Inicialmente eu gostaria de cumprimentar a autora sobre seu artigo academicamente denso e politicamente realista. Dessa forma foge de uma discussão de como se gostaria que os Conselhos Municipais de Saúde (CMS) fossem, e apresenta um estudo de como são de fato. Gostei imensamente do termo utilizado para caracterizar "a consolidação de Canais Participatórios no Brasil, na área de Saúde": "Improvável, mas possível".
Se, de um lado, tendo a concordar com Soraya quando ela considera como incompletas as avaliações da literatura internacional sobre a viabilidade dos CMS, de outro, penso que, mesmo assim, há mais a dizer sobre as dificuldades enfrentadas pelos Conselhos. Minha relação com os CMS passa pela atividade acadêmica de pensar a questão de participação popular e saúde, como também de orientar dissertações sobre experiências de Conselhos; e, ao mesmo tempo, pela participação e observação sistemática num grande Conselho Distrital de Saúde da região metropolitana do Rio de Janeiro (Conselho Distrital do IV Distrito Sanitário, 800 mil moradores).
Embora os Conselhos representem um anseio de uma parte da sociedade civil, considero importante reconhecer que muitos deles foram criados a partir da iniciativa das próprias Câmaras de Vereadores a fim de garantir o repasse das verbas que vêm do Governo Federal. Nessa perspectiva, a iniciativa partiu dos governos e não dos setores organizados da sociedade civil.
A partir do argumento da autora de que a posição das autoridades municipais possa ser considerada como decisiva para a participação dos usuários nos CMS, levanta-se a questão se a participação popular não surge justamente para se contrapor àquelas autoridades que não se interessam pela participação das classes populares no controle público dos serviços básicos. Se em determinados municípios tal incentivo pode ser visto como vantagem para os usuários, a história das relações das classes populares com as autoridades municipais é em grande parte justamente o contrário; isto é, em oposição ao autoritarismo e arrogância dos governantes impositivos.
Impressiona o fato de que o Conselho Distrital acima citado reúne quase 50 conselheiros mensalmente, mas onde 90% são usuários, e apenas 8% são funcionários e 2% são gestores de unidades. Dependendo da política da Secretaria Municipal de Saúde, a falta de quórum na parte de qualquer um dos componentes do Conselho pode inviabilizar o caráter legítimo e legal das deliberações tomadas. Quem mais tem a perder com esta ausência são os usuários, cuja participação nos CMS não pressupõe uma inserção empregatícia no Sistema Municipal de Saúde.
Mesmo quando há quórum, é freqüente que as deliberações tomadas não sejam executadas por "falta de verba". Um impasse que indica dois problemas: uma relação leviana das autoridades municipais com o que foi deliberado, como também uma indisposição do Secretário de Saúde de abrir a discussão com o CMS sobre o orçamento de saúde. (Aqui, não está se referindo ao orçamento participativo). Como observa Werner (1994)WERNER, S.A. (1994) - Participação Social em Saúde: A Experiência do Conselho Municipal de Saúde em Niterói. Dissertação de Mestrado, Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, mimeo., o que deveria ser deliberativo, tornou-se reivindicativo.
A precariedade dos serviços de saúde nas grandes metrópoles faz com que freqüentemente as discussões sobre o problema do acesso monopolizem quase todo o tempo das reuniões dos CMS. Dedicar excessivo tempo à questão de acesso faz com que o olhar dos CMS esteja sistematicamente voltado para a categoria demanda, com referência aos usuários que se apresentam às unidades de saúde. Assim, como observa Vasconcelos (1997)VASCONCELOS, E.M. (1997) - Educação Popular como Instrumento de Reorientação das Estratégias de Controle das Doenças Infecciosas e Parasitárias. Tese de Doutorado, Faculdade de Medicina - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, mimeo., uma crescente população, vítima do desemprego estrutural, e conseqüentemente de famílias desestruturadas, em não conseguindo chegar às unidades de saúde, não se enquadra dentro da perspectiva de demanda.
Apesar de todas essas ponderações, que, na realidade, vão aprofundando as dificuldades já apontadas por Soraya, é necessário perceber que os grandes movimentos populares da década dos anos 80 são uma lembrança de que a participação popular em saúde já foi e ainda pode ser viável.
O que talvez tenha que ser questionado, sem abrir mão do espaço dos CMS, é a concepção de democracia representativa. Implantados a partir da Constituição de 1988, os CMS são espaços deliberativos legais e legítimos que devem ser apoiados pela sociedade civil. Mas, ao mesmo tempo, é possível que as propostas dos Conselhos Municipais, ao contrário do que pretendiam os autores da proposta na Constituinte de 1988, têm servido para "encurralar" os movimentos populares num espaço único. A lentidão em agir dos CMS e a sua grande dependência dos Secretários Municipais de Saúde e dos componentes dos profissionais de saúde (gestores e funcionários), juntamente com os graves problemas de saúde que afligem a população brasileira, devem servir como um alerta para uma retomada das experiências da democracia direta.
A importância, mas também a vulnerabilidade dos CMS no Brasil, tornam necessários o apoio da sociedade civil de caráter popular. Mas quando for necessário, os problemas no campo da saúde devem ser enfrentados também pela população organizada nas ruas, se manifestando nas portas dos gabinetes das autoridades municipais, como também nas portas dos Centros Municipais de Saúde e dos hospitais.
Referências bibliográficas
- VASCONCELOS, E.M. (1997) - Educação Popular como Instrumento de Reorientação das Estratégias de Controle das Doenças Infecciosas e Parasitárias. Tese de Doutorado, Faculdade de Medicina - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, mimeo.
- WERNER, S.A. (1994) - Participação Social em Saúde: A Experiência do Conselho Municipal de Saúde em Niterói. Dissertação de Mestrado, Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, mimeo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Jun 1998