Resumo
O objeto do artigo é a análise da implantação dos serviços comunitários no contexto regional. O artigo descreve o padrão de acesso aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II) no Estado do Rio de Janeiro na atual década. A partir dos resultados de um inquérito transversal foram identificadas diferentes categoriais de usuários dos serviços comunitários. O artigo recorre ao modelo teórico do isomorfismo organizacional para problematizar a condição de implantação em diferentes contextos municipais. O artigo demonstra que, independente do contexto local, é bastante discrepante a escala de responsabilização dos novos serviços com os usuários, especialmente aqueles saídos de internações de longa permanência ou ainda internados. Conclui que a análise de diferentes categorias de utilização permite problematizar as barreiras de acesso aos serviços comunitários. A identificação destas aos CAPS II pode contribuir para a reflexão crítica sobre a política de saúde mental brasileira atual.
Palavras-chave
Reforma psiquiátrica; Centros de atenção psicossocial; Avaliação de política pública; Política de saúde mental; Inovação em políticas
Abstract
The scope of this article is to analyze the implementation of community mental health services in the regional context in Brazil. The article describes the issue of access to community psychosocial centers (CAPS II) in the State of Rio de Janeiro in this decade. By means of a cross-sectional survey, different categories of users of community services were identified. The theoretical models of organizational isomorphism and innovation and diffusion of policies were applied to discuss the adoption and development of community mental health services in different municipal contexts. The article highlights the fact that, irrespective of the local context, there is a considerable discrepancy between the scale of commitment of community mental health to new patient services, especially for those coming out of long-stay hospitalizations or who are still hospitalized. It concludes that the analysis of different categories of users makes it possible to study the problem of barriers of access to community services. The identification of barriers to access CAPS II can contribute to a critical reflection on the current Brazilian mental health policy.
Key words
Psychiatric reform; Community psychosocial centers; Accessibility; Public policy evaluation; Mental health policy; Policy innovation
Introdução
Este artigo descreve a acessibilidade nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II) no Estado do Rio de Janeiro na atual década. A acessibilidade é definida pela condição de utilização de serviços de saúde diante de barreiras geográfica, financeira, estrutural e organizacional. Para descrever o padrão de acesso, o trabalho categoriza as várias condições dos usuários dos CAPSII em diferentes municípios.
No Brasil, o desenvolvimento da política de saúde mental está fortemente associado à estratégia substitutiva da atenção em hospitais psiquiátricos para os serviços comunitários. No início da década de 1990, os CAPS foram incorporados ao Sistema Único de Saúde11. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria SNAS/MS 224, de 29 de janeiro de 1992. Diário Oficial da União 1992; 30 jan.. Depois de dez anos, as tipologias CAPSI, CAPSII e CAPSIII foram definidas como um modelo a ser adotado nacionalmente pelos governos locais22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n° 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II. Diário Oficial da União 2002.. Até hoje as três modalidades organizacionais detêm competência para o atendimento de usuários com transtornos mentais severos e persistentes, constituindo-se como unidades ambulatoriais de atenção diária sob a lógica de territorialização. Além das três modalidades, foram também criados os serviços comunitários na área de álcool e drogas (CAPS ad) e para a infância e adolescência (CAPS i)22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n° 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II. Diário Oficial da União 2002.. Em 23 de dezembro 2011, a Portaria 3088 do Ministério da Saúde ampliou substancialmente o leque dos serviços comunitários ao propor a Rede de Atenção Psicossocial33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n° 3088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2011; 26 dez..
Os avanços na percepção política, societária e legal na relação ao direito à saúde, criaram as condições institucionais para a cooperação federativa no Sistema Único de Saúde (SUS) e a massiva difusão nacional dos serviços públicos em base municipal nas últimas três décadas44. Falleti TG. Infiltrating the State. The Evolution of Health Care Reforms in Brazil, 1964-1988, In: Mahoney, J, Thelen, K, organizadores. Explaining Institutional Change: Ambiguity, Agency, and Power. Cambridge: Cambridge University Press; 2009. p. 38-62.–66. Brasil. Presidência da República. Lei 10.216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr.. A política de saúde mental foi muito favorecida pelo avanço da descentralização cooperativa na saúde pública: a adoção das diretrizes da reforma psiquiátrica pelos governos municipais e estaduais, no contexto do desenvolvimento do SUS77. Costa NR, Siqueira S, Uhr D, Silva PRF, Molinaro AA. Reforma Psiquiátrica, Federalismo e Descentralização da Saúde Pública no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 16(12):4603-4614., foi extraordinária: em 2010, a disponibilidade de CAPS alcançou 1620 unidades no âmbito da assistência pública. Em 2001, quando promulgada a Lei 10.216, a oferta nacional ainda era de apenas 295 unidades88. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental em Dados. Brasília: MS; 2012. (Ano VII, número 10)..
Este artigo objetiva contribuir para a compreensão do significado deste desenvolvimento de política pública setorial pela problematização e reflexão da acessibilidade aos novos serviços comunitários99. World Health Organization (WHO). Report on mental health system in Brazil. Brasília: WHO; 2007.. A proposta é descrever, em perspectiva transversal, a acessibilidade dos CAPSII em um contexto regional, buscando ampliar a compreensão sobre o desenvolvimento da relação usuários/serviços comunitários na esfera da política pública de saúde mental.
