Com uma visão realista sobre os limites e as possibilidades do mecanismo de controle social incorporado ao arranjo institucional do SUS, em seu artigo Soraya afirma que, não obstante as dificuldades que a nossa cultura política coloca à construção de práticas democráticas, "(...) a força de instituições políticas e dos movimentos sindical e popular em cidades grandes tende a tornar viável a participação de grupos de pressão, determinando o tipo de envolvimento que os usuários teriam nos Conselhos de Saúde". E, destacando a importância do papel dos movimentos sociais urbanos nesse processo de representação, chama a atenção para a relevância que a articulação da comunidade técnico-científica com os mesmos tem tido no estímulo e no fornecimento de informações, insumo essencial ao exercício da representação e à capacidade de negociação dos seus representantes nos Conselhos.
Ressalta também que "clientelismo e paternalismo ainda são características marcantes nas relações entre governo e grupos de interesse no Brasil, especialmente nas pequenas cidades, nas áreas rurais e nas áreas menos industrializadas do país". Mas, mesmo nesse ambiente, as mudanças que o poder local vem experimentando, com menor comprometimento com interesses oligárquicos e com governos progressistas ampliando espaços de participação em cidades menores, têm permitido avanços significativos na possibilidade de participação da população no processo decisório setorial.
Lenhardt e Offe (1984)LENHARDT, G. & OFFE, C. (1984) - Teoria do Estado e Política Social: Tentativas de Explicação Político-sociológica para as Funções e os Processos Inovadores da Política Social. In: Offe, C. (org.) - Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. nos instigaram, há tempos, à reflexão com algumas indagações que vale a pena rememorar. "A partir de que posições sociais de poder a implementação de um programa pode ser bloqueada em sua trajetória administrativa?". E, ainda, "poderia ela (a política social) libertar-se do equívoco tecnocrático, operando em vez disso com base na evidência de que não são em absoluto os policy outputs, com suas estruturas institucionais e legais, que definem o 'impacto' da política social, mas que são as relações sociais de poder, de coerção e de ameaça, legal e politicamente sancionadas, bem como as oportunidades correspondentes da realização de interesses que determinam a 'justiça social' que a política social tem condições de produzir?".
Refletindo com essa perspectiva sobre o momento atual, não é possível deixar de perceber que ele é crítico para a proposta do sistema de saúde construída com base em princípios de universalidade de direitos, integralidade da atenção e eqüidade. A lógica (?) da ação governamental, na esfera federal, está se dirigindo à implantação de um sistema restrito de atenção básica destinado aos mais pobres. Os embates na Comissão Tripartite sobre a implantação da NOB-96 são um claro indicador da tentativa de utilizá-la para implementar uma "cesta básica" no interior do SUS. Sem deixar de reconhecer a necessidade de expandir a cobertura nessa faixa da atenção à saúde, temos que estar atentos ao risco de retrocesso nas conquistas da cidadania que uma ação reduzida à mesma pode significar.
A utilização de normas e instrumentos legais infraconstitucionais para a burla dos dispositivos constitucionais só poderá ser impedida se houver um decisivo movimento social que opere como barreira política a esses desígnios. Os Conselhos de Saúde podem ser o espaço de disseminação de informações que alimentem a luta pela preservação do direito universal à saúde. Nesse quadro de ameaças, a participação nos conselhos poderá ser, ela própria, um fator importante de reflexão para os usuários sobre a necessidade de construção de sujeitos coletivos mais bem organizados, sempre que nos coloquemos a tarefa de apoiar o processo de análise e de conhecimento sobre os riscos e as oportunidades de ação.
O artigo de Soraya nos convida e nos desafia a refletir sobre as tarefas que a construção da cidadania nos impõe, a todos que continuamos acreditando na necessidade de construir uma sociedade mais solidária.
Referência bibliográfica
- LENHARDT, G. & OFFE, C. (1984) - Teoria do Estado e Política Social: Tentativas de Explicação Político-sociológica para as Funções e os Processos Inovadores da Política Social. In: Offe, C. (org.) - Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Jun 1998