Diferentes governantes europeus iniciaram a década de 2010 anunciando que o projeto de multiculturalidade europeu fracassara, pois o que houve foi a formação de guetos e a convivência distante e não solidaria entre diferentes grupos étnicos no mesmo território. Jardim e López, organizadoras, e os outros autores do livro Políticas da Diversidade - (in)visibilidades, pluralidade e cidadania em uma perspectiva antropológica, publicado, em 2013, pela editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concordam e mostram que o projeto de multiculturalidade foi, apenas, mais uma construção neoliberal e contemporânea da modernidade colonial.
Os limites da multiculturalidade ficam patentes nos oito diferentes capítulos do livro, quando a invisibilidade de eventos relativos à racialidade e migração no Brasil é tratada como diferença que deveria ser desvendada e (re)construída em espaços de diálogo intercultural, na própria interação. Para os autores, portanto, a experiência negra e o imaginário da sua diáspora, bem como os itinerários migratórios e a sua invisibilidade, ganham lugar central na agenda de pesquisa dos antropólogos, que buscam o encontro com sensibilidades de distintos protagonistas para contribuir com o debate sobre a dignidade humana, justiça e bom viver.
O livro é dividido em duas partes denominadas Cenários e Dinâmicas, cada uma constituída de quatro capítulos, que segundo as organizadoras, realizam um zigue-zague proposital (entre escalas macro e micro) mostrando o jogo de forças que atravessam as noções analíticas e a experiências de sujeitos concretos. Na primeira parte, os textos exploram a dimensão conceitual das políticas raciais, imigrações e racismo institucional, que têm orientado as reflexões sobre as invisibilidades desses problemas sociais. São, portanto, apresentados, os cenários conceituais e as dificuldades em visibilizar determinadas problemáticas sociais referentes a sujeitos "às margens" dos debates nacionais. Na segunda parte, são apresentados textos produzidos para diferentes conferências públicas e reflexões práticas em que estão em jogo os custos e os benefícios da invisibilização. Todos os oito capítulos são guiados pelo tema da interculturalidade, para trazer à tona os processos de invisibilidade e hipervisibilidade de protagonistas e coletividades.
No primeiro capítulo denominado Alteridade e (in)visibilidades: uma perspectiva antropológica sobre direitos humanos e dignidade, Denise F. Jardim evidencia a abertura dos antropólogos ao debate sobre direitos humanos sob novos parâmetros, como alteridade, identidade e minoria. A autora apoia-se no enunciado de Boaventura de Souza Santos, de que em vez de recorrer a falsos universalismos é fundamental que se organize uma constelação de sentidos locais para construir a noção de dignidade e direitos humanos. Assim, onde "nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais", Jardim discute as invisibilidades, hipervisibilidades, minorias e pluralismos das identidades no Estado democrático de direito brasileiro.
No capítulo intitulado Políticas raciais, diáspora e transnacionalismo: notas para compreender as mobilizações negras e as ações afirmativas no Cone Sul, Laura C. López debruça-se sobre a configuração e as perspectivas das mobilizações negras contemporâneas para a construção de políticas públicas com enfoque étnico-racial e ações afirmativas no Cone Sul. O texto percorre dois eixos, nos quais, primeiro, discute a relação local-nacional-transnacional e, segundo, explora a construção de demandas da militância negra, ambos em relação às mobilizações para a construção de políticas públicas específicas cunhadas a partir das identificações afro-diaspóricas. A autora concluiu o capítulo propondo levar a sério a perspectiva afro-latina-americana como uma filosofia política que nos interpela para que novos pactos sociais/éticos/estéticos possam ser realizados.
O terceiro capítulo é de Daniel Etcdheverry, também antropólogo e autor do texto intitulado A atuação dos mediadores da promoção da cidadania e a problemática da visibilidade do fenômeno migratório, cujo objetivo foi analisar os debates sobre as migrações contemporâneas, a partir de observações realizadas em Buenos Aires e Porto Alegre. A escolha pelas duas cidades deve-se ao fato de que os discursos sobre o fenômeno migratório são quase diametralmente opostos nelas, de forma que a relação da imigração com o desemprego, o acesso a recursos públicos, a exposição a diferentes formas de violência e a pobreza, constituem uma hipervisibilidade em Buenos Aires e uma invisibilidade em Porto Alegre. Entre o que se vê e o que não se vê em relação ao imigrante o autor identifica uma construção social constante que necessita ser desconstruída.