As diferentes tipologias de CAPS atuam em um território de referência, articuladas preferencialmente às unidades de atenção básica, hospitais gerais, serviços emergenciais, residências terapêuticas e ambulatórios. Neste contexto, a competência dos CAPS está centrada na prestação de assistência aos transtornos mentais graves. O estudo de Cavalcanti et al.1010. Cavalcanti MT, Dahl CM, Carvalho MCA, Valencia E. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial. Rev Saude Publica 2009; 43(Supl. 1):23-28., por exemplo, identificou que os diagnósticos de esquizofrenia e pacientes em quadro psicótico agudo e com sintomatologia negativa importante tendem a ser predominantes para tratamento em CAPS, enquanto diagnósticos de transtornos dissociativos, ansiedade ou depressivos leves e pacientes estabilizados e sem sintomatologia psicótica são encaminhados para o restante da rede de saúde.
Os CAPS assumem também a responsabilidade de oferecer aos usuários um "projeto terapêutico singular". Como assinalam Boccardo et al.1111. Boccardo ACS, Zane FC, Rodrigues S, Mângia EF. O projeto terapêutico singular como estratégia de organização do cuidado nos serviços de saúde mental. Rev. Ter. Ocup. 2011; 22(1):85-92., a construção do "projeto terapêutico singular" deve envolver a pessoa com transtorno mental, seus familiares e a rede social, num processo contínuo orientado à inclusão social. O projeto terapêutico singular busca, nesse sentido, a redução da dependência exclusiva dos usuários aos serviços de saúde pela ativação de recursos exteriores a eles.
Os novos serviços territoriais devem, além desse compromisso específico com o usuário, exercer atividades regulatórias: organizar a demanda e a rede de cuidados em saúde mental; regular a porta de entrada da rede assistencial; coordenar as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas; supervisionar as equipes de atenção básica e serviços e programas de saúde mental e realizar o cadastramento dos usuários de psicofármacos essenciais e excepcionais22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n° 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II. Diário Oficial da União 2002..
Nascimento e Galvanese1212. Nascimento AF, Galvanese ATC. Avaliação da Estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial do Município de São Paulo, SP. Rev Saude Publica2009; 43(Supl. 1):8-15. assinalam a dependência dos serviços comunitários à capacidade do sistema municipal de saúde e à habilidade das unidades estabelecerem cooperação com os serviços no território. Ainda assim, segundo Nunes e Onocko-Campos1313. Nunes MO, Onocko-Campos RT. Prevenção, Atenção e Controle em Saúde Mental. In: Paim J, Almeida-Filho N, editores. Saúde Coletiva Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 503-506., as redes constituídas, em algumas cidades, "mostraram-se continentes para familiares e usuários," confirmando a conquista de um projeto que visa "tratar de modo humanizado, na comunidade e sem produzir isolamento social".
Transcorrida duas décadas da Portaria 224/199211. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria SNAS/MS 224, de 29 de janeiro de 1992. Diário Oficial da União 1992; 30 jan., que instituiu os serviços comunitários, cabe avaliar a experiência de disseminação do modelo CAPS nos contexto regional? Os estudos de caso sobre cidades, serviços ou projetos terapêuticos bem sucedidos esgotaram o assunto?
Considera-se que não. Pelo contrário, é possível aceitar a possibilidade de que a experiência da adoção dos CAPS ainda esteja aberta à reflexão e à análise. Nesse sentido, o artigo oferece uma contribuição à compreensão da adoção dos CAPS enquanto uma opção de política pública. Para dar conta desta tarefa, o artigo utiliza descritores de acessibilidade que problematizam o alcance da inclusão da população-alvo nos novos serviços.
Desenho do estudo
O artigo toma como ponto de partida o desafio posto por Onocko-Campos e Furtado1414. Onocko-Campos RT, Furtado J P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2006; 22(5):1053-1062., que assinalam a necessidade de compreensão da efetivação da nova política de prestação de cuidados. Considera-se que a radical escala das inovações que o novo modelo assistencial associado aos CAPS propõe – amplo escopo de compromissos com os usuários e a ruptura com o modelo hospitalar na psiquiatria – é um obstáculo ao desenvolvimento e à consolidação do modelo organizacional em qualquer contexto municipal.
A partir desta compreensão, entende-se que a análise do padrão de adoção e desenvolvimento de uma nova ação governamental permite reconhecer os processos não antecipados inerentes a qualquer iniciativa de política pública. A preocupação com os resultados não antecipados advém da constatação de que os gestores de políticas públicas atuam subordinados à incerteza informacional na tomada de decisão. Eles não controlam as contingências que incidem sobre o ambiente governamental ou organizacional onde operam. Por exemplo, as decisões de adoção e desenvolvimento de uma inovação em política pública podem apenas resultar em mudanças marginais em relação à realidade das políticas setoriais já existentes. Nesse sentido, acolhe-se a ideia de que a condição institucional da política em curso, a capacidade econômica ou mesmo a magnitude da população sob a responsabilidade de uma instância governamental podem atuar como um fator impeditivo ao pleno desenvolvimento e consolidação de uma nova opção organizacional1515. Berry FS, Berry WD. Innovation and Diffusion Models in Policy Research. In: Sabatier PA, Editor. Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press; 2005. p. 223-260..
