Histórias de vida, homeopatia e educação permanente: construindo o cuidado compartilhado

Helvo Slomp Junior Laura Camargo Macruz Feuerwerker Emerson Elias Merhy Sobre os autores

Resumos

Inspirando-se no método homeopático de coleta de dados, e sob a perspectiva da educação permanente em saúde, esta pesquisa teve como objetivo analisar as possibilidades, para o cuidado em saúde, que a construção de histórias de vida podem oferecer, em encontros organizados para a elaboração coletiva de projetos terapêuticos compartilhados. São discutidas algumas mudanças que decorreram do emprego dessa estratégia, seja no reposicionamento mútuo de trabalhadores e usuários, seja em uma nova abordagem dos casos pelas equipes, mudanças essas que parecem ter fortalecido o estabelecimento de encontros produtores do cuidado. Conclui-se que, no âmbito deste estudo, as histórias de vida, ao intensificarem a operação coletiva de tecnologias leves em um convite ao projeto terapêutico compartilhado, propiciaram a ampliação da porosidade das equipes e o reconhecimento do usuário como interlocutor válido, favorecendo a reorientação dos demais planos tecnológicos do trabalho em saúde, operando assim como potentes dispositivos para a produção do cuidado em saúde.

Histórias de vida; Projeto terapêutico; Educação permanente em saúde; Homeopatia


Introdução

Este artigo apresenta resultados de um recorte de uma pesquisa, já parcialmente abordada em outro artigo11. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546., que teve como principal objetivo “compreender as possibilidades de contribuição extraclínica da homeopatia na construção coletiva de projetos terapêuticos cuidadores, em oficinas multiprofissionais de educação permanente em saúde, no contexto da atenção básica à saúde”. O referencial de base para toda a pesquisa foi o da educação permanente em saúde (EPS), que pode ser resumido a partir das revisões de Merhy et al.22. Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccim RB. Educación Permanente en Salud: una Estrategia para Intervenir en la Micropolítica del Trabajo en Salud. Salud Colectiva 2006; 2(2):147-160. e de Merhy e Feuerwerker33. Merhy EE, Feuerwerker LCM. Educação Permanente em Saúde: educação, saúde, gestão e produção do cuidado. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Informar e Educar em Saúde: análises e experiências. Salvador: Editora da UFBA; 2011. v. 1, p. 5-21.: com base nos incômodos vivenciados com a realidade experienciada – a vida vivida em ato – e contando com os saberes prévios de cada sujeito, pode-se mobilizar a potência transformadora da realidade em saúde. Nessa matriz, que dialoga com a produção do campo da micropolítica do trabalho e do cuidado em saúde, opera-se uma certa concepção de tecnologias em saúde, as duras (instrumentos, medicamentos, equipamentos, tudo que já vem pronto para o encontro cuidador), as leve-duras (conhecimentos técnicos estruturados, que ao serem aplicados sofrem a interferência desse mesmo encontro) e as leves, aquelas relacionais e que conferem “vida” propriamente dita ao trabalho em saúde, que acontece em ato e é produtor (ou não) do cuidado44. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002.,55. Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de Novas Tecnologias e Saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 29-56.. Neste trabalho se buscou explorar a potência das histórias de vida (HV) na dimensão das tecnologias leves, quando da produção do encontro para o cuidado.

Do referencial acima extraiu-se ainda um certo conceito de dispositivo, ferramenta analítica que pode ser construída por um mediador junto a um coletivo em análise11. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546.,66. Rodrigues HBC, Leitão MHS, Barros RDB, organizadores. Grupos e instituições em análise. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos; 2002.. Para Foucault, dispositivo pode ser entendido como uma intervenção racional e organizada nas relações de força em jogo em determinado cenário social, tendo, portanto, uma função estratégica quando se pretende operar tais forças, estabilizando-as ou desenvolvendo-as em determinada direção77. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979.. Empregou-se nesta pesquisa um dispositivo que denominamos projeto terapêutico compartilhado (PTC)11. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546., com o qual se buscou a produção de novas relações quando da articulação de uma “cadeia de cuidados em saúde”88. Feuerwerker LCM. A cadeia do cuidado em saúde. In: Marins JJ, organizador. Educação, Saúde e Gestão. Rio de Janeiro, São Paulo: ABEM, Hucitec; 2011, p. 99-113., produto de uma construção coletiva que pretende abranger a equipe multiprofissional da saúde, usuários, familiares envolvidos e gestores, além das redes de atenção à saúde como um todo. Tal concepção de projeto terapêutico retoma seu aporte original no campo da saúde mental, porém agrega as contribuições da produção coletiva denominada micropolítica do trabalho e do cuidado em saúde11. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546.,44. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002.,55. Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de Novas Tecnologias e Saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 29-56..

