O livro intitulado Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência, organizado por Mauro Lúcio Leitão Condé, tem, entre outros méritos, a qualidade de ser o primeiro editado no Brasil a tratar especificamente da obra deste cientista/epistemólogo polonês. O fato de apresentar capítulos escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros deixa clara a relevância do pensamento fleckiano para a comunidade acadêmica nacional e internacional, especialmente para aqueles preocupados com os atuais e assim chamados Science Studies, a despeito de sua principal obra - Gênese e desenvolvimento de um fato científico - ter sido escrita há quase cem anos.
Outro grande mérito da obra em questão é apresentar, através de todos os capítulos, e provavelmente este é um elo a uni-los, a obra de Fleck em aberto para, sob inspiração do próprio, possibilitar o pensamento reflexivo em todos os campos do conhecimento.
O primeiro capítulo, de autoria de Ilana Löwy, uma especialista na obra de Fleck, coloca-o como um autor do seu tempo que resiste à passagem dos anos, sendo um contemporâneo nosso. Fleck, na verdade, já é um clássico para aqueles voltados para o conhecimento humano. Ilana Löwy, de forma extremamente feliz, coloca o surgimento/continuidade do pensamento de Ludwik Fleck no "coletivo de pensamento" que proporcionou o desenvolvimento de suas ideias. Assim, a chamada "escola polonesa de filosofia da medicina" certamente teve sua influência no processo de construção da epistemologia, ou melhor, do "estilo de pensamento" de Fleck. Este foi fundado na reflexão sobre a natureza da medicina apoiada em uma análise pormenorizada da prática médica. Fleck, Ilana Löwy aponta, assim como todos os outros capítulos, inaugura/melhora (lembrando a possível influência dos membros da escola polonesa de filosofia da medicina) o que hoje é aceito como um "fato incontestável" para determinados coletivos de pensamento - a ciência está ancorada na sociedade, ou seja, o ato de conhecer é, ao mesmo tempo, um ato individual/social.
Johannes Fehr, autor do segundo capítulo, Ludwik Fleck - sua vida e obra, ratifica o caráter social do entendimento fleckiano da ciência, enfatizando sobremaneira a questão da linguagem contida nos seus trabalhos epistemológicos - sempre a partir da prática científica. Fehr afirma ser provavelmente a linguagem em que os trabalhos epistemológicos de Fleck se mostram na sua forma mais profunda e inventiva. Aceita-se, de acordo com Fleck, que a) não há uma "linguagem geral" para descrever a observação de uma prática de pesquisa; e, 2) não havendo uma "linguagem geral", corre-se o risco de haver divergências não só entre "coletivos de pensamento", mas também intradisciplinar. Qual é o limite dessas divergências? Fehr defende que Fleck radicalizou deliberadamente no sentido de considerar a multiplicidade de estilos de pensamento, coexistentes e divergentes, por entendê-los como pré-requisitos à existência da própria ciência. Como nada para Fleck existia por si só, deve-se entender essa postura epistemológica também com um posicionamento político. Conhecimento demanda democracia.
Carlos Alvarez Maia, ao aproximar Karl Mannheim de Ludwik Fleck, discute as dificuldades encontradas historicamente para fazer valer a abordagem sociológica. Segundo Maia, até as ideias de Mannheim frutificarem, desfrutava-se uma relativa paz epistemológica definida pela hermenêutica de Dilthey - de um lado as ciências da natureza, de outro as do espírito. Mannheim, pode-se dizer, inaugura o olhar sociológico na direção do naturalismo epistemológico. Antecipando Fleck, cria o conceito de "estilo de pensamento", e contrariando a este exclui as ciências naturais e exatas do seu campo de análise. No entanto a sociologia do conhecimento forjada por Mannheim, tendo visto um rápido florescimento, acaba sendo abortada principalmente devido à ascensão do nazismo. Estabelece-se o que Maia chama de "hiato historiográfico", momento em que a epistemologia reina sob os auspícios mertonianos. Mudadas as condições históricas, já na década de 1970, foi possível dar vez e voz ao relativismo. O "programa forte da sociologia do conhecimento" radicaliza Mannheim, e Fleck finalmente reaparece. Mannheim não teve como dar conta da discussão imposta por Reichenbach-Carnap, mas Fleck, principalmente através de seu conceito de "estilo de pensamento", responde àqueles, e não apenas àqueles, mas também a Kuhn e Latour. Nem natureza, nem sociedade, mas o agenciamento recíproco.