Para responder às falhas não antecipadas na adoção e desenvolvimento dos serviços comunitários, foram incentivados na segunda metade da década de 1990 os primeiros estudos avaliativos em saúde mental. O solo comum que direcionou esses estudos era a correta percepção da ineficiência dos indicadores tradicionais da assistência psiquiátrica – diagnóstico, remissão de sintomas, tempo médio de permanência e taxa de ocupação – para a avaliação dos CAPS. Esses indicadores não capturariam a complexidade do desenvolvimento e consolidação destes novos serviços comunitários1616. Almeida PF, Escorel S. Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais. Saúde Debate2001; 25(58):35-47.. Essa crítica acertou ao questionar a validade do uso de modelos de pesquisa quase experimentais para avaliar as mudanças em processos institucionais e organizacionais complexos. Ainda assim, os estudos avaliativos pouco avançaram na construção de argumentos, conceitos e indicadores para a avaliação do padrão de desenvolvimento dos CAPS em um ambiente esperado de incerteza institucional ou estrutural, não acompanhando os balanços da experiência internacional1717. Lora A. An Overview of the Mental Health System in Italy. Ann Ist Super Sanità 2009; 45(1):5-16..
O mais recente esforço de avaliação dos CAPS proposto por Furtado et al.1818. Furtado J P, Onocko-Campos RT, Moreira MIB, Trape TL. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad Saude Publica 2013; 29(1):102-110. focalizou o desenvolvimento organizacional. Esta pioneira abordagem privilegiou a avaliação do desenvolvimento da política pública com base no consenso entre pares, deixando assim em aberto a problematização das possíveis dificuldades e limitações dos CAPS para responder às múltiplas competências assistenciais.
Esta é a justificativa para a realização deste artigo: trata-se do resultado de um estudo exploratório que pretende tornar visível a condição de acesso a partir de descritores derivados da informação dos gestores dos CAPSII.
Para isso, assume-se que os CAPSII guardam elevada similaridade organizacional em razão do processo isomórfico mimético que presidiu a sua difusão nacionalmente como modelo de serviços de saúde mental. A teoria do isomorfismo descreve o processo impositivo que obriga dado elemento de uma população (indivíduos ou organizações) assemelhar-se a outra para responder às mesmas exigências do ambiente social. Nesta perspectiva, as organizações não são criadas apenas para obter recursos e clientes, mas para buscar prestígio ou legitimidade. A teoria do isomorfismo contribui para explicar as muitas situações de homogeneização no plano organizacional que o processo de difusão de políticas públicas apresenta1919. Di Maggio PJ, Powell WW. The Iron Cage Revisited: institutional isomorphism and collective rationality in organization fields. American Sociological Review 1983; 48(2):147-160..
Di Maggio e Powell1919. Di Maggio PJ, Powell WW. The Iron Cage Revisited: institutional isomorphism and collective rationality in organization fields. American Sociological Review 1983; 48(2):147-160. argumentam que pressões institucionais propiciam adaptações organizacionais por meio de três mecanismos isomórficos: mimético, normativo e coercitivo. O mecanismo mimético proposto pelos autores é referido às situações de incerteza que levam os agentes a adotar mecanismos organizacionais disponíveis no ambiente social. O isomorfismo normativo tem origem na preferência dos profissionais que dominam um ramo de atividade. A organização do tipo profissional resulta da ação coletiva de membros de uma ocupação para definir condições, métodos de trabalho e autonomia decisória. Por fim, o isomorfismo coercivo é fortemente influenciado pela pressão formal e informal exercida pela regulação de governo. Nessa perspectiva, é aceita a tese de que a disseminação dos CAPS é fruto das diretrizes indutoras imitativas, inspiradas no modelo proposto nacionalmente pela reforma psiquiátrica. Usualmente as abordagens normativas sobre a adoção de políticas públicas aceitam a ideia de que um padrão isomórfico imitativo de tamanha magnitude, como observado no segmento público da saúde mental brasileira, tenderia à produção de respostas previsíveis para os problemas que desafiam às organizações. Neste caso, a análise de desempenho dos CAPSII em relação ao acesso dos usuários nada mais seria que a ratificação da ideia de que estes dispositivos oferecem a mesma resposta a problemas semelhantes. No caso de falhas pontuais, todo o modelo inovativo dos CAPS deveria ser severamente criticado e, no limite, rejeitado.
Este artigo sugere que esta perspectiva sobre a adoção dos CAPS seja considerada com cautela. Alternativamente, propõe que os CAPSII possam dar respostas inesperadas aos desafios da acessibilidade, a despeito da grande distância entre os meios que dispõem e os fins que almejam, em razão de características organizacionais singulares e de contexto institucional.
Para responder a esta suposição, o artigo optou pela identificação das situações particularíssimas de acesso aos CAPSII como descritores do padrão de adoção dos novos serviços no contexto regional e local: usuários matriculados, usuários que frequentam efetiva e regularmente o serviço, usuários em projeto terapêutico intensivo, usuários em situação de pronto-atendimento, usuários procedentes de internações de longa permanência e usuários de longa permanência acompanhados pelo CAPS, mas ainda internados.
O uso da categoria de usuário em pronto-atendimento demanda um esclarecimento adicional. A categoria contempla o usuário que estava frequentando o serviço, sendo atendido, mas não formalmente matriculado na época da pesquisa. No contexto do CAPS, cabe chamar atenção que a categoria de usuário em pronto-atendimento se diferencia substancialmente daquela em atendimento de situações de urgências e crises em serviços de Pronto Atendimento hospitalar. A utilização da categoria pretende assim destacar a existência de atendimentos ambulatoriais realizados pelos CAPS. Mais especificamente, o artigo quer sublinhar que este atendimento ambulatorial comporta somente consultas e não os acolhimentos.
