O artigo “A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade” apresenta, de forma contundente, o fenômeno da separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade em Belo Horizonte. Utilizando o método cartográfico, o artigo analisa os aspectos que contribuíram para os movimentos indutores dessa separação e a relação entre essas ações de segregação, os seus efeitos e a produção de determinada concepção de mundo.
Pela perspectiva da Saúde Coletiva, queremos apontar aqui três aspectos que complementam e buscam expandir a análise apresentada.
Em primeiro lugar vale notar o uso, pelo Sistema de Justiça, do conceito epidemiológico de risco para justificar uma política higienista e de violação dos direitos humanos de mulheres em situação de extrema vulnerabilidade. A normatização apresentada parece assumir uma relação pretensamente causal entre elementos tão diversos como o abuso de drogas, a situação de rua, a violência ou negligência e a ausência de pré-natal com um provável dolo futuro às crianças. O artigo aponta tal uso como limitado e contraditório, e gostaríamos de discutir melhor aqui quais são esses limites que consideramos inerentes ao conceito, da forma como estabelecido, para lidar com problemas médico-sociais e complexos.
Risco, em Epidemiologia, refere-se a uma associação probabilística diferente do acaso entre fatores associados e um evento/doença potencial em uma população e um tempo determinados. O risco estabelece a diferença de chance de adoecer entre expostos e não expostos a determinado fator, com base em fatores e doenças/agravos definidos e medidos de forma padronizada em cada indivíduo e então agrupados em categorias. O uso do conceito de risco para estabelecer relações de “causalidade” parte de uma pretensão que pouco se sustenta11 Almeida-Filho N, Coutinho D. Causalidade, contingência, complexidade: o futuro do conceito de risco. Physis [Internet]. 2007 [citado 29 Set 2022]; 17(1):95-137. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100007
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200700... da perspectiva lógica quando tratamos de fenômenos sociais. No caso em tela, os problemas elencados são extremamente complexos, heterogêneos, mensurados de diferentes formas, e os riscos associados para a mulher e seus eventuais filhos têm magnitudes e evidências científicas diversas. Se pode ser verdade que filhos de mães que fazem abuso de substâncias ou estão em situação de rua podem ter maior probabilidade futura de algum evento adverso à saúde em relação àquelas que não apresentam essas condições, é impossível prever pelo método epidemiológico quais serão as crianças de uma determinada população que apresentarão tal efeito – e quais as que não. O risco é populacional por definição e não pode ser aplicado ao caso individual em termos de chances para cada mulher. Dessa maneira, propor como intervenção decorrente desse conhecimento científico de que todas as mulheres classificadas como portando esse “fator de risco” tenham seus filhos retirados delas, tem problemas incontornáveis como política pública de Estado, estabelecendo clara injustiça e uma punição antecipada por algo que é possível, até provável, mas não certo que vá acontecer.
Por outro lado, as mulheres, elas mesmas também expostas aos “riscos” aqui citados, sintomaticamente não estão recebendo proteção para os efeitos potenciais das situações de risco às quais estão submetidas. As ações de políticas públicas que podem diminuir a vulnerabilidade dessas famílias, que não é inevitável nem natural, são ignoradas em detrimento de uma política que visa unicamente a suposta “proteção” da criança retirando-a do convívio familiar. As situações de risco elencadas são complexas, interconectadas (a situação de rua aumenta a vulnerabilidade à dependência química, por exemplo), e sua modificação exige o trabalho conjunto das políticas públicas no sentido de garantir direitos básicos da população, superando o conceito de risco em direção à compreensão da vulnerabilidade apresentada em seus componentes sociais, programáticos e individuais. O artigo apresenta o estranhamento das trabalhadoras da Saúde e da Assistência Social com a proposta de intervenção do Ministério Público e do Sistema de Justiça. Estar em contato com cada mulher, com a família e a contingência de cada caso, suas particularidades e os afetos envolvidos, possibilita às trabalhadoras da Saúde e da Assistência Social que proponham estratégias de intervenção mais adequadas e ajustadas a cada caso, baseadas não apenas no conhecimento dos riscos envolvidos, mas também em seu saber prático.
