Ciencias Sociais e saúde

1997

Em duas ocasiões, por iniciativa da ABRASCO, o debate sobre Ciências Sociais e Saúde reuniu centenas de interessados no tema. Nestes momentos, o rigor científico, a inovação e ousadia intelectuais conviveram com a militância, o experimento e as expectativas utilitárias do conhecimento.

Nas duas últimas décadas, os ventos e eventos da História sopraram, com intensidade e dramaticidade, em todas as direções, sem nunca se acalmar. Para as Ciências Sociais, eles tiveram o efeito de um inesperado furacão. Foram ventos que não atingiram apenas as Ciências Sociais e a Saúde Coletiva, mas também a todos os saberes, práticas, modelos relacionais e utopias que orientaram algumas gerações.

Ninguém duvida ou questiona que as mudanças estão por toda a parte, desafiando as razões, teorias, formas de representação e metodologias. Reaprender a olhar e reordenar os fatos, bem como a reorientar-se neste mundo, tornaram-se desafios de sobrevivência.

O Brasil, dos anos 80, produziu uma armadilha histórica e institucional que permitiu à Saúde Coletiva viabilizar uma possibilidade única: intervir e modificar diversos planos do real e, ao mesmo tempo, produzir conhecimento, condenando-nos a repensar a trajetória iniciada pela Saúde Coletiva, e os parâmetros que orientaram este agir e pensar. Um desafio que a Epidemiologia enfrentou com êxito, incorporando novos caminhos.

Na década de 70, os profissionais de saúde, empenhados em influenciar ou recuperar o debate, utilizaram-se dos conhecimentos das Ciências Sociais, que forneceram ou influenciaram a adoção de ferramentas teóricas e metodológicas para a discussão e o encaminhamento das estratégias do movimento sanitário, muitas vezes em prejuízo do conteúdo analítico. Estudando a história da incorporação das Ciências Sociais à Saúde, encontramos uma relação entre os acontecimentos institucionais, o debate intelectual e a militância social ou corporativa, e a forma como as categorias ou os conceitos científicos foram considerados segundo conveniências conjunturais e filiação ideológica ou partidária, permitindo compreender a lógica que permitiu a introdução de temas, teorias e metodologias no campo.

No Brasil, da mesma forma que nos demais países da América Latina, a Saúde tem constituído um tema fundamental para os estudiosos das tramas modernas que atingem, de diferentes modos e intensidade, as populações, instituições e políticas destes países, permitindo a produção de diferentes expectativas, projetos e discursos sociossanitários.

Com toda segurança, é possível afirmar que a análise da Saúde pelas Ciências Sociais ajudou a provocar, nas duas últimas décadas, inovações teóricas e contribuições históricas sobre nossa sociedade e seus dilemas, como ocorreu com poucos temas e disciplinas.

Neste trabalho, Ciências Sociais e Saúde, organizado por Ana Maria Canesqui e lançado pela Hucitec/ ABRASCO, observa-se que as sucessivas incorporações teóricas e temáticas demonstram que, além de uma problemática rica, estamos diante de um tema complexo, em relação ao qual as pistas e marcas do tempo e lutas institucionais, sociais e discursivas insistem em provocar novos problemas e possibilidades analíticas.

A Saúde Coletiva, nos anos 70, empunhando alguns conceitos e métodos das Ciências Sociais, construiu o seu caminho. A idéia e o uso das Ciências Sociais pelos profissionais da Saúde, bem como a prática decorrente deste processo trouxeram diversas e contraditórias repercussões sobre o campo do conhecimento. É importante enfatizar que este campo, ao menos até a segunda metade dos anos 80, esteve permanentemente sujeito às críticas e à desconsideração de segmentos da corporação dos cientistas sociais, que viam apenas "militância" no enfrentamento temático.

A Saúde Coletiva, apreendida como uma construção histórica, dotada de cotidianidade, atores individuais e coletivos em diferentes lutas e projetos, fez-se complexa e tensa, terreno em constantes e inesperados movimentos, não convivendo com qualquer possibilidade de perceber seu objeto como unidirecional e unidimensional, o que facilitaria a busca de construção de caminhos alternativos e bases de sustentação em disciplinas nas quais a interdisciplinaridade estivesse claramente definida, num campo intelectual e técnico em que tudo é recente, emergente e urgente.