Ciência e linguagem: Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein, de Mauro Lúcio Leitão Condé, como o título já anuncia, é um capítulo dedicado à aproximação entre o pensamento de um e de outro através do papel da linguagem no conhecimento científico. De um lado, a crítica de Fleck e Wittgenstein ao neopositivismo do Círculo de Viena, de outro as bases para o fortalecimento do que ficou conhecido como a "nova filosofia da ciência". Explorando o pensamento de um e outro, Condé se permite concluir que "o social está estruturado como uma linguagem". Mesmo que o conhecimento científico envolva a natureza, ele se constrói efetivamente como uma atividade social e linguística.
No capítulo cinco, Georg Otte, um dos tradutores para o português de Gênese e desenvolvimento de um fato científico, estabelece relações entre Fleck e Walter Benjamin, através da forte crítica dos dois pensadores ao conceito de "fato" - especialmente aquele vinculado ao positivismo do século XIX. Otte, mesmo chamando atenção para os pontos divergentes entre as obras de Fleck e Benjamin, conclui que os dois pertencem a um mesmo "coletivo de pensamento", dado que "rejeitam a visão de um sujeito racional livre de todas as amarras irracionais quando reinserem o indivíduo em um contexto histórico e social, evidenciando a importância de fatores que pré-determinam o uso da razão, mesmo da razão científica".
Tema bem menos explorado, mas certamente que não de menor importância em se tratando de Fleck, é a preocupação de Bernardo Jefferson de Oliveira com a popularização da ciência, o capítulo seis. Apesar de ter se detido em poucas páginas de sua obra seminal, Fleck estabeleceu uma distinção entre quatro tipos de ciência: a dos periódicos, a dos manuais, a dos livros didáticos e a popular, ou seja, pensou sobre o movimento do conhecimento entre os círculos esotéricos e exotéricos. Se de um lado há o treinamento do círculo esotérico em "estilo de pensamento", de outro há o treinamento do círculo exotérico, não menos importante que aquele, na medida em que legitima o primeiro, ou não. A forma como circula o conhecimento, para quem está disponível e como se legitima são discussões que devem estar presentes nas rodas acadêmicas, independentemente de qualquer escolha teórico/metodológica. Fleck tinha clareza a esse respeito.
Encerrando a coletânea, Martina Schlünder apropria-se do referencial teórico fleckiano para discutir a partir de quais estruturas epistêmicas, sociais e políticas verificam-se a reprodução e a fertilidade como objetos médicos e científicos. Para explicar que o conceito de ciclo feminino mudou as noções básicas da ginecologia, a autora recorre ao conceito de "estilo de pensamento" de Fleck para mostrar, contrariando Kuhn, que o que houve foi uma mudança de estilo de pensamento, e não uma revolução. Essa diferença entre Fleck e Kuhn parece-nos ser crucial para a discussão atual dos Science Studies. Com efeito, Fleck, concordamos, é um contemporâneo nosso, como quer a autora do primeiro capítulo, Ilana Löwy. Não deixando de lado o agenciamento recíproco proposto por nosso autor, e o que ele nos ensinou em respeito ao vínculo ciência/sociedade, não há como não tomar partido do posicionamento fleckiano, sem esquecer que Kuhn bebeu largamente em suas fontes. Ou seja, a própria obra kuhniana é exemplo do que se está querendo argumentar. A construção do conhecimento só pode dar-se através da mudança do estilo de pensamento. Mesmo que uma ideia nos pareça absolutamente nova, ela foi processada tendo uma base sócio-científica-histórica a informá-la. A gênese e o desenvolvimento de um fato científico é resultado de intrincados processos que se dão ao largo da história, os quais só nos apontam para um continuum, e não para revolução.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Maio 2014