalhamento da relação da comunidade com Nossa Senhora da Conceição.
Os capítulos 4 - Partos, Daime e Feminização da Hoasca - e 5 - Corpo e Percepção - são o ponto alto do livro. Neles, vemos as relações de gênero no ritual religioso, que, com o parto - evento de mulheres -, ganha novos contornos, bem como a convivência entre religião e biomedicina, que ora são complementares e ora a primeira é soberana e exclui a outra. Apoiada de modo consistente em literatura específica da antropologia, a autora guia o leitor por um universo em que o parto desafia a lógica dos saberes biomédicos. Desse modo, conhecimentos da medicina e da religião transitam e não determinam uma forma única, nem de lugar - casa ou hospital -, nem de práticas - força do parto e força do Daime -, mas se interseccionam e produzem modos próprios de sentir, viver e compreender os eventos reprodutivos no corpo feminino.
O “Daime que protege” e “a bebida que ajuda” são a tônica do capítulo 5, em que vemos em minúcias como os eventos do corpo feminino são percebidos como canais abertos à potencialização pela bebida, assim como o ritual de recepção do filho na crença, com o nascimento à luz do Daime. Desses capítulos, fica a síntese de que a vivência na comunidade de Vila Irineu Serra no contexto atual e as transformações nas práticas de parto (internas e externas à comunidade) ressignificam as compreensões do que é um corpo feminino entre as mulheres hoasqueiras.
Fechando o livro, as considerações finais da autora são um convite a relembrar os pontos centrais e a sair dessa imersão no parto na luz do Daime levando boas reflexões.
O livro é interessante para quem gosta de literatura sobre parto, mas destaco também como necessário para os que apreciam o estudo de rituais. Para aqueles que acompanham discussões sobre o uso da “beberagem”, a leitura pode ser uma incursão relevante, considerando que o consumo da bebida nos rituais religiosos ainda é um dilema, por vezes incluído no contexto das políticas relacionadas às drogas. A presença da hoasca nos eventos de gestação e parto pode ser ainda mais desafiadora à compreensão, mas de certo subsidiará a compreensão do sagrado (feminino) proporcionado por ela.
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- 1Mott ML. Parto. Revista Estudos Feministas 2002; 10:399-401.
- 2Nicida LRA, Teixeira LAS, Rodrigues AP, Bonan C. Medicalização do parto: os sentidos atribuídos pela literatura de assistência ao parto no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:4531-46.
- 3Grupo de Pesquisa Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento (2011 a 2012). https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/?us_portfolio=nascer-no-brasil (acessado em Jun/2023).
» https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/?us_portfolio=nascer-no-brasil - 4Barreto JNR . O parto na luz do Daime: corpo e reprodução entre mulheres na Vila Irineu Serra. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Set 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
05 Jun 2023 - Aceito
16 Jun 2023