Resumos
Uma série de municípios brasileiros foram acometidos por desastres nos últimos anos. Neste sentido, os gestores precisam investir na preparação para mitigar o impacto dos eventos e aliviar o dano causado. A preparação para desastres deve ser realizada em diversos frentes, inclusive no setor saúde, em que se insere a assistência farmacêutica. Objetivou-se descrever e analisar a preparação da assistência farmacêutica para desastres em municípios recentemente acometidos por desastres. Para tal, foi realizado um estudo com desenho transversal em cinco municípios brasileiros, em duas regiões do país. Foram analisadas fontes documentais, matérias jornalísticas e bases de dado de acesso público, além de entrevistas a atores-chave da AF através de um instrumento baseado em um modelo lógico e indicadores. Foram identificadas poucas medidas de preparação da assistência farmacêutica nos municípios estudados. Ainda que o histórico dos municípios esteja ligado a eventos que redundaram em desastres, a gestão municipal da assistência farmacêutica não foi capaz de preparar-se. Espera-se que a apresentação da experiência desses municípios favoreça a preparação da assistência farmacêutica em outros municípios do país.
Desastre; Município; Serviços farmacêuticos; Preparação
A number of Brazilian municipalities have been affected by disasters in recent years. Municipal managers need to invest in preparedness to mitigate the impact of events and to restrict damages. Disaster preparedness should be conducted on various fronts, including the health sector, of which pharmaceutical services (PS) are a part. The scope of this paper is to describe and analyze PS preparedness in municipalities recently stricken by disasters. For this purpose, an investigation of a cross-sectional design involving various sources (official documents, newspaper articles, public databases and interviews with key PS informants) was conducted in five municipalities in two different regions. Analysis was based on an instrument with a logical model and indicators. Despite the fact that these municipalities are historically disaster-prone, very few measures of PS preparedness were encountered, which is clear evidence that management of PS has not been achieved. It is to be hoped that this presentation of the experiences of these municipalities might foster PS preparedness in other Brazilian municipalities.
Disaster; Municipality; Pharmaceutical services; Preparedness
Introdução
Um desastre resulta da combinação de ameaças, de condições de vulnerabilidade - físicas, sociais, econômicas e ambientais - e de capacidade insuficiente de resposta. Ainda, um desastre pode ser ocasionado pela resposta inadequada a um evento, contribuindo para as suas consequências negativas. A ocorrência ou não de um desastre está diretamente relacionada à preparação, definida através da habilidade da sociedade para gerenciar os danos causados por determinado evento11 TFQCDM/WADEM: Health Disaster Management: Guidelines for Evaluation and Research in the "Utstein Style". Capítulo 3: Overview and concepts. Prehosp Disast Med 2002;17(Supl. 3):31-55..
No Brasil, historicamente, a preparação e a resposta a desastres concentra-se no âmbito das ações da Defesa Civil (DC). Em 2012 foi promulgada uma nova Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDC) por meio da Lei 12.60822 Brasil. Lei Nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a política nacional de proteção e defesa civil - pnpdec; dispõe sobre o sistema nacional de proteção e defesa civil - sinpdec e o conselho nacional de proteção e defesa civil - conpdec; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres. Diário Oficial da União 2012; 11 abr., que define que a União, estados e municípios têm deveres na adoção de medidas necessárias à redução dos riscos de desastres. A PNPDC define também a articulação de diversos setores, entre os quais a saúde, na preparação e na resposta aos desastres.
Os desastres impactam a saúde da população, causando traumas físicos e emocionais, doenças agudas, e infecciosas, além de aumentar a morbidade e a mortalidade de doenças crônicas devido às influências no sistema de saúde33 Giorgadze T, Maisuradze I, Japaridze A, Utiashvili Z, Abesadze G. Disasters and their consequences for public health. Georgian Med News 2011;(194):59-63.. Sendo o medicamento a intervenção terapêutica mais frequentemente utilizada44 Oliveira MA, Bermudez JAZ, Osorio-de-Castro CGS. Assistência farmacêutica e acesso a medicamentos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007. a assistência farmacêutica é especialmente tensionada em desastres, para contornar os desfechos sobre a saúde.