As histórias de vida (HV) são utilizadas em atividades de pesquisa de diversas áreas do conhecimento, e diversos também são os procedimentos escolhidos para coleta, processamento e análise das informações. No campo da saúde há, a título de exemplo, uma produção recente que aplica o método fenomenológico à proposta antropológica da experiência do adoecimento, e que atualmente promove suas primeiras investidas empíricas a partir desta formulação: é a “experiência em 1ª pessoa”99. Leal EM, Serpa Júnior OD. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em Saúde Mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2939-2948.,1010. Leal EM, Dahl C, Serpa Júnior OD. A experiência do adoecimento em estudo de narrativas de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico: um debate sobre a categoria a partir de achados de pesquisa. Ci. Huma. e Soc. em Rev. 2014; 36(1):55-67.. Escapa ao escopo deste texto desenvolver aqui essa proposta, cabendo no entanto delimitar que, apesar de aproximações no que se refere à relevância das HV para apreensão de certas dimensões da realidade, tendo em comum por exemplo a aposta na anterioridade da experiência vivida sobre a doença, a opção feita por esta pesquisa foi pela mediação narrativa a partir das equipes de saúde, o coletivo no qual se interferiu.

Construída sobre alguns princípios hipocráticos, sendo o principal deles o da similitude, e utilizando-se de medicamentos dinamizados, a homeopatia foi institucionalizada no Brasil como especialidade médica e posteriormente de outras profissões da saúde. Fundada no final do século XVIII, lança mão de várias técnicas e procedimentos, dentre os quais uma atenção específica a fatos da vida do paciente que possam ser úteis para a leitura homeopática de seu adoecimento. Em sua obra mais importante, o Organon da Arte de Curar, Samuel Hahnemann, o fundador da homeopatia, elaborou uma primeira sistematização de como se tomar um caso na clínica homeopática1111. Hahnemann S. Organon da Arte de Curar. Tradução da 6ª edição original de 1821 por Edimea Marturano Villela e Isao C. Soares. Ribeirão Preto: Museu de Homeopatia Abraão Brickmann; 1995., posicionando como de alta hierarquia sintomática o que denominava, seja qual for a enfermidade em questão, de “estado de ânimo ou mental”. Também propunha a valorização das influências “externas” ao atual processo de adoecimento, advindas de “circunstâncias especiais da vida” (modo de viver, ocupação, dieta, etc.), bem como uma certa suscetibilidade ou predisposição mórbidas individuais, que alguns autores posteriormente relacionaram também à constituição e ao temperamento individuais1212. Kossak-Romanach A. Homeopatia em 1000 Conceitos. São Paulo: Ed. Elcid; 2003.,1313. Eizayaga FX. Tratado de Medicina Homeopática. 3ª ed. Buenos Aires: Ediciones Marecel; 1992.. Além disso, há também na teoria homeopática a premissa de que somos todos passíveis de um adoecimento crônico progressivo, ou seja, acontecimentos significativos durante a vida podem deflagrar a atividade de uma enfermidade silenciosa ou em estado latente, que a partir desses momentos passa a disparar uma sucessão de mudanças/padecimentos que nem sempre guardam uma relação óbvia entre si1414. Hahnemann S. The Chronic diseases: their peculiar nature and their homeopathic cure. Translated from the 2nd. Edition, 1835, by Tafel LH; with annotations by Hughes R. Vol. 01. New Delhi: Jain Publishing Co.; 1920., se considerados os parâmetros nosológicos atuais.

Paschero1515. Paschero TP. Homeopatia. Buenos Aires: El Ateneo Pedro Garcia S. A.; 1984. enfatizou que todos os que procuram a homeopatia têm uma história a ser explorada, que em geral fornece informações de máxima hierarquia para a escolha do medicamento a ser prescrito. Eizayaga1313. Eizayaga FX. Tratado de Medicina Homeopática. 3ª ed. Buenos Aires: Ediciones Marecel; 1992. descreveu o mapeamento de informações relevantes da história biográfica e dos adoecimentos – no jargão técnico história biopatográfica ou biopatografia –, a partir de uma narrativa que deve ir além dos antecedentes patológicos ou médicos, recomendando especial atenção para o modo de resposta às circunstâncias existenciais. Assim, se não se pode falar em um modelo de HV próprio da homeopatia, mas é certo que há razões epistêmicas e clínicas para que os homeopatas lancem mão com frequência de tal recurso, mesmo que a priori, como um simples instrumento de coleta de dados.