O artigo objetiva, com as tipologias de usuários, fazer a aproximação da avaliação dos serviços comunitários de saúde mental às discussões mais gerais sobre a capacidade governamental de responder aos desafios da universalização do direito à saúde. Com esse propósito, chama atenção também a prevalência dos eventos associados ao desempenho dos CAPSII: quantidade de alta, abandono do tratamento e internação em situação de crise.
O trabalho acolhe igualmente o desafio da problematização sistemática dos fatores institucionais e organizacionais que facilitam ou impedem que as pessoas obtenham o cuidado de que necessitam e deles se beneficiem na análise de situações concretas ao nível regional, para redirecionar o sistema de saúde na direção dos princípios do SUS2020. Travassos C, Viacava F. Utilização e Financiamento de Serviços de Saúde: dez anos de informação das PNAD. Cien Saude Colet 2011; 16(9):3646-3646.. Portanto, busca-se com esses descritores não apenas a identificação de categorias demográficas e diagnósticas, mas oferecer a articulação entre a literatura sobre adoção e desenvolvimento de politicas públicas e o campo da avaliação para o entendimento da acessibilidade aos serviços comunitários.
Para a produção dos dados transversais foi utilizado um formulário de autopreenchimento para resposta pessoal dos diretores-gerentes dos CAPSII nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro. O uso de formulário de autopreenchimento está dentro dos procedimentos aceitáveis para a pesquisa social, que ademais prescinde das exigências formais de validação, exigidas na pesquisa clínica. Investigadores sociais preocupados com os temas da validade e confiabilidade da pesquisa social como, por exemplo, Floyd J. Fowler Junior 2121. Fowler Junior FJ. Improving Survey Questions. London: Sage; 1995., apenas chamam a atenção para o fato de que um bom questionário na pesquisa social é aquele que gera respostas confiáveis e indicadores válidos para a compreensão dos processos sociais, independendo de ratificação externa. A opção do autopreenchimento deveu-se também à grande quantidade de informações administrativas demandadas ao gestor, que exige tempo para resposta. Em relação à dimensão temporal, Wooldridge2222. Wooldridge J F. Introdução à Econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Thompson; 2006. define um conjunto de dados como transversais quando coletados no mesmo ponto do tempo. Os dados transversais analisados descritivamente são derivados da informação administrativa.
O formulário de autopreenchimento foi respondido no segundo semestre de 2010 e no primeiro de 2011, oferecendo um quadro específico e conjuntural de uma etapa histórica da política pública municipal para a saúde mental. Portanto, os eventuais desdobramentos na política de saúde mental observados no novo ciclo de governos municipais pós-eleições de 2012 não foram considerados no trabalho. A escolha do formulário estruturado de autopreenchimento visou obter uma visão padronizada e abrangente da condição dos CAPSII do Estado do Rio de Janeiro, com base nas mesmas perguntas para diferentes atores na mesma posição na tomada de decisão. Junto ao formulário seguiu também o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) para a assinatura dos respondentes2323. Corrêa SGP. Avaliação de Novos Serviços de Saúde Mental: o caso dos Centros de Atenção Psicossocial do Estado do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011.. A aplicação desta estratégia de estudo obteve respostas de 30 (trinta) CAPSII (75% dos questionários enviados). Dos respondentes, doze (40%) eram da Capital e dezoito (60%) de outros municípios do Estado do Rio de Janeiro2323. Corrêa SGP. Avaliação de Novos Serviços de Saúde Mental: o caso dos Centros de Atenção Psicossocial do Estado do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011.. A pesquisa foi aprovada no comitê de ética em pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.
As várias condições de provisão e acesso aos CAPSII
Antes da análise das condições de acesso, cabe chamar atenção, inicialmente, para o padrão geral de provisão de CAPS de todos os tipos no Estado do Rio de Janeiro no primeiro ano desta década. O indicador de provisão descreve o quantitativo de estabelecimentos para a população-alvo de um serviço ou programa de saúde2424. Habicht JP, Victora CG, Vaughan JP. Evaluation Designs for Adequacy, Plausibility and Probability of Public Health Programs Performance and Impact. Int J Epidemiol 1999; 28(1):10-18.. A provisão dos serviços comunitários de saúde mental no país foi calculada a partir da equação [(n° CAPSI x 0,5)+(n° CAPSII)+(n° CAPSIII x 1,5)+(n° CAPSi)+(n° CAPSad)/população] *100.00 habitantes88. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental em Dados. Brasília: MS; 2012. (Ano VII, número 10).. Em 2011, a cobertura média da provisão de CAPS de todos os tipos era expressivamente alta no conjunto do Estado (1,31 por 100 mil habitantes). Como mostra a Tabela 1, a condição adequada de provisão de CAPS de todos os tipos no Estado do Rio de Janeiro era sustentada, em 2011, por municípios de pequeno e médio porte. Existia, na época da pesquisa, consistente evidência de que a elevada magnitude populacional desfavorecia as metrópoles em cumprir adequadamente os requisitos de adoção dos novos serviços dentro dos parâmetros nacionalmente difundidos pelo Ministério da Saúde.
Situação de provisão de todos os tipos de CAPS em municípios do estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2011.