A Assistência Farmacêutica (AF) envolve a seleção, o abastecimento e a utilização de medicamentos, incluindo, a conservação e a garantia de qualidade, a segurança e a efetividade terapêutica, o acompanhamento e a avaliação da utilização, a obtenção e a difusão de informações sobre medicamentos e a educação permanente dos profissionais de saúde, do paciente e da comunidade para assegurar o uso racional55 Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S, organizadores. Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: OPAS, OMS; 2003.,66 Brasil. Portaria GM Nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, cuja íntegra consta do anexo desta Portaria. Diário Oficial da União 1998; 10 nov.. No Brasil, as ações de AF na esfera pública são executadas e financiadas por governos Federal, estaduais e municipais de forma compartilhada dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).
A estratégia preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na preparação para desastres e gestão de riscos é baseada no conceito All hazards/whole health, que se fundamenta no fato de diferentes ameaças e emergências causarem dificuldades semelhantes às comunidades. Assim, as medidas de preparação não precisariam ser risco-específicas, podendo ser implantadas considerando o conjunto de ameaças que assolam determinada comunidade77 World Health Organization (WHO). Emergency preparedness and risk management - WHO five-year strategy for the health sector and community capacity-building. Geneva: WHO; 2007..
Em função disto, medidas de preparação que sirvam para garantir o acesso a medicamentos são fundamentais e podem contribuir sobremaneira para diminuir os impactos resultantes na saúde das pessoas atingidas. Uma vez que a AF tem um caráter sistêmico e multiprofissional, os resultados obtidos nesse processo dependerão tanto da existência de diretrizes claras e de integração in loco, da DC com outros setores88 Jacobi PR, Momm-Schult SI, Bohn N. Ação e reação: Intervenções urbanas e a atuação das instituições no pós-desastre em Blumenau (Brasil). EURE (Santiago) 2013;39(116)., como da capacidade de gerenciamento do setor saúde, incluindo a AF. Apesar disso, a política institucional de resposta a desastres no Brasil ainda é pautada em políticas setoriais88 Jacobi PR, Momm-Schult SI, Bohn N. Ação e reação: Intervenções urbanas e a atuação das instituições no pós-desastre em Blumenau (Brasil). EURE (Santiago) 2013;39(116)..
No Brasil, as diferentes regiões apresentam perfis distintos na ocorrência de desastres. No entanto, apesar dos diferentes perfis, as consequências desses desastres para os municípios apresentam características comuns, como as repercussões sociais, econômicas e políticas. Destaca-se que a atenção à saúde, na qual se insere a assistência farmacêutica, sofre tensões importantes quando da ocorrência de um desastre. Nos últimos cinco anos, foram verificados eventos recorrentes de enchentes e deslizamentos em municípios nas regiões Sul e Sudeste, com grandes perdas humanas e materiais99 Brasil. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa civil. [acessado 2013 nov 15]. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/sedec/apresentacao
http://www.integracao.gov.br/sedec/apres... . Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados de uma investigação sobre a preparação da AF em cinco municípios recentemente acometidos por desastres no país.
Métodos
O presente estudo possui desenho transversal e foi realizado em municípios acometidos por desastres. Como a estruturação do sistema de saúde brasileiro delega aos municípios funções executivas da AF, este foi entendido como a unidade de observação.
O modelo de avaliação utilizado neste estudo foi baseado naquele orientado por teoria, desenvolvido por Miranda et al.1010 Miranda ES, Fitzgerald JF, Osorio-de-Castro CGS. A methodological approach for the evaluation of preparedness of pharmaceutical services. Rev Panam Salud Publica 2013;34(5):312-320., em 2010. O instrumento de coleta de dados reúne perguntas tanto de cunho qualitativo como quantitativo, e foi elaborado com base em indicadores, com vistas a serem respondidos por meio de diferentes fontes de dados: fontes documentais como legislação, diretrizes nacionais e internacionais, matérias jornalísticas, dados de observação, sistemas de informações de saúde e AF e de defesa civil, como bases de dados de acesso público da DC, do Ministério da Saúde1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus) [internet]. Brasília: MS; [acessado 2013 nov 15]. Disponível em: www.datasus.gov.br
www.datasus.gov.br... ,1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) [internet]. Secretaria de Atenção à Saúde [acessado 2013 nov 15]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/
http://cnes.datasus.gov.br/... e de gestão1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) [internet]. Brasília: MS; [acessado 2013 nov 15]. Disponível em: http://siops.datasus.gov.br/
http://siops.datasus.gov.br/... , além de entrevistas a informantes-chave.