Supõe-se, no entanto, que há efeitos de tal uso que possam fugir à compreensão dos próprios homeopatas: os usuários que os procuram trazem com eles seus sofrimentos, suas queixas, e, mais do que suas “doenças”, trazem também uma história repleta de desejos e valores, “uma vida que vem junto com cada um”88. Feuerwerker LCM. A cadeia do cuidado em saúde. In: Marins JJ, organizador. Educação, Saúde e Gestão. Rio de Janeiro, São Paulo: ABEM, Hucitec; 2011, p. 99-113., e talvez por conta disso abram-se novas possibilidades relacionais, algo anterior ao efeito do remédio homeopático em si. Não seria essa a razão pela qual tal modalidade de relação médico-paciente muitas vezes ganhe diferentes contornos, com relação à que se estabelece no âmbito da racionalidade médica científica oficial? Foi esse engendramento o que se procurou experimentar, agora no contexto desta pesquisa.

Neste estudo trabalhou-se com a hipótese de que a operação das HV inspiradas na concepção homeopática, em encontros cuidadores, pode resultar em uma intensiva operação de tecnologias leves, reorientando todo o aporte tecnológico ao cuidado (ou seja, colocando o manejo das tecnologias leve-duras e duras sob a presidência do encontro, da porosidade às necessidades dos usuários). Tratou-se nesta pesquisa de experienciar o mesmo recurso que na homeopatia é instrumento, agora com o objetivo de avaliar a possibilidades de tal aporte em outra circunstância que não a consulta médica homeopática: especificamente quando da construção compartilhada de projetos terapêuticos em equipes de saúde da família, em uma matriz de EPS.

Aspectos éticos e metodológicos

Tratou-se de um estudo exploratório, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ). Após a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa, a participação de cada sujeito se fez após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e os nomes próprios reais foram preservados em sigilo.

O pesquisador principal do estudo realizou e coordenou 34 oficinas semanais de EPS junto a 5 equipes de saúde da família, lotadas em 3 unidades básicas do município de Colombo-PR. Cada equipe era formada por 8 profissionais: 1 médica (o), 1 enfermeira (o), 1 técnica (o) de enfermagem e 5 agentes comunitários de saúde; em uma delas contou-se com a participação também de uma profissional da recepção da unidade; e em outra participou uma Técnica em Saúde Bucal. Na discussão a seguir os trabalhadores participantes do projeto foram designados como tb1, tb2, tb3 etc., obedecendo-se à ordem cronológica de manifestação ao longo das oficinas.

Foram consideradas as seguintes as fontes do material empírico: o áudio gravado dos encontros; anotações do pesquisador-facilitador em um diário de campo; uma narrativa voluntária de cada um sobre a vivência dessa experiência da pesquisa, solicitada ao final do período do trabalho de campo (ao todo 9 sujeitos atenderam a esta última solicitação).

Cada equipe foi convidada a selecionar casos com base na problematização das seguintes questões disparadoras: “o que é um ‘caso difícil’ para esta equipe?”; e a seguir “por que esse caso e não outro qualquer?”. Após a problematização dessas escolhas, a próxima etapa era a elaboração coletiva de um projeto terapêutico para cada caso selecionado. Todos os vinte e um casos trabalhados com os grupos na pesquisa apresentavam, em seus aspectos clínicos, indícios de um adoecimento relevante suscetível de leitura homeopática; porém, somente para alguns deles justificou-se a composição de uma HV, para os fins desta pesquisa.

Sempre que emergiam tensões na produção do cuidado (exemplos: sensação de impotência frente aos problemas do usuário, devido a dificuldades para compreender a problemática do caso; dificuldades de comunicação e/ou relações equipe-usuário, por vezes sensação de “incompatibilidade”; e um suposto desinteresse do usuário – e/ou seus familiares – com relação aos cuidados com a saúde), o pesquisador-facilitador trazia para o debate concepções do campo da homeopatia. Desses, o conceito que mais enriqueceu os debates foi a construção de HV, objeto deste relato. Partindo-se do pressuposto de que vários desconfortos com relação aos diferentes usuários decorrem também da invisibilidade de suas vidas, do processo de produção dos mesmos como protagonistas, a construção de sua HV era então proposta, agora não mais vinculada à sua inserção original em homeopatia, porém com outra finalidade: a de dispositivo para facilitar a elaboração do PTC.