Na normatividade proposta pela Justiça mediante exclusivamente o conceito de risco, a dependência química ou a situação de rua acaba por passar de uma situação que traz maiores probabilidades de eventos adversos para mulheres e crianças para a de definição da mulher mesma como um risco para seu filho, risco que precisaria ser então evitado pela retirada da guarda e o afastamento da criança da mãe. Em vez de uma mulher vulnerável, em situação de violação de direitos fundamentais, ela se torna o próprio problema e seu afastamento da criança se apresenta como a solução, culpabilizando-a individualmente e invisibilizando o problema social.
Em segundo lugar, é importante atentarmos para as impossibilidades de trabalho intersetorial nesse caso. O trabalho intersetorial entre serviços, que deveriam atuar em rede como forma de garantir os direitos constitucionais do cidadão, é fragilizado pela ideia expressa pelos trabalhadores da rede nesse artigo de que a Justiça precisaria agir para proteger a criança de uma percebida “inoperância” da Saúde e da Assistência Social. Essa visão demonstra expectativas distorcidas sobre o que cada setor da sociedade pode fazer para garantir a saúde e os direitos humanos de todos, enquanto um precário funcionamento consensualizado entre os serviços aumenta a vulnerabilidade. A dificuldade de ação intersetorial e a desconfiança mútua parecem ser evidenciadas no artigo. O Sistema de Justiça e o Ministério Público recusaram-se a participar do estudo, e a análise evidencia quanto a Saúde e o Serviço Social se sentem desacreditados pela Justiça, que busca ditar como deve se dar a “proteção” da criança. O setor de Saúde tem como atribuição cuidar de mulheres e homens com abuso de substâncias, mas não há como garantir a abstinência total e para sempre em tais casos, que são tradicionalmente de grande recidiva. Se a Saúde pode reduzir danos e ter resultados muito positivos em alguns casos, em outros o cuidado terá resultados menos efetivos. A dependência química está associada a elementos subjetivos e objetivos da vida de cada pessoa e o cuidado deve levar em conta esses elementos, entendendo-se a dependência química também como relacionada às condições de vida e relações às quais as pessoas estão expostas. Os próprios profissionais entrevistados parecem ter pouca clareza disso, quando quase se desculpam pelas dificuldades de acesso e pela falta de profissionais em quantidade suficiente. Se é real que os serviços de saúde precisam de mais recursos, é uma fantasia imaginar que, mesmo em uma situação ideal, a Saúde poderia fazer frente à tarefa de enfrentar esse problema isoladamente. Políticas públicas de proteção aos direitos fundamentais, garantindo habitação, alimentação, trabalho, creche/escola, transporte e lazer para todos, e especialmente para os mais vulneráveis, são fundamentais para o trabalho da Saúde nesses casos, e não podem ser providas pelos serviços de saúde, necessitando efetiva ação intersetorial com articulação das ações objetivas do trabalho e da interação entre seus agentes22 Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência - da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-24..
Por fim, ressaltamos quanto essa forma de governo dos corpos reproduz normas tradicionais de gênero que buscam produzir mães ideais pelo contraste com mães transgressoras. As mulheres que perdem seus filhos são pretas e pobres, de extrema vulnerabilidade. Não há recomendação nem empenho em incluir os pais e a família extensa no cuidado dessas crianças, que ficam exclusivamente relegadas às condições da mãe e seu comportamento preestabelecido por fatores de risco isolados. Ao contrário, a política apresentada exclui a paternidade e o fortalecimento dessa relação no cuidado das crianças, no caso de mães fragilizadas. Essa construção cotidiana do ideal de mãe correta e abnegada aqui retratada, com a cruel anulação das mulheres silenciadas como sujeito e punidas antecipadamente por um risco futuro, afeta a todas as mulheres que ficam submetidas a uma idealização e a uma falta de apoio à maternidade que têm efeitos muito concretos no cotidiano de todas, com consequências mais cruéis para as de maior vulnerabilidade.
- d’Oliveira AFPL. Crianças e mulheres em situação de vulnerabilidade: cuidado ou segregação?. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220504 https://doi.org/10.1590/interface.220504
Referências
- 1Almeida-Filho N, Coutinho D. Causalidade, contingência, complexidade: o futuro do conceito de risco. Physis [Internet]. 2007 [citado 29 Set 2022]; 17(1):95-137. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100007
» https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100007 - 2Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência - da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-24.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
04 Out 2022 - Aceito
10 Out 2022