Fonte: Ministério da Saúde. Datasus3131. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS; Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (DATASUS-CNES): Recursos Físicos; Hospitalar; Leitos de internação; Rio de Janeiro. [acessado 2013 set 19]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/ cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/leiintrj.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
Com efeito, nota-se que nos municípios com população acima de 800 mil habitantes (Nova Iguaçu, Duque de Caxias e São Gonçalo) e na megacidade do Rio de Janeiro, era observada uma condição de provisão bastante restrita quando considerado o padrão ótimo de provisão esperado pelo Ministério da Saúde (0,70 de todos os tipos de CAPS por 100 mil habitantes)77. Costa NR, Siqueira S, Uhr D, Silva PRF, Molinaro AA. Reforma Psiquiátrica, Federalismo e Descentralização da Saúde Pública no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 16(12):4603-4614.. Destaque-se, adicionalmente que, em 2011, do total de CAPS de todos os tipos em funcionamento no Estado do Rio de Janeiro, apenas dois do tipo III estavam cadastrados no SUS – funcionando um em Petrópolis e outro em Nova Iguaçu2525. Brasil. Ministério da Saúde. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. [acessado 2013 out 4]. Disponível em: http://189.28.128.178/sage/
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A Tabela 2 move a apresentação dos dados para o nível organizacional ao descrever o universo dos CAPSII que responderam ao questionário de autopreenchimento entre o segundo semestre de 2010 e o segundo de 2011. Observa-se que os serviços comunitários eram relativamente recentes – tinham em média oito (8) anos de funcionamento e apresentavam um quantitativo de pessoal (profissionais de nível superior, técnicos e apoio administrativo) surpreendentemente convergente (em torno de 20 funcionários por estabelecimento, com aceitável variabilidade de 33%). O quantitativo de pessoal caracterizava um padrão organizacional bastante convergente dessas novas unidades, independente do Município onde estas estivessem situadas.
Características organizacionais e distribuição dos usuários dos CAPSII no estado do Rio de Janeiro em 2010-2011 (durante os 12 meses anteriores à pesquisa).
Fonte: Questionário aplicado aos CAPSII do Estado do RJ em 2010 e 2011.
Entretanto, observa-se na Tabela 2 a alta discrepância entre os CAPSII na quantidade de usuários em pronto-atendimento, de altas e de usuários ainda institucionalizados, mas acompanhados pelo serviço. Outra expressiva discrepância era observada na quantidade de abandonos, de encaminhamentos à internação, de usuários de longa permanência frequentando os serviços e no total de usuários sob a responsabilidade do CAPS (média de 360 e coeficiente de variação de 54%). Estas discrepâncias revelam uma elevada diferenciação organizacional na capacidade de vincular os usuários dos CAPSII do Estado do Rio de Janeiro no biênio 2010/2011. Cabe chamar atenção, novamente, para o fato de que a diferenciação organizacional independia da capacidade de provisão ou porte populacional municipal.
A Tabela 3 reforça a importância da diferença no desempenho organizacional nos CAPSII no Estado do RJ pelo cálculo da razão usuários/funcionários e do percentual de abandonos, altas e internações/total de usuários frequentando nos doze meses anteriores à data da entrevista. A Tabela 3 informa o percentual em cuidado intensivo e o de usuários de longa permanência em relação ao total frequentando.
Características organizacionais e condição de acesso aos CAPSII no estado do Rio de Janeiro em 2010-2011 (12 meses anteriores à pesquisa).
Fonte: Questionário aplicado aos CAPSII do Estado do RJ em 2010 e 2011.
Havia 22 usuários em média por funcionário nos CAPSII. A distribuição indica situações de alta eficiência organizacional por meio da presteza da resposta à demanda em alguns estabelecimentos. O CAPSII Linda Batista, no bairro de Guadalupe na cidade do Rio de Janeiro, operava, por exemplo, com 68 usuários por funcionário, 10 vezes acima do CAPSII com menor relação usuário/funcionário.
O percentual médio de 17% dos usuários em pronto-atendimento nos CAPSII no biênio estudado era surpreendentemente alto. Na ponta extrema estava um CAPSII da cidade do Rio de Janeiro que informou o percentual de 56% dos usuários em pronto-atendimento. De modo geral, o alto percentual de usuários em pronto-atendimento que foi informado pode indicar que uma parcela dos CAPSII operava no limite da sua capacidade organizacional, o que os obrigava a gerar barreiras para a matrícula efetiva no serviço. Por outro lado, a precariedade da rede de saúde mental ou de atenção básica do território poderia estar impedindo os encaminhamentos para dispositivos de cuidado mais adequados.
É também expressiva a média de 19% de usuários que demandavam cuidado intensivo (atendimento diário, oferecido em situação de grave sofrimento psíquico, em situação de crise ou dificuldades intensas no convívio social e familiar). Como mostra a Figura 1, a alta proporção de usuários com cuidado intensivo frequentando um CAPS afetava negativamente a capacidade de acolher novos usuários, confirmando que os CAPS definiam diferentes escolhas na composição de público-alvo. A alta participação de usuários com cuidado intensivo respondia, sem dúvida, à missão institucional dos CAPS, mas havia a inibição ao acolhimento de novos usuários em função da intensidade do cuidado. Não resta dúvida que o público-alvo com maior exigência de cuidado merece especial atenção em estudos futuros que aprofundem a compreensão da singularidade na inserção territorial dos novos serviços.
Percentual de usuários com cuidado intensivo em relação ao frequentando e quantidade de usuários matriculados no CAPSII.
A média de abandonos de 7% do total de usuários matriculados era expressivamente baixa em relação ao identificado na literatura, ainda que sejam escassos os estudos nacionais referentes à avaliação dos que largam o tratamento nos CAPS. Melo e Guimarães2626. Melo APS, Guimarães MDC. Fatores Associados ao Abandono do Tratamento Psiquiátrico em um Centro de Referência em Saúde Mental em Belo Horizonte. Rev. Bras. Psiquiatr 2005; 27(2):113-118. encontraram uma taxa abandono de 39,2% em um CAPS de Belo Horizonte após analisarem 295 prontuários. As taxas de abandono em serviços de saúde mental para usuários nos estudos internacionais são altamente discrepantes, variando de 20% a 60%, dependendo de vários fatores como, por exemplo, a maneira de definir o abandono e do tipo de dispositivo onde o fenômeno é analisado. Em geral, o abandono é mais frequente nas etapas iniciais do tratamento2727. Reneses B, Muñoz E, López-Ibor JJ. Factors Predicting Drop-Out in Community Mental Health Centres. World Psychiatry 2009; 8(3):173-177..
A Tabela 3 mostra o percentual médio de usuários procedentes de longas internações (ULP) que foram inseridos nos CAPSII em relação aos que estão frequentando, para todos os Municípios com exceção de Cabo Frio (que não respondeu a questão). Observa-se que a média proporcional de ULP inseridos em relação aos usuários frequentando é residual (1,5% dos usuários). Pode-se considerar, também, a possível existência, no período da pesquisa, de pacientes egressos de longa internação acompanhados pelos CAPSI, localizados nos pequenos municípios do Estado (fora do escopo da pesquisa). Como citado anteriormente, os CAPSIII não faziam a diferença na época no Estado porque eram ape- nas dois em 2011 (um em Petrópolis e outro em Nova Iguaçu).
A Tabela 3 apresenta também o percentual médio de 4% dos ULP, ainda internados, que é acompanhada pelos CAPSII em trabalho de desinstitucionalização. O acompanhamento da clientela de longa permanência ainda institucionalizada era prioridade em raríssimos CAPSII do Estado. Destacam-se os casos dos CAPSII de São Gonçalo, Nova Friburgo e o CAPS Clarice Lispector da cidade do Rio de Janeiro, que informavam um percentual de acompanhamento acima de 10% no biênio 2010/2011. O resultado médio de baixo acompanhamento pode ter como explicação a pequena escala do trabalho de desinstitucionalização nos estabelecimentos. A hipótese é paradoxal porque confronta uma das principais diretrizes da política de saúde mental brasileira, referente à desinstitucionalização dos usuários de longa permanência, que devem ser reinseridos socialmente e tratados em serviços de base comunitária11. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria SNAS/MS 224, de 29 de janeiro de 1992. Diário Oficial da União 1992; 30 jan.. Em final de 2010, foram contabilizados 1093 usuários de longa permanência na cidade do Rio de Janeiro2828. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Saúde. Sistema de Informações em Saúde Mental. [acessado 2013 fev 18]. Disponível em: http://www.sms.rio.rj.gov.br/sisme/relatorios/psicrelint.php.
http://www.sms.rio.rj.gov.br/sisme/relat... . Os dados deste artigo revelam que apenas 13% deste universo estavam sendo foco de trabalho de desinstitucionalização pela ação dos CAPSII da Capital (que eram todos da tipologia II na época da pesquisa).
A Tabela 3 mostra que a média do percentual de internações dos usuários que frequentavam os CAPSII do Estado do Rio de Janeiro foi de 6% em 2010/2011. Um CAPSII da cidade do Rio de Janeiro e outro de Barra Mansa informaram percentuais acima de um dígito na taxa de internação. O caso extremo foi o de um dos CAPSII do Município de Niterói, que reportou que 27% dos usuários foram encaminhados à internação nos 12 meses anteriores à pesquisa.
O encaminhamento à internação, ainda que baixo no geral, revela que muitos CAPSII do Rio de Janeiro conviviam com a necessidade de recorrer a outros serviços com maior nível de complexidade de uma forma relativamente rotineira. Paradoxalmente ao que poderia se esperar, visto que as questões relacionadas com as internações hospitalares são centrais no papel dos CAPS, os estudos sobre o impacto da atenção psicossocial sobre as taxas de internação são pouco frequentes. Duas pesquisas, uma sobre a rede da cidade de Pelotas e outra sobre a de Santos, avaliaram positivamente a intervenção dos CAPS sobre as taxas de internações psiquiátricas. O estudo de avaliação da efetividade do cuidado dos CAPS na cidade de Pelotas mostrou que usuários que se encontravam na modalidade intensiva de atenção apresentaram redução na taxa de internações psiquiátricas anteriormente observadas2929. Tomasi E, Facchini LA, Piccini RX, Thumé E, Silva RA, Gonçalves H, Silva SM. Efetividade dos Centros de Atenção Psicossocial no Cuidado a Portadores de Sofrimento Psíquico em Cidade de Porte Médio do Sul do Brasil: uma análise estratificada. Cad Saude Publica 2010; 26(4):807-815.. O estudo na cidade de Santos realizado por Andreolli et al.3030. Andreoli SB, Ronchetti, SSB, Miranda ALP, Bezerra CRM, Magalhães CCPB, Martin D, Pinto RMF. Utilização dos Centros de Atenção Psicossocial na cidade de Santos, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2004; 20(3):836-844.revelou também uma redução consistente no número de internações psiquiátricas em 2001, justificada pelos autores pela estabilidade de mais de dez anos da estrutura de CAPS da cidade. A Tabela 4 exemplifica o tipo de serviço de saúde mental para o qual os CAPSII encaminharam os usuários em situação de crise cujo manejo não pôde se dar exclusivamente no âmbito do serviço. Chama especial atenção, por um lado, a alta prevalência de encaminhamentos para hospital psiquiátrico conveniado privado como uma das opções para internação (83,3% dos CAPII encaminharam).
Estabelecimentos utilizados pelos CAPSII do estado do Rio de Janeiro na internação nos 12 meses anteriores à pesquisa – por ordem no percentual de resposta (a pergunta admitia mais de uma resposta) – dezembro de 2010.
Fonte: Questionário aplicado aos CAPSII do Estado do RJ em 2010 e 2011.
Por outro lado, os escassos CAPSIII existentes no Estado do Rio de Janeiro à época da pesquisa foram mencionados por dois CAPSII (7% dos respondentes). O encaminhamento para internação em hospitais gerais foi informado por 12 CAPSII. Esta razoável frequência da internação em hospital geral é surpreendente porque, a despeito da expressiva política de deshospitalização levada a cabo pela Reforma Psiquiátrica no país, a situação da provisão de leitos psiquiátricos em hospital geral no estado do Rio de Janeiro ao final de 2010 era sofrível, correspondendo a apenas 2,26% (172 leitos) do total de leitos existente (6.724 leitos)3131. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS; Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (DATASUS-CNES): Recursos Físicos; Hospitalar; Leitos de internação; Rio de Janeiro. [acessado 2013 set 19]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/ cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/leiintrj.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.... . A maioria dos municípios com leito (82,5%) dispunha de apenas 1 a 4 em hospital geral, indicando que esta modalidade de atenção tinha um papel quase nulo no enfrentamento das crises.
A análise do acompanhamento dos usuários por suas equipes responsáveis, quando estes se encontram internados, apontou que menos da metade delas (43%) o conseguiu realizar. Um pouco mais da metade das equipes dos CAPSII, 53%, os acompanha de modo parcial e 3% (um CAPSII) não acompanha, apontando para uma falha de responsabilização da maioria das equipes dos CAPSII durante a internação psiquiátrica.
Conclusões
Os marcadores de acessibilidade dos CAPSII deste estudo mostraram-se funcionais para descrever a condição de inserção dos usuários nos serviços comunitários. Emerge deste estudo a inesperada diversidade na condição de acesso aos CAPSII. Essa pluralidade indica a presença de barreiras de acesso não captadas pelos indicadores amplos de provisão de CAPSII. A falha na acessibilidade convida, sem dúvida, para que seja problematizada a experiência da reforma psiquiátrica no país, na inovativa perspectiva da avaliação do desempenho do sistema de saúde brasileiro3232. Viacava F, Almeida C, Caetano R, Fausto M, Macinko J, Martins M, José Noronha JC, Novaes HMD, Oliveira ES, Porto SM, Silva LMV, Szwarcwald CL. Uma metodologia de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde Brasileiro. Cien Saude Colet 2004; 9(3):711-724.. Acompanhado as inquietações desta literatura, propomos que as categorias de acessibilidade possam compor também os indicadores de monitoramento e avaliação de todos os tipos CAPS, fortalecendo o conjunto fundamental de informações divulgadas pelo Ministério da Saúde brasileiro.
Não resta dúvida de que são necessários novos estudos sobre as categorias de usuários de CAPS: será que a existência de uma grande proporção de pacientes em pronto-atendimento em algumas unidades do estado do Rio de Janeiro ratificaria a ideia de que os CAPSII impõem barreiras ao acolhimento? A condição de "pronto-atendimento" está situando usuários na periferia dos serviços comunitários de saúde mental, tendo como principal opção de tratamento a consulta médica e a psicofarmacoterapia? Os novos estudos devem também testar a hipótese relativa à ausência da rede psicossocial no território como fator associado à permanência na órbita dos centros de atenção psicossocial de pessoas que deveriam, pelo seu perfil clínico, ser encaminhadas a outros dispositivos. Emerge dos dados apresentados neste artigo a diversidade de resposta organizacional em relação à clientela alvo dos CAPSII: é notável a alta heterogeneidade na eficiência organizacional em relação à utilização, independente da população do Município em que operavam. A independência do desempenho organizacional da governança municipal pode ser considerada como uma constatação inesperada, porque comprovaria, adicionalmente, a baixa capacidade normativa dos governos locais sobre os seus serviços de saúde.
Constata-se, nesse sentido, que parte dos CAPSII funcionava no limite da capacidade organizacional e que outra parcela apresentava elevada folga organizacional. Chamou igualmente atenção que nos CAPSII com elevado número de usuários por funcionário a quantidade de abandono era baixa. É bastante evidente o compromisso destes CAPSII com a população usuária. Quais as motivações institucionais e organizacionais para tamanho comprometimento? Novas investigações são necessárias para ampliar a compreensão dessas experiências organizacionais. A mesma preocupação vale para a avaliação do impacto da quantidade de usuários com cuidado intensivo na atuação dos CAPSII.