A natureza do objeto das Ciências Sociais não admite a hegemonia de nenhuma temática ou olhar, demonstrando as transformações e tendências que influenciaram o pensamento e a formulação de políticas no setor. A produção das Ciências Sociais em Saúde sempre se caracterizou por permitir enfoques e motivações diversas.

A Saúde Coletiva não seguiu um caminho linear, tranqüilo, homogêneo. A hegemonia discursiva que orientou os profissionais de saúde e militantes do movimento sanitário não passou de mais um generoso e abrangente projeto, derrotado em meio a tantas lutas sociossanitárias.

Canesqui, com base no debate realizado durante o I Encontro de Ciências Sociais e Saúde, realizado em Belo Horizonte, publicou Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva, Hucitec/ABRASCO, em 1995, onde observou que as concepções e abordagens da Saúde Coletiva estavam "perpassadas por questões relativas ao campo do conhecimento e às inflexões de natureza política e ideológica, refletindo seus efeitos na seleção de temáticas à pesquisa, na produção do conhecimento, na forma de incorporação das ciências sociais e nas relações com outros campos disciplinares no âmbito da Saúde Coletiva". A autora observou, ainda, que tal procedimento garantia uma perspectiva especializada e peculiar ao trabalho do cientista social, empenhado em um "esforço pluridisciplinar".

No I Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde, organizado em Curitiba pela ABRASCO, no ano de 1995, Ana Maria Canesqui constatou ser característica da produção das Ciências Sociais em Saúde, no Brasil, a extrema desconcentração temática, de metodologias e teorias adotadas. Outra característica é a pluralidade de profissionais oriundos de diferentes campos de especialização, o que reforça uma característica-síntese deste campo de conhecimento, como possibilidade de constituição interdisciplinar.

Com base neste Congresso, Canesqui organizou o livro Ciências Sociais e Saúde, tendo como pano de fundo os debates e temáticas enfrentados naquela oportunidade. A obra possui organicidade e lógica entre as suas unidades temáticas. O itinerário proposto apresenta distintas maneiras de compreender e explicar o universo social e sanitário. Trata-se de uma ferramenta necessária para a compreensão e consolidação do campo nas últimas décadas, retomando uma série de problemas de natureza pluridisciplinar que alimentam e revigoram o pensamento social.

A seleção e a organização dos textos, fragmentos expressivos de um longo e tenso debate, demonstram a riqueza atual do debate, bem como as armadilhas colocadas ao pensamento e à intervenção no sistema de saúde. As tradicionais oposições entre objeto e sujeito, idealismo e materialismo, etc, foram substituídas pela complexidade do aprofundamento analítico e da especificidade histórica. Os temas tradicionais renovaram-se pela revisão bibliográfica, documental, e a incorporação de novas técnicas de recuperação das fontes e informações.

Reafirmando a interdisciplinaridade como "marca" das Ciências Sociais na Saúde Coletiva, Canesqui, em Ciências Sociais e Saúde, considera que ela se impõe, "a despeito das tensões e conflitos que se manifestam no plano do saber, instituições e das relações de força implicadas nos cerceamentos disciplinares".

A primeira parte do livro, Ciências Sociais e Saúde: Reflexões sobre o Campo do Conhecimento (1995), é um convite à reflexão. Partindo da construção do campo da Saúde, remete à própria natureza da crise e das possibilidades científicas contemporâneas. Em seus cinco artigos, fica demonstrado que a saúde não convive mais com a ilusão de soluções e análises descontextualizadas ou simplistas, apontando que a construção intelectual do campo, sua institucionalização e novos objetos exigem uma inquietude e capacidade de articulação com outros saberes e discursos que tornam as análises dos anos 80 uma realidade intelectual distante no tempo e desejo. Tema que não diz respeito apenas ao Brasil, mas ao cenário latino-americano, obrigando o campo a buscar originais no enfrentamento de novos objetos que desafiam a sobrevivência da capacidade de reprodução da ordem social excludente.