O estudo de campo foi realizado em dois períodos distintos. Em dois municípios de Santa Catarina, entre os meses de maio e agosto de 2009, e em três municípios da Região Serrana Fluminense em dezembro de 2011. A escolha dos municípios se deveu à importância nacional dos desastres que lá aconteceram. Em todos os municípios foram entrevistados os responsáveis pela gestão da AF. De sorte a proteger os informanteschave, os municípios foram codificados, sendo representados pelas letras A, B, C, D e E.
Na análise foram utilizadas metodologias quantitativa (de cunho descritivo) e qualitativa, esta última focada na análise de conteúdo. A análise de conteúdo constitui-se como conjunto de técnicas complementares entre si, que visa analisar sistemática e objetivamente o conteúdo de comunicações. Primeiramente, foram apontadas ideias centrais nos discursos dos informantes e as informações resultantes agregadas nas seguintes categorias analíticas: Contexto externo, Contexto Político e Organizacional, Atividades da Assistência Farmacêutica. O modelo foi o norte para o estabelecimento dessas categorias analíticas, e os conteúdos documentais selecionados serviram para responder aos indicadores e embasar ou contrapor as informações obtidas no discurso dos informantes-chave1414 Mohr LB. The Qualitative Method of Impact Analysis. Am J Evaluation. 1999;20(1):69-84.. O procedimento adotado permitiu deduzir, de forma lógica e justificada, as respostas aos componentes do modelo e aos indicadores propostos.
Foi obtido consentimento livre e esclarecido dos sujeitos entrevistados e autorização para a coleta de dados referentes à AF. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Púbica Sérgio Arouca.
Resultados e Discussão
Em primeiro lugar é importante situar o campo deste estudo. Os municípios visitados foram afetados por desastres recentes e de graves consequências para suas populações. A escolha desses municípios foi acertada, uma vez que permitiu que os entrevistados trouxessem suas experiências de modo bastante intenso e nítido. Qualquer forma de coleta de dados a distancia resultaria em perdas de informação relacionadas à observação em campo e à proximidade das impressões do campo frente aos dados primários.
Em segundo lugar, optou-se por estruturar as categorias analíticas em quadro, sumarizando os conteúdos na resposta aos indicadores.
O Quadro 1 apresenta os indicadores e os resultados em cada município.
Indicadores de AF em desastres e resultados de municípios brasileiros selecionados. 2008-2011.
Contexto Externo
Nenhum dos municípios afirmou existir orçamento específico para AF em desastres. Caso o município passe por um desastre, os gestores contam com a ajuda do Governo Federal. Além disso, os municípios não possuem um plano de contingência. É interessante verificar que os cinco municípios visitados são acometidos por eventos adversos relacionados a enchentes, enxurradas e deslizamentos há décadas. E mesmo assim não possuíam previsão orçamentária. Caso precisassem mobilizar recursos próprios estes deveriam ser retirados de outras fontes municipais. Os gestores relataram que, na falta de previsão orçamentária, em caso de desastre, compras de medicamentos seriam feitas, contando sempre com os repasses federais. No entanto, sabe-se que em compras emergenciais ou de urgência, os preços são normalmente superiores aos normalmente praticados1515 Brasil. Lei n. 8666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União 1993; jun 22.,1616 Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Levantamento de preços de compra emergencial será apurado pela ALERJ [acessado 20 nov 2013]. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/common/noticia_corpo.asp?num=21600
http://www.alerj.rj.gov.br/common/notici... .
Em relação ao marco legal, nenhum município possuía legislação municipal que regulava a gestão de doações em desastres. O município E relatou possuir legislação que regulava as doações por meio de uma iniciativa permanente de ajuda humanitária. A situação especial deste município indicaria sucesso na gestão efetiva das doações de medicamentos na ocorrência do desastre. No entanto, a visita e a entrevista, ocorridas cerca de 16 meses após o último desastre, mostrou que ainda havia sobras de doações acumuladas, sem aproveitamento, no município.