O capítulo quarto, chamado Reflexões sobre o conceito de racismo institucional, também foi escrita por Laura C. López com o desafio de pensar uma ferramenta analítica e institucional para enfrentar discriminações em países que preconizam como discurso hegemônico a invisibilização da questão racial. A autora aprofunda a dimensão histórica da formação social brasileira e as diferentes expressões do racismo institucional legitimado por diferentes instituições estatais, demonstrando porque são, portanto, legítimas as políticas de ação afirmativa na atualidade. A autora chama atenção para o fato de que o racismo institucional não é expresso em atos manifestos, explícitos ou declarado, mas de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam na distribuição desigual de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos raciais. Por fim, a autora associa o racismo institucional à noção de biopolítica, originalmente criada por Foucault e desenvolvida por Rabinow e Rose, para compreendê-lo a partir: [da] forma de discurso de verdade de um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar sobre o caráter "vital" dos seres humanos; [das] estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte; e [dos] modos de subjetivação através dos quais os sujeitos atuam sobre si próprios em relação aos discursos de verdade.
Na parte das Dinâmicas, outros quatro capítulos são apresentados e destacam-se As ações afirmativas e a possibilidade de diálogo intercultural no Brasil, originalmente uma conferência proferida por Laura C. López, no Ciclo de Comemorações dos 75 anos da UFRGS, em que a autora discute as ações afirmativas do processo de aprovação das cotas de ingresso naquela universidade e as múltiplas possibilidades de diálogo intercultural dessa política. Situando suas reflexões a partir da matriz dos estudos pós-coloniais a autora reproduz trechos de seu diário de campo, quando acompanhou as disputas entre grupos contrários e favoráveis ao ingresso de uma estudante da etnia Kaingang no curso de medicina. O relato do ritual da passagem do jaleco de um estudante do último ano do curso à jovem índia é tocante, assim como a declaração de um professor, de descendência alemã, sobre o efeito reparador daquele ato para os indígenas espoliados e violentados pelos colonos europeus apoiados pelo Estado brasileiro.
Destaca-se, também, o capítulo denominado 'Te ponem el ojo y te sacan uma radiografia': ser imigrante nas redes e saúde e concessão de benefícios sociais em Porto Alegre, escrito por Alex M. Moraes. Seu texto pode ser identificado como uma "antropologia da saúde" e não como uma "antropologia na saúde", utilizando a classificação de Robert Straus11 Straus R. The nature and status of medical sociology. Amer Soc Rev 1957; 22(2):200-204. da década de 1950. Assim, relatando sua experiência de campo com imigrantes em serviços do sistema único de saúde na cidade de Porto Alegre, o autor debate as características assumidas pela cidadania nos tempos atuais, destrinchando os símbolos associados às categorias de estrangeiro e de imigrante, sobretudo pelo fato de a primeira revelar uma noção de diferença positiva e a segunda de desigualdade negativa. Em seguida o autor toma o conceito de "bio-lógicas", para aprofundar as estórias de quatro imigrantes e constituir as diferentes "socio-lógicas" associadas a cada experiência. Nesse percurso encontra vasto material sobre as assimetrias morais presentes no "meio do mistério das diferenças", assim como as facilidades e tortuosidades na busca por direitos cidadãos de imigrantes no Brasil.
Os dois outros capítulos da segunda parte trazem significativas Dinâmicas associadas à defesa das ações afirmativas e reservas de vagas ao ensino superior no Brasil, no Supremo Tribunal Federal, durante audiência pública em março de 2010, e ao trato discriminatório sofrido por estudantes universitários brasileiros em aeroportos da Espanha, durante o ano de 2008.
Para concluir, pode-se afirmar que a leitura deste livro é mandatória para aqueles que queiram compreender a dinâmica de construção das políticas de invisibilidade do projeto de modernidade colonial e das políticas de diversidade contemporânea da modernidade tardia e pós-colonial.
A reconstrução histórica e a escavação sociológica dos diferentes capítulos deixa ver as dinâmicas que perturbam as certezas daqueles que gostariam de conferir previsibilidade e acomodar a diferença em uma visão estática do mundo social. Assim, explicitam as tensões e as negociações simbólicas com protagonistas envolvidos em debater experiências de hipervisibilização e situações históricas de "res-semantização" de sentidos da cidadania, pluralidade e dignidade humana.
Trata-se, portanto, de uma coletânea de textos corajosos que indicam a insustentabilidade de uma unidade nacional e o alcance dos encontros interculturais de aprendizagem mútua, promovidos pela diversidade cultural dos diferentes povos brasileiros.
Referências
- 1Straus R. The nature and status of medical sociology. Amer Soc Rev 1957; 22(2):200-204.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Dez 2014