A segunda parte, "Política de Saúde", aborda diferentes armadilhas criadas pelo desafio de, numa conjuntura de profunda desesperança e de reorganização das esferas sociais, apresentar respostas objetivas às demandas da sociedade, diante da ênfase do olhar econômico e mercadológico, que evita enunciar ou admitir qualquer política que não seja de exclusão social, desinteressado que está o Estado das conseqüências sanitárias e de produzir saúde e democracia simultaneamente.

É possível perceber que a tarefa de pensar e intervir no sistema de saúde corresponde a um esforço de compreensão de um cenário que custou a muitos envolvimento e decepções, com graves efeitos para a democracia, para a reorganização institucional, com a explicitação de diferentes concepções terapêuticas e assistenciais, que em nada melhorou a saúde da população. As teses que insistiram em centralizar no Estado suas estratégias, deixaram em segundo plano a sociedade e demonstraram incapacidade de perceber que Estado e poder não são sinônimos, nem garantia de eficácia política ou assistencial. Ainda mais quando se acrescenta ao cenário um violento processo de crise fiscal, gerencial e de governabilidade.

A terceira parte do livro, "As Ciências Sociais e os Serviços de Saúde", remete a algumas das armadilhas que historicamente marcaram os modelos de compreensão do campo. É demonstrada a necessidade de reconceituar a ação estatal, considerando os mecanismos de pactuação das demandas, de definição das ações e políticas, bem como do estabelecimento das políticas de controle social, que, em verdade, tem-se caracterizado apenas por controle parcial e localizado de ações e políticas estatais. Os serviços de saúde, identificados pela população como o sistema médico estatal, transformaram-se numa ameaça que não reconhece nenhum respeito ou direito. Não produz ou convive com a cidadania, mas com o discurso de um suposto direito que explicita apenas a lógica da própria política pública.

Na quarta e última parte da obra, "Cidade e Saúde e Questões Relativas à Saúde Coletiva", somos levados a compreender por que tropeçamos em cada rua, praça ou espaço público, nos efeitos do padrão de desenvolvimento sociossanitário.

Os indicadores e metodologias utilizados nas diferentes análise traduzem apenas alguns detalhes presentes na realidade. A cidade transformou-se em resumo, síntese e visibilidade de diversos agravos, comprovando a necessidade de repensar os conceitos e categorias usuais em Saúde Coletiva, e as formas de intervenção dos profissionais de saúde.

Considerado em seu conjunto, o livro empenha-se em apresentar e discutir os processos sociossanitários em sua complexidade e especificidade, superando a realidade apreendida como antagônica, tendo ainda a preocupação em repensar o novo cenário mundial e suas formas de compreendê-lo e enfrentá-lo, particularmente em relação à Saúde.

Igualmente, o livro revela que as armadilhas sociopolíticas, que mobilizaram o movimento social em saúde, ainda não foram desmontadas, tanto no plano intelectual como no institucional. Ao contrário, as análises desenvolvidas nos anos 70 e 80 não chegaram a tocar no cerne das questões, exigindo novas leituras, enquanto outros desafios foram somados. As metodologias e objetos das Ciências Sociais, particularmente sobre saúde, mostram-se subutilizados, e a falta de diálogo entre os pesquisadores, instituições e linhas de pesquisa prova que as dificuldades para produzir conhecimento não dizem respeito apenas à questão dos méritos ou vontades individuais.

Colocando lado a lado os livros organizados por Ana Maria Canesqui em 1995 e 1997, observamos que há continuidade entre os temas e modelos de análise, ajudando a compreender o campo e a lógica histórica das transformações setoriais. Ana Maria Canesqui compreendeu que, para as Ciências Sociais e Saúde, não há outra possibilidade; trata-se de repensar com ousadia velhos problemas e incorporar novos objetos e realidades. Ciências Sociais e Saúde demonstra que ainda podemos nos surpreender diante dos desafios de nosso tempo e das armadilhas para superá-los.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 1998
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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