O descarte de medicamentos é um problema em situações normais, pela geração de resíduos e riscos associados para a saúde humana1717 Falqueto F, Kligerman DC, Assumpção RF. Como realizar o correto descarte de resíduos de medicamentos? Cien Saude Colet 2010;15(Supl. 2):3283-3293.. Em desastres é muito mais aguda a necessidade de enfrentamento, tendo em vista um possível influxo não regulado de doações, com acúmulo de medicamentos vencidos, não conformes ou não constantes da lista municipal. A exposição da população a esses medicamentos deve ser evitada desde o princípio, mas uma vez aceitas as doações, deve haver um sistema estabelecido de descarte. Este tema é tão importante que integra as determinações da OMS para políticas de medicamentos1818 World Health Organization. How to develop and implement a National Drug Policy. 2nd ed. Genebra: WHO; 2003..
Uma vez que em desastres são gerados resíduos de medicamentos de todos os tipos, deve existir um sistema de descarte organizado capaz de oferecer o destino correto aos medicamentos vencidos, violados e inutilizados. Em relação a normas municipais para o descarte de medicamentos, nenhum tinha normas estabelecidas; o município B, adicionalmente, foi o único que não referiu qualquer informação sobre descarte. Os demais municípios referiram um fluxo de descarte feito por empresas especializadas ou pela empresa local de coleta de lixo. Mesmo assim, o relato dos farmacêuticos municipais destacou que a forma pela qual o descarte era feito não era conhecido. Não se sabia se eram tomadas as precauções necessárias (incineração, aterro sanitário específico), ou se o local de descarte era seguro. Foi relatado por um município descarte com autoclavação e deposição em vala séptica, o que foge às boas práticas1919 Brasil. Resolução Nº 306, de 07 de dezembro de 2004. Dispõe sobre o Regulamento Técnico para o gerenciamento de resíduos de serviços de saúde. Diário Oficial da União 2004; 10 dez..
Contexto Político Organizacional
Sobre a gestão de doações, os gestores de AF entrevistados dos municípios A e D afirmaram que não existiam protocolos com orientações. Os gestores dos municípios B e C não souberam responder com precisão se esses protocolos existiam ou não. O município E possuía um protocolo de orientação para gestão de doações, elaborado depois do desastre com base na experiência adquirida. A literatura é farta na explanação dos riscos associados a doações de medicamentos que não possuem gestão adequada2020 Autier P, Férir MC, Hairapetien A, Alexanian A, Agoudjian V, Schmets G, Dallemagne G, Leva MN, Pinel J. Drug Suply in the aftermath of the 1988 Armenian earthquake. Lancet 1990;335(8702):1388-1390.
21 Berckmans P, Dawans V, Schmets G,Vandenbergh D, Autier P. InappropriateDrug-Donation Practices in Bosnia and Herzegovina, 1992 to 1996. N Engl J Med 1997;337(25):1842-1845.-2222 Drugdonations. Exemples of (in) appropriate drug donations. Paris: Drugdonations. [acessado 28 fev 2012] Disponível em: http://www.drugdonations.org/eng/richtlijnen/cases.html
http://www.drugdonations.org/eng/richtli... . A compreensão do município em relação ao tema sugere que este usou adequadamente a experiência adquirida na preparação para eventos futuros.
Apenas o município A relatou local para armazenamento de medicamentos em desastres. Nenhum dos entrevistados apresentou cópia de manual de orientação para armazenamento ou de Boas Práticas de Armazenamento de medicamentos. O município D relatou que nas unidades de saúde no município o armazenamento já era, normalmente, precário. Esta resposta suporta a ideia de que se a gestão é problemática antes do desastre, não será na ocorrência do mesmo que ela apresentará mudanças positivas. O desastre desestabiliza a situação normal, configurando outra, que desafia as estruturas existentes e exige novas conformações, impedindo a resolução pelas vias regulares ou previsíveis2323 Narváez L, Lavell A, Ortega GP. La gestión del riesgo de desastres: un enfoque basado em procesos. San Isidro: Secretaría General de la Comunidad Andina; 2009.. Por isto é necessária a preparação.