Não se definiu previamente um modelo único para as HV, desde que as informações obtidas fossem significativas para o usuário e para a equipe: a depender do caso, concentrou-se sobre um longo período da vida em foco, ou tão somente sobre um conjunto restrito de fatos. O modo de se construir o relato também foi definido caso a caso. Entretanto, alguns procedimentos se tornaram úteis para todos os casos: o pesquisador propunha visitas ao usuário em questão, com pelo menos duas pessoas da equipe, uma delas com a incumbência de anotar as informações; estabelecia-se um prazo, em geral duas semanas, para discutir o primeiro produto no grupo. Considerando-se que já havia um certo vínculo da equipe com o usuário, anunciava-se, para o usuário, apenas um propósito diferente para aqueles encontros, que seria o de, por exemplo, “conhecer melhor a senhora, ouvi-la, saber um pouquinho de sua vida para melhor cuidar dos seus problemas de saúde” (como relatou tb1). Esses encontros com o usuário só ocorriam com sua anuência, e não eram gravados. Invariavelmente, a receptividade inicial foi boa, e outras visitas se sucediam para a complementação da HV.

Era solicitada especial atenção para a exploração de algumas pistas relevantes já conhecidas sobre a vida do usuário em questão, bem como de afetações que ele trazia para a equipe, e então pactuavam-se alguns balizadores de busca de novas informações. O mais importante deles, também orientado pela homeopatia, era uma maior atenção aos momentos de virada existencial: sempre que houvesse fatos, considerados relevantes pelo próprio sujeito, ou acontecimentos que tivessem causado mudanças, eles deveriam ser mais explorados.

A artista plástica Pilar Rocha, em uma atuação artístico-cultural1616. Rocha P. Perfis provisórios [performance artística]. Rio de Janeiro: III Fórum de Linguagem; 25 de maio de 2007., assentou faixas com gesso sobre partes dos corpos de pessoas vivas que, ao se secarem e após a saída dos modelos, erigiam imagens suspensas e fugidias que apenas sugeriam uma figura humana: a esse modo de expressão a artista denominou perfis provisórios. Inspiramo-nos nessa noção pois, para o processamento da HV, entendeu-se que havia um certo perfil provisório a priori por meio do qual a equipe definia o usuário antes das oficinas, e ao qual o processo da pesquisa, convidando à abertura para a multiplicidade do sujeito, agregará novas informações, novas percepções e novos entendimentos com relação às relações envolvidas nas vidas em questão. A questão disparadora para nortear essa recomposição ou flexibilização do perfil provisório do usuário era: “o que mudou a respeito de (nome do usuário) para vocês?”

Devido ao limitado espaço disponível para este artigo, foi selecionado, como exemplo, um único caso, com base em três critérios: possibilitou, durante o campo da pesquisa, o exercício da problematização tal como proposto, e também um avanço importante nas etapas de construção da HV, bem como no processamento, com o grupo, dos efeitos dela decorrentes. Deste caso narrou-se, na seção seguinte: os fatos e temas considerados pelas equipes como mais importantes; a motivação para a tomada do caso; as mudanças que se seguiram (ou não) durante e após sua elaboração, tanto na própria equipe, como na usuária envolvida; e as influências que tais mudanças podem ter tido sobre a condução coletiva do seguimento do caso.

Resultados

A atividade proposta não era rotineira para as equipes de saúde em geral, e vivenciá-la causou estranhamento, por exemplo, frente à necessidade de se recolher fatos e afetos vividos pelo usuário durante os anos passados, se não se pode mais mudá-los no momento atual. É significativa a enunciação de uma trabalhadora: “resolver o que aconteceu no passado é impossível, então por que entrar nisso? Não seria melhor fazer o que os familiares provavelmente estão fazendo: pôr uma pedra em cima?” (tb3). Essas questões foram problematizadas à custa de novas questões, que mobilizaram bastante as equipes no reposicionar-se frente aos casos: “e será que só há problemas insolúveis no passado, só dor? e se houver também alegrias esquecidas?” (intervenções do pesquisador).