O estudo constatou que a utilização dos serviços comunitários era também caracterizada pelo pequeno número de altas, o que pode estar relacionado com o perfil dos usuários: pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, que podem demandar cuidado de longo curso para prevenir recaídas e minimizar a perda da autonomia e das habilidades para a vida diária3333. Thornicroft G, Tansella M. The Implications of Epidemiology for Service Planning in Schizophrenia. In: Murray RM, Jones PB, Susse, E, Os JV, Cannon M, editors. The Epidemiology of Schizophrenia. Cambridge: Cambridge University Press; 2003. p. 411-426..
Uma explicação alternativa para o pequeno número de altas seria a impossibilidade de os usuários dos CAPS serem assistidos em ambulatórios de saúde mental ou na atenção básica. Essa explicação apontaria também para a fragilidade na provisão destes componentes da rede psicossocial nos municípios onde os CAPSII estão situados na época da pesquisa. Alguns autores apontam ainda a possibilidade dos novos dispositivos de saúde mental também apresentarem formas de institucionalização, com a existência de usuários que acabam por se tornar demasiadamente vinculados aos serviços, em uma situação de limitação de interesses e de vínculos sociais3434. Pande MNR, Amarante PDC. Desafios para os Centros de Atenção Psicossocial como serviços substitutivos: a nova cronicidade em questão. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2067-2076..
O estudo identificou o baixo comprometimento dos CAPSII com a desinstitucionalização dos usuários de longa permanência. A frequência dos usuários de longa permanência, assim como o acompanhamento dos usuários ainda internados, era residual na maioria das unidades. Essa evidência conflita com o papel esperado para os CAPS no processo de desinstitucionalização e na garantia dos direitos dos usuários institucionalizados.
Uma explicação também possível para a baixa absorção de usuários egressos de longa permanência nos CAPSII pode estar relacionada com a pequena cobertura de serviços residenciais terapêuticos nas redes de atenção psicossocial dos municípios, o que impediria sua passagem do ambiente institucional para o comunitário. Essas pessoas, em sua maioria, romperam seus laços com a sociedade em face do longo tempo de internação e apresentam dificuldades psicossociais importantes para viver autonomamente.
Cabe ainda assim assinalar que, a despeito de décadas de desinstitucionalização, em muitos países com sistemas de saúde mental consolidados, continua a existir um significativo contingente de usuários de longa permanência institucional. Eles necessitam robustas interfaces entre hospitais e serviços comunitários para retornar a vida em sociedade3535. Holloway F, Sederer LI. Inpatient Treatment. In: Thornicroft G, Szmukler G, Mueser KT, editors. Oxford Textbook of Community Mental Health. Oxford: Oxford University Press; 2011..
Em 2011, o estado do Rio de Janeiro dispunha de 106 módulos de residências terapêuticas em funcionamento com 593 moradores (5,6 moradores por residência), caracterizando uma cobertura de 0,37 vagas por 10.000 habitantes88. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental em Dados. Brasília: MS; 2012. (Ano VII, número 10).. Este padrão de provisão era inacreditavelmente baixo quando comparado a países que oferecem dispositivos residenciais semelhantes, como a Holanda (5,3/10.000) ou a Itália (2,9/10.000)3636. World Health Organization (WHO). Regional Office for Europe. Policies and Practices for Mental Health in Europe. Copenhagen: WHO; 2008..
O encaminhamento dos usuários em crise ao hospital psiquiátrico ainda era conduta dominante nos CAPSII no Estado. Estudos internacionais consideram que não existe evidência de que um sistema de saúde mental integrado possa prescindir de leitos para atenção à crise, entretanto essa necessidade deve ser equacionada por vagas em hospitais gerais ou em serviços comunitários. A quantidade de leitos em hospital geral necessária é altamente condicionada pela quantidade de outros serviços existentes no território e depende das características sociais, econômicas e culturais de cada local3737. Thornicroft G, Tansella M. The balanced care model for global mental health. Psychological Medicine 2013; 43(4):849-863..
As unidades de CAPSII do Estado do Rio de Janeiro não dispunham de opções alternativas: encaminhavam predominantemente para o hospital psiquiátrico. Este padrão de encaminhamento evidenciava, na época da pesquisa, a frágil implantação no estado dos dispositivos de base comunitária com acolhimento noturno e de leitos localizados fora de hospitais especializados, como é preconizado pela Reforma Psiquiátrica para o manejo das crises mais graves.
Limites do estudo
Alguns cuidados devem ser tomados no exame dos resultados deste estudo: 1) o levantamento tem como fonte primária a informação obtida por entrevista ao dirigente máximo responsável pelo CAPSII. Os dados descritos não resultaram do exame direto dos prontuários pelos pesquisadores, o que poderia, hipoteticamente, ampliar a precisão da informação. Os números podem estar superestimados ou subestimados para informações críticas, o que pode levar a falsas conclusões, especialmente sobre a quantidade de usuários dos estabelecimentos; 2) a ausência na análise da informação sobre o volume de despesas realizadas pelos CAPSII não permite avaliar peremptoriamente as diferenças estruturais entre os CAPSII, o que fortaleceria a explicação sobre a alta discrepância observada na eficiência organizacional dos novos serviços; 3) a questão da força de trabalho de nível superior demanda pesquisa de maior aprofundamento que possibilite a descrição da composição quantitativa por profissão da saúde nos CAPSII, assim como a verificação dos níveis de satisfação e rotatividade nas atividades clínicas e gerenciais.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2015
Histórico
- Recebido
11 Dez 2014 - Revisado
26 Mar 2015 - Aceito
28 Mar 2015