Atividades da AF
É importante destacar que todas as ações de AF, sejam as desempenhadas em condições normais, sejam aquelas em situações extremas, devem estar baseadas em uma lista de medicamentos essenciais, o que facilita a gestão e regula o uso, com segurança para usuários e profissionais de saúde, que terão maior conhecimento sobre prescrição, orientações de uso e efeitos dos medicamentos2424 Magarinos-Torres R, Pagnoncelli D, Cruz Filho AD, Osorio-de-Castro CGS. Vivenciando a Seleção de medicamentos em Hospital de Ensino. Rev Bras Educ Med 2011;35(1):77-85.. A seleção é a primeira etapa da cadeia de atividades conhecida como ciclo da AF, e todo farmacêutico deve trazer este conhecimento teórico e de prática profissional.
No município E, a coordenação de AF afirmou que uma lista de medicamentos selecionados para desastres estava sendo desenvolvida, mas nenhum dos municípios apresentou, efetivamente, lista de medicamentos essenciais em desastres (LMED), com base nas ameaças identificadas nesses municípios. O gestor do município B citou e apresentou a cópia do kit do Ministério da Saúde (MS). Este kit (Tabela 1) foi elaborado em 2009, revisto em 2012, e é específico para desastres associados a chuvas, ventos e granizo2525 Brasil. Portaria GM Nº 74, de 20 de janeiro de 2009. Estabelece a composição do kit de medicamentos e insumos estratégicos para a assistência farmacêutica às pessoas atingidas por desastres de origem natural. Diário Oficial da União 2009; jan 21.,2626 Brasil. Portaria GM Nº 2.365, de 18 de Outubro de 2012. Define a composição do kit de medicamentos e insumos estratégicos a ser encaminhado pelo Ministério da Saúde para a assistência farmacêutica às Unidades da Federação atingidas por desastres de origem natural associados a chuvas, ventos e granizo e define os respectivos fluxos de solicitação e envio. Diário Oficial da União 2012; out 22..
Kit de medicamentos para a assistência farmacêutica às pessoas atingidas por desastres de origem natural associados a chuvas, ventos e granizo. 20122626 Brasil. Portaria GM Nº 2.365, de 18 de Outubro de 2012. Define a composição do kit de medicamentos e insumos estratégicos a ser encaminhado pelo Ministério da Saúde para a assistência farmacêutica às Unidades da Federação atingidas por desastres de origem natural associados a chuvas, ventos e granizo e define os respectivos fluxos de solicitação e envio. Diário Oficial da União 2012; out 22.
É verdade que os eventos que acometeram estes municípios foram causados por estas ameaças. No entanto, o kit do MS não contempla especificidades locais e nem mudanças no perfil de evolução do desastre2727 International Strategy for Disaster Reduction (ISDR). Global Assessment Report on Disaster Risk Reduction - Revealing risk, redefining development. Geneva: United Nations; 2011..O uso exclusivo do kit pode vir a produzir acúmulo de medicamentos desnecessários e falta de outros. Ainda, alguns gestores relataram que nem sempre os kits apresentavamse íntegros - havia falta de medicamentos e excesso de outros - e, para os gestores, tampouco era claro que o kit enviado incluía integralmente todos os itens descritos na portaria. Não havia uma descrição do conteúdo junto ao kit.
Apenas no município E a coordenação de AF afirmou que elaborou uma lista de necessidades (na qual estavam incluídas as quantidades de medicamentos e insumos) na ocorrência anterior. O fato de quatro municípios não possuírem essas informações evidencia que informações referentes a desastres anteriores não foram utilizadas na programação para eventos subsequentes. Segundo Freitas et al.2828 Freitas CM, Carvalho ML, Ximenes EF, Arraes FX, Gomes JO. Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e construção da resiliência: lições do terremoto no Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil. Cien Saude Colet 2012;17(6):1577-1586. é necessário que a população e os gestores reconheçam a vulnerabilidade climática e geofísica da região a enchentes e deslizamentos de terra, reconhecendo que potenciais desastres na região não são eventos inesperados. Ao reconhecer essa realidade, os gestores poderiam, utilizando-se das informações geradas em desastres anteriores, preparar-se.
Uma vez que a programação objetiva garantir a disponibilidade dos medicamentos selecionados na quantidade adequada e no tempo oportuno55 Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S, organizadores. Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: OPAS, OMS; 2003., a ausência desta etapa dificulta o acesso aos medicamentos em casos de desastre, levando-se em conta que o acesso se efetiva mediante a necessidade atendida2929 Oliveira MA, Esher AFSC, Santos EM, Cosendey MAE, Luiza VL, Bermudez JAZ. Avaliação da assistência farmacêutica às pessoas vivendo com HIV e AIDS no município do Rio de Janeiro. Cad Saude Publica 2002;18(5):1429-1439.. É preciso prever e programar-se, mormente por que o aumento inesperado da necessidade por determinado medicamento pode ocasionar seu desabastecimento3030 Reis AMM, Perini E. Desabastecimento de medicamentos: determinantes, consequências e gerenciamento. Cien Saude Colet 2008;13(Supl.):603-610.. A falta de acesso resulta em danos que poderiam ser evitados. A magnitude dos problemas gerados após a ocorrência de eventos evidencia o despreparo das autoridades e a falta de uma cultura de prevenção na sociedade3131 Warner JF. The politics of flood insecurity: Framing contested river management projects [tese]. Wageningen: Wageningen Universiteit; 2008..
Os coordenadores de AF dos cinco municípios afirmaram que recebem ajuda humanitária de medicamentos. Reconheceram que, na precipitação de eventos, os municípios receberam doações muitas vezes não solicitadas, seja da sociedade, seja de instituições ou dos governos federal e estadual. Apenas o município E afirmou a existência de um protocolo de doações e de um sistema de recolhimento de medicamentos, não vinculados a desastres. Uma instituição sem fins lucrativos recolhe medicamentos doados pela população, em campanhas e em unidades de saúde, além dos doados por distribuidoras e profissionais de saúde. Os medicamentos são triados e distribuídos em uma farmácia montada apenas com doação de medicamentos, que funciona através da Secretaria da Saúde e atende com prescrição médica ou odontológica.
Gerir medicamentos doados é o mesmo que gerir um estoque normal de medicamentos, pois exige os mesmos cuidados. Medicamentos são tecnologias sanitárias que podem causar danos, se mal utilizados3232 Álvarez JS. Evaluación económica de medicamentos y tecnologias sanitarias: Principios, métodos y aplicaciones en política sanitária. Madrid: Springer; 2012,3333 Vianna CMM, Caetano R. Diretrizes metodológicas para estudos de avaliação econômica de tecnologias para o Ministério da Saúde. Brasília: Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde; 2007.. Verificou-se, no entanto, que em casos de desastres os medicamentos foram tratados como bens de consumo de baixo risco à saúde, e recebidos com pouco ou nenhum critério técnico. Falta regulação específica para a gestão de medicamentos e desastres3434 Bero L, Carson B, Moller H, Hill S. To give is better than to receive: compliance with WHO guidelines for drug donations during 2000-2008. Bull World Health Organ 2010;88(12):922-929.,3535 Pinheiro CP. Drug donations: what lies beneath. Bull World Health Organ 2008;86(8):580.. Esta forma de entender a doação, como produto da mobilização social, necessariamente bom e seguro, é uma característica cultural que precisa mudar3636 Varghese SB. Cultural, ethical, and spiritual implications of natural disasters from the survivors'perspective . Crit Care Nurs Clin North Am 2010;22(4):515-522.. De fato, o governo federal não preconiza recebimento de ajuda humanitária externa; nos últimos quinze anos o país vem claramente adotando postura de país doador e não de receptor3737 Brasil. Cooperação Humanitária Internacional. Ações da cooperação Humanitária Brasileira [acessado 28 nov 2013]. Disponível em: http://cooperacaohumanitaria.itamaraty.gov.br/pt/acoes
http://cooperacaohumanitaria.itamaraty.g... . Mas existe intercâmbio de ajuda humanitária entre os entes federativos no país. É uma prática antiga. Portanto, é mais provável que a falta de protocolos seja decorrente de problemas na gestão da AF nesses municípios e da percepção equivocada de que tudo que é doado pode ser útil.
Apesar do correto armazenamento ser uma etapa necessária na garantia da qualidade3838 Management Sciences for Health (MSH). Managing drug Supl.y. 2nd ed. Connecticut: Kumarian Press; 1997., nenhum dos municípios armazena seus medicamentos segundo as boas práticas, que são critérios técnicos necessários para a garantia da qualidade dos medicamentos55 Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S, organizadores. Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: OPAS, OMS; 2003.. Para este estudo foi elaborado um roteiro de inspeção a partir da literatura55 Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S, organizadores. Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: OPAS, OMS; 2003.,3838 Management Sciences for Health (MSH). Managing drug Supl.y. 2nd ed. Connecticut: Kumarian Press; 1997.. Entre esses critérios inclui-se: condições higiênicas do local, sistema de controle de luz e temperatura, controle de pragas, afastamento de solo e de paredes e sistemática de armazenamento, entre outros.
Foram encontradas falhas importantes no armazenamento, como a ocorrência de pragas, má circulação do ar, exposição dos medicamentos a luz e calor, ausência de termômetros para controle de temperatura, extintores de incêndio ou sistemas de controle de estoque. Se na situação de normalidade o armazenamento de medicamentos não é realizado de forma a garantir sua qualidade, em desastres, quando os gestores admitiram que o armazenamento era inadequado, estima-se que a situação seja pior. Esta é mais uma evidência de que as falhas estruturais na organização da AF municipal comprometem a resposta a desastres e o fornecimento de medicamentos de qualidade à população afetada.
Uma distribuição de medicamentos correta e racional deve ser realizada em tempo hábil. O local afetado precisa receber os medicamentos na quantidade correta e com qualidade garantida. À distribuição deve ser somado um sistema eficiente de informação e de controle logístico e gerencial55 Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S, organizadores. Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: OPAS, OMS; 2003.. Apesar disso apenas o município D afirmou que a distribuição de medicamentos foi realizada em veículos adequados para o transporte de medicamentos. Além disso, gestores de três dos cinco municípios afirmaram que medicamentos foram distribuídos para abrigos, que não contam, necessariamente, com profissionais de saúde para atendimento. A disponibilidade de medicamentos em locais sem médicos para prescrevê-los ou farmacêuticos para realizarem o correto armazenamento e dispensação oferecem risco e não devem ser estimulados pelos gestores por comprometerem a segurança da população2020 Autier P, Férir MC, Hairapetien A, Alexanian A, Agoudjian V, Schmets G, Dallemagne G, Leva MN, Pinel J. Drug Suply in the aftermath of the 1988 Armenian earthquake. Lancet 1990;335(8702):1388-1390.
21 Berckmans P, Dawans V, Schmets G,Vandenbergh D, Autier P. InappropriateDrug-Donation Practices in Bosnia and Herzegovina, 1992 to 1996. N Engl J Med 1997;337(25):1842-1845.-2222 Drugdonations. Exemples of (in) appropriate drug donations. Paris: Drugdonations. [acessado 28 fev 2012] Disponível em: http://www.drugdonations.org/eng/richtlijnen/cases.html
http://www.drugdonations.org/eng/richtli... .
A utilização de medicamentos, que compreende a prescrição, a dispensação e o uso, é também um ponto estratégico, uma vez que para ocorrer de maneira adequada necessita que algumas condições sejam satisfeitas, mesmo na ocorrência dos desastres. Entre elas, que sejam prescritos os medicamentos corretos, por profissionais autorizados, que os dispensados sejam de qualidade, mediante orientação, e que o paciente faça o uso correto66 Brasil. Portaria GM Nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, cuja íntegra consta do anexo desta Portaria. Diário Oficial da União 1998; 10 nov..
Nos municípios afetados, os gestores de AF afirmaram que a demanda por medicamentos de uso crônico, especialmente hipertensão e diabetes, foram a principal demanda observada após o desastre. Segundo Aldrich e Benson3939 Aldrich N, Benson W. Disaster Preparedness and the Chronic Disease Needs of Vulnerable Older Adults. Prev Chronic Dis 2008;5(1)., aproximadamente 80% dos idosos teriam alguma condição crônica, o que os deixaria mais vulneráveis durante desastres. A interrupção do tratamento medicamentoso desses pacientes devido a desastres podem exacerbar essas condições ou até causar a morte4040 Brown DW, Young SL, Engelgau MM, MensahGA. Evidence-based approach for disaster preparedness authorities to inform the contents of repositories for prescription medications for chronic disease management and control. Prehosp Disaster Med 2008;23(5):447-457..
Ainda existe grande dificuldade na promoção de condições ideais na utilização de medicamentos em situação de normalidade, e principalmente em desastres. Estudo realizado apontou que 9% dos pacientes afetados por desastres que faziam uso de medicamentos para condições crônicas interromperam seu tratamento nos dias seguintes ao acontecimento de um evento, tendo esse número alcançado 23% entre a população que abandonou suas casas4141 Tomio J, Sato H, Mizumura H. Interruption of medication among outpatients with chronic conditions after a flood. Prehosp Disaster Med 2010;25(1):42-50..
Pacientes com doenças crônicas que receberam orientação dos profissionais de saúde relacionada à preparação para desastres tiveram uma chance menor de interromper seu tratamento após uma enchente, em relação aos pacientes que não foram orientados4141 Tomio J, Sato H, Mizumura H. Interruption of medication among outpatients with chronic conditions after a flood. Prehosp Disaster Med 2010;25(1):42-50.. Estas evidências apontam que medidas de preparação quanto ao uso de medicamentos são efetivas na redução de danos ao paciente em desastres.
Todos os municípios receberam estrutura temporária para o cuidado, diagnóstico, prescrição e dispensação de medicamentos. Todos os entrevistados afirmaram que as prescrições foram feitas por médicos. Farmacêuticos na dispensação só foram citados pelos coordenadores de AF dos municípios A e C. Os demais afirmaram que o baixo número de farmacêuticos na secretaria municipal de saúde teria motivado a ausência desse profissional de uma atividade que lhe é privativa66 Brasil. Portaria GM Nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, cuja íntegra consta do anexo desta Portaria. Diário Oficial da União 1998; 10 nov..
Enquanto nos municípios estudados praticamente não existiam medidas de preparação da AF para desastres, experiências em locais onde a preparação se efetiva evidenciam sua importância. Na cidade de Omaha, nos Estados Unidos, os farmacêuticos atuam na preparação para desastres desde 2000, nos hospitais, nas farmácias comunitárias e no meio acadêmico, tendo criado um comitê no qual participam juntamente com gestores estaduais e federais. Este comitê seria responsável pelo recebimento, armazenamento, distribuição e dispensação de medicamentos necessários em caso de desastre, além de ser responsável pelo monitoramento contínuo dos estoques em hospitais. Além disso, os farmacêuticos atuavam na educação de outros profissionais de saúde e da população4242 Massomi FF. Pharmacists in the Omaha Metropolitan Medical Response System. Am J Health Syst Pharm 2005;62(12):1290-1298., tendo um papel importante na preparação do município.
Considerações finais
Este é o primeiro artigo sobre preparação da assistência farmacêutica municipal em desastres no Brasil. Sendo o medicamento uma tecnologia presente em todos os níveis de cuidado em saúde, seu provimento e gestão em caso de desastre é prioritário. Os cinco municípios visitados apresentam, historicamente, registros de desastres por chuvas, enchentes e deslizamentos. No entanto, o estudo mostrou que não havia, de fato, preparação da assistência farmacêutica nesses locais.
O estudo pôde explicitar algumas experiências municipais em gestão da AF, principalmente naquelas que tangenciavam a preparação nos casos de desastre, mostrando também que as falhas de gestão pré-existentes não se resolvem, mas se agravam.
Ao utilizar-se de modelos teóricos já desenvolvidos e testados, pôde sintetizar de forma sistemática os principais elementos da AF na preparação para os desastres, bem como a importância de certos aspectos dos contextos externo e político-organizacional.
Os municípios visitados foram considerados estratégicos para a realização da pesquisa por que haviam sido acometidos por desastres importantes, no passado recente (de 10 a 18 meses antes). Vale ressaltar que os municípios visitados, ainda que não representativos dos municípios brasileiros acometidos por desastres relacionados a chuvas (causados por eventos como, por exemplo, enchentes e deslizamentos), possuem um perfil comum. Adicionalmente, esperar-se-ia que, principalmente esses municípios, deveriam estar preparados.
Espera-se que a apresentação da experiência desses municípios possa ser útil para apontar possíveis pontos de intervenção na AF, favorecendo a preparação de municípios sob risco de desastres no país.
- ColaboradoresP Pimenta-de-Souza e ES Miranda foram responsáveis pela coleta, análise e redação do artigo. CGS Osorio-de-Castro foi responsável pela orientação de todas as etapas e redação do artigo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2014
Histórico
- Recebido
11 Mar 2014 - Aceito
21 Maio 2014