A cada debate e problematização seguiam-se novas visitas, e os trabalhadores mostravam-se menos “armados” de uma missão estritamente biomédica e preventivista, mobilizados para ouvir os relatos que os usuários desejavam compartilhar, e que antes não cabiam no trabalho morto que preside o cotidiano de muitos de nossos serviços de saúde. A cada novo encontro as equipes ganhavam não apenas informações adicionais para a compreensão do caso em si, mesmo que relevantes, mas exibiam novas possibilidades de relações, de agenciamentos e de condução dos casos. Depois de alguns encontros, vários trabalhadores e usuários diziam já não serem “mais os mesmos”. O que estaria acontecendo agora? Com efeito, de parte dos trabalhadores “baixou-se a guarda”, como tb3 chegou a se referir à nova relação que se estabelecia, tanto de parte das equipes como da usuária. A seguir, o caso selecionado.

Relato de caso

Trata-se de D. Ana Maura, 62 anos, viúva há 16 anos (marido morrera de morte súbita), 3 filhos e 4 netos, o primeiro caso a ser elaborado no decorrer da pesquisa. O perfil provisório da usuária para a equipe era o de uma senhora de atitude lânguida, que apresentava “desmaios” inexplicáveis e frequentes sempre que confrontada com suas “responsabilidades” como usuária do serviço de saúde. Há controvérsias quanto a essa característica de D. Ana Maura, pois ela também é diabética e a equipe se questiona quanto ao papel de uma possível hipoglicemia nessas manifestações. De qualquer maneira, tais “desmaios” haviam se tornado o estigma de D. Ana para a equipe, que não os considerava “reais”: “quando você vai na casa dela é difícil o diálogo, ela não conversa quase, fala muito baixo, devagar (…) Ela fala baixinho. Quando a gente chega ela geralmente dá uma ‘desmaiadinha’. Ela está sempre morrendo. Não é?” (tb3) “A filha já falou: ‘eu já desisti da minha mãe’”. (tb2)

A motivação para a escolha deste caso havia surgido a partir da incompatibilidade da equipe com relação à usuária, e da sensação de impotência de alguns trabalhadores para cuidar dela: “a gente não vê muitas soluções, vive correndo atrás e não adianta, né? Muita decepção, pelos métodos tradicionais a gente não conseguiu avançar com ela, né?” (tb2). “Ela não quer fazer certo, ela quer ser a exceção da regra. Ela quer fazer do jeito dela” (tb3) “E é daquele jeito e ela vai morrer assim” (tb2). “E o estresse nosso, o desgaste, é querer que ela entre na regra, mas ela é exceção” (tb3).

A equipe antes comparava esta senhora com outros usuários mais cordatos e disciplinados, que aceitavam as medidas prescritas. Quando da afirmação da filha de que teria “desistido” da mãe, o sentimento foi compartilhado pela equipe e, então, foi consenso a escolha do caso.

Ao longo de sua construção, a marca principal da história de D. Ana Maura para a equipe foi o relato de suas perdas de familiares, que a equipe imaginava terem sido três, e que se constatou serem oito, ano após ano: mãe adotiva, marido, filho, genro (os dois últimos assassinados), irmão, irmã, cunhada e neto: “… a partir da primeira perda ela foi piorando, não tendo ânimo para viver. O que mais a família se queixa é do desânimo dela, da falta de vontade de melhorar. A doença só foi matando mais, se agregando mais nela. Hipertensão ela já tinha, diabetes, mas aí foi surgindo mais a depressão. Aí ela se trata com várias especialidades, cada especialidade faz um tratamento, claro, né? Ela toma em média 20 comprimidos por dia.” (tb2)

Duas foram as perdas que mais a teriam abalado e que foram tomadas inicialmente, pela equipe, na condição de momentos de virada: a do filho (“eu tive ele só prá mim por 8 anos, e perdi!”, teria dito a usuária, seg. tb2) e a da cunhada (“era sua única amiga verdadeira, até trocavam roupas”, seg. tb4). Para tb3 o filho perdido, que morreu assassinado com pouco mais de 30 anos de idade, há 7 anos, “sempre foi companheiro dela, e depois de adulto ele é quem cuidava dela”; esse filho deixou um neto que hoje tem 17 anos, e que está sempre junto da avó.

Revelou-se seu nascimento no interior de Minas Gerais, a mudança há 40 anos para o Paraná, seu casamento e fixação de residência na região metropolitana de Curitiba. D. Ana gosta de ir à igreja, e se diz preocupada com a recente gestação da filha, de 40 anos, que mora com ela. Essa informação contradiz o perfil provisório inicial: o de que a usuária só lamentava a perda de outro filho, mas que não se ocupava de quem efetivamente cuidava dela: essa filha em gestação de risco.

Outro tema considerado relevante foi o fato de ter sido adotada: tem onze “irmãos de criação”, mantendo contato com todos deles (disse ter 6 “irmãos de sangue”, praticamente desconhecidos). A mãe adotiva morrera de leucemia quando ela tinha 14 anos, e depois descobriu-se que passou apresentar os tais “desmaios” desde então.

Muitas mudanças se seguiram à elaboração desta história de vida. Em algumas discussões começaram a emergir diferentes referências a D. Ana, de quando, por exemplo que ela teria sido vista conversando “normalmente” com uma vizinha; e outro dia em que ela estava “mexendo nas panelas”, quando a equipe chegou (seu perfil provisório anterior era o de uma pessoa “improdutiva”). Os preconceitos que até então habitavam os discursos dos trabalhadores foram dando lugar a outras ponderações: D. Ana agora “era outra pessoa, até sorriu algumas vezes” (tb3).

D. Ana também passou a se colocar de modo diferente nas visitas; não frequentava a unidade de saúde e passou a fazê-lo. Teria comentado que sempre fora quieta, não costumava conversar, e que antes nunca teria tido oportunidade de falar sobre sua vida: “a vida sempre foi muito sofrida, quem vai querer ouvir?” (tb4). As conversas com a equipe foram adiante, perguntou-se a ela sobre o casamento, se teria sido “por amor”: “foi prá se livrar do meu irmão, que judiava da gente na roça”, teria respondido à tb3. Seguiu-se um debate sobre o tema do casamento como “válvula de escape” para muitas mulheres daquela região. Não parou por aí, e certo dia a equipe revelou ter feito uma pergunta ainda mais íntima: “perguntei: ‘todos já tiveram uma grande paixão: a senhora teve a sua?’; ela respondeu que sim, perguntei então se foi antes do atual marido, mais uma vez assentiu, e disse: ‘ele prometeu voltar um dia prá me procurar…’” (tb4).

Agora não parecia haver mais qualquer “aversão” à usuária, ou irritação com sua rebeldia ou mesmo com os antes “irritantes” desmaios. A própria enunciação da carga de sofrimento acumulada naquela vida (a certa altura alguém lembrou-se de D. Ana mostrando objetos pessoais que a faziam lembrar o passado e chorar…) passou a incorporar os desejos ainda presentes, a potência de vida que havia ali naquela existência (ainda havia muita dor pelas perdas, mas também grande esperança pela volta de uma pessoa amada de sua história pessoal, que há muito não encontrava). Seus amores (o filho, a nora e a pessoa amada de seu passado), e as correspondentes reminiscências, passaram a habitar o cotidiano da usuária e de suas conversas com a equipe.

Conforme a história de vida era construída, a equipe modificava mais e mais sua postura frente à usuária, e não mais se falou em “um caso perdido”: “Ela não foi criada pelos pais; não casou por amor, sempre trabalhou arduamente, mas não queria ter vivido aquela vida” (tb4). “Me senti um pouco culpada, pois não aguentava mais aquele baixo astral dela; acho que agora dá prá ir com menos rejeição na casa dela” (tb2). “Ela sorriu mais de uma vez, e ficou com uma cara tão bonitinha!” (tb4). “O semblante dela mudou” (tb3, complementando tb4). O relato de uma das últimas visitas durante a pesquisa é representativo dessa constatação: “Ela veio diferente, parecia que havia rejuvenescido uns 10 anos, está saindo mais de casa, ontem foi à igreja, voltou a costurar” (tb3). “Ela está desmaiando bem menos, mesmo quando acabou de acordar” (tb2). “A casa está mais agitada, agora” (tb4). “Anda preocupada com a gravidez de Aurelice, agora diz que tem medo de perdê-la” (tb2).

Problematizou-se a conotação de “reais” ou não, atribuída aos desmaios em discussões anteriores no grupo, e qual seria a importância disso neste momento. A abertura mútua entre usuária e equipe agora predominava, e até uma festa de aniversário na casa daquela contou com a presença de pessoas da equipe, fato inédito até então.

Aprofundou-se então a construção do projeto terapêutico, nas oficinas, problematizando-se vários temas, como por exemplo a triangulação mãe – filho predileto morto – filha que atualmente mora com ela. Neste caso concluiu-se que a relação com a filha, que está grávida e é acompanhada em um serviço de pré-natal de alto risco, na verdade era carregada de implicações afetivas bem mais intrincadas. Concluiu-se, também que para nós ela própria (essa filha) era também importante candidata a um projeto terapêutico.

As visitas a D. Ana, que se seguiram às conversas para a construção da HV, agora retomavam o tema de sua saúde, mas tentando-se sempre entender sua visão frente a isso, os valores que ela atribui à vida pela frente, e do lugar que ocupa o cuidado com sua saúde nesse contexto. Em uma dessas últimas visitas tivemos uma surpresa: “ela até me perguntou se eu tinha levado o aparelho de pressão, e me pediu para medir: deu 16/10” (tb3). A barreira estava vencida.

Discussão

As mudanças relatadas acima, tanto nos trabalhadores como na usuária, estariam relacionadas a uma intensificação dos encontros trabalhador-trabalhador e usuário-equipe, proporcionada pelas HV. Oportunidade para todos conversarem sobre suas próprias experiências, pela primeira vez em muito tempo, e naquele âmbito da saúde, que até então parecia a todos tão codificado de outro modo. A tomada de uma HV, ao prolongar os tempos físicos de convivência-coexistência entre equipe e usuários, parece ter possibilitado requalificar as relações por singularizá-las, bem como produzir outros modos de vínculo. O registro cognitivo passou a não dar conta, sozinho, do reconhecimento de todas aquelas intensidades que escapavam a uma simples “nova compreensão” de fatos passados. Mais do que isso, tal processo parece ter colocado em circulação novos – e também coletivos – afetos, e desse modo certos planos de produção de existência, tanto dos trabalhadores como da usuária, ganharam visibilidade.

Ao deixarem de fazer sentido, os perfis provisórios, anteriormente compartilhados por usuários e equipes, são então abandonados, revistos, reorientados. Tais perfis, delimitados por diagnósticos médicos e modos relacionais em geral bastante restritos, escondiam as vidas ali presentes, estruturando um agir profissional no sentido de intervenções protocolares, nem sempre eficientes em si e por vezes até mesmo frustrantes para ambas as partes. Os debates eram agora habitados por vidas que não pareciam assim tão distantes das de cada membro do grupo, incluindo-se a do pesquisador. Vidas que em si são múltiplas já não cabem mais em perfis provisórios, por vezes tomados como definitivos. Tal movimento não se restringiu ao modo como o usuário era visto pela equipe, mas também o contrário: diante de novas perspectivas no encontro, ampliou-se sua própria potência de vida.

Nesta pesquisa não se buscaram interpretações estritamente racionais, sociais ou psicodinâmicas, e nem mesmo o enfrentamento de possíveis “causas” de problemas atuais localizadas no passado, e sim a intensificação do encontro no sentido de fazer emergir outros sentidos da existência, abrindo passagem para novas possibilidades no engendramento do cuidado. Uma pesquisa sobre saúde mental realizada em Campinas-SP, também numa perspectiva micropolítica, possibilitou uma formulação acerca da construção de casos que vêm ao encontro da utilizada nesta pesquisa1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34.. Nos parágrafos seguintes traçamos a matriz conceitual relacionada às HV delineada em tal estudo, a fim de facilitar a compreensão dos sentidos que se abriram para o caso aqui relatado, e para além dele.

Naquela pesquisa as HV foram produzidas como um conjunto de aproximações das vidas em jogo sem nenhuma linearidade ou mesmo hierarquia, sendo cada uma delas ao mesmo tempo muitas e diferentes histórias, uma multiplicidade, enfim. Por isso, emprestamos daquele estudo um conceito que consideramos central para a finalidade deste aqui relatado: o de redes de conexões existenciais. Trata-se de uma imagem a ser extraída da HV, sempre que se voltam todos os sentidos para um campo singular de relações e encontros do usuário com pessoas, serviços ou mesmo eventos1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34.. Correspondem a uma cartografia do emaranhado de relações e conexões que o usuário constrói com pessoas, familiares, eventos, lugares e serviços, e que são fundantes do modo como ele se produz no mundo.

Outro aspecto considerado, este mais óbvio, é a história das enfermidades de cada sujeito, que habitualmente vincula-o a um diagnóstico, a partir de regras de enunciação próprias aos serviços de saúde. Um dos problemas importantes que as equipes de saúde enfrentam é frequentemente restringir a exploração da história do usuário exatamente ao campo de seus adoecimentos, limitando à dimensão biológica os nexos explicativos do processo atual de sofrimento. Modos de estar no mundo, os sentidos atribuídos a diferentes aspectos da existência etc. passam despercebidos ou sequer são cogitados como importantes no reconhecimento “da vida que vem junto” com o usuário, e que é parte da produção e das possibilidades de enfrentamento de determinados sofrimentos. Em tempo: a história das enfermidades é coerente com a biopatografia homeopática, ao menos em seu marco técnico, entretanto a leitura coletiva “da vida que vem junto” traz à luz outras dimensões da HV.

Nesse sentido, é também indispensável a história dos núcleos familiares, configurando, segundo o estudo citado acima, o modo como nas redes de conexões existenciais se constroem as trajetórias internamente ao núcleo familiar1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34.. Intimamente relacionado a esta dimensão de sua história, há também o território da vida comum, um espaço repleto de relatos relevantes a serem compartilhados, especialmente quando se consegue vivenciar junto à equipe cuidadora o interesse por todas as possibilidades de conexões que o viver com os outros, de diferentes e imprevisíveis tipos, permite1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34.. Por último, outro construto que compõe a perspectiva de HV aqui operada é o das trajetórias de vida, entendidas micropoliticamente como os múltiplos trajetos ou caminhos, cada qual com sua linha de significação, que o usuário dispara nas redes em que se insere e constitui, em certos momentos de sua existência1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34..

O caso anteriormente relatado vem em nosso auxílio para exemplificarmos um mapeamento dessas dimensões. Seu modo de se comunicar e de se colocar diante da comunidade e da equipe de saúde, a priori um perfil provisório que, inicialmente confinado à sua história das enfermidades, mesmo quando emergia no território da vida comum, em realidade traduzia, agora em suas trajetórias de vida, profundas mudanças em uma rede singular de conexões existenciais e no interior mesmo de seu núcleo familiar. Para outros casos, na pesquisa, também foi possível traçar um mapeamento existencial como este, durante o período do trabalho de campo, e temos razões para crer que ele pode ser possível para a maioria dos casos.

Vale dizer que as perdas que a usuária do caso relatado vivenciou são exemplos do que anteriormente denominamos momentos de virada, que, mediante análise, parecem terem se constituído em marcas que foram mapeadas ao longo das várias trajetórias de vida de cada usuário, das histórias dos núcleos familiares e das enfermidades, e que operaram como verdadeiras inflexões nas conexões existenciais que o mesmo estabeleceu a cada momento, a cada “virada” desfazendo-se algumas e conectando-se outras. Reafirmamos: não se trata de tomar os momentos de virada como marco causal, e sim reconhecer que podem ser úteis na análise de um mapeamento existencial.

Assim entendemos que se obteve, com a pesquisa, a emergência de mapas de múltiplos trajetos e histórias, a perpassarem as existências em análise, agenciando as equipes a ponto de também se colocarem em análise; e de outro lado os próprios usuários, que ao serem reconhecidos como interlocutores válidos, passaram a se movimentar de outro modo. Efetivamente mudou o modo como a equipe cuidadora se viu instada a conectar, ativar o que chamaríamos redes ou cadeias de cuidado em ação, e esse movimento incluiu tanto os modos como o usuário passou a se movimentar nos seus viveres, como a tensão constitutiva entre a micropolítica do agir em ato, ao se instalar outra relação equipe cuidadora-cuidado, e o trabalho morto instituído por normas e regras das organizações da saúde88. Feuerwerker LCM. A cadeia do cuidado em saúde. In: Marins JJ, organizador. Educação, Saúde e Gestão. Rio de Janeiro, São Paulo: ABEM, Hucitec; 2011, p. 99-113.,1717. Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34..

Esse nos parece ser um elemento fundamental da experiência aqui analisada: de corpo problemático/sujeito desprovido de saber/objeto de intervenção da equipe, e portanto interlocutor desqualificado, o usuário passa a sujeito portador de uma vida complexa, de saberes e desejos, com quem é necessário que a equipe dialogue a fim de se produzir, de modo compartilhado, novas possibilidades de manejo dos problemas e sofrimentos. Nesta pesquisa a estratégia de construção das HV parece ter proporcionado esse reposicionamento, ao criar um mecanismo potencializador do encontro que contribuiu para o enriquecimento de outros planos tecnológicos do cuidado, como a própria clínica em jogo em cada caso, operando assim como dispositivo para a produção do encontro cuidador.

Considerações finais

Novos estudos poderão esclarecer a relevância da inspiração na homeopatia para se obter os resultados aqui relatados. De qualquer modo, a partir dela experienciou-se, ao longo desta pesquisa, as HV quando da construção de projetos terapêuticos, em oficinas de EPS junto a equipes profissionais de saúde da família. Nessas condições, observaram-se mudanças, seja no reposicionamento de trabalhadores como de usuários, uns frente aos outros, seja na abordagem dos casos pelas equipes, que parecem ter influenciado no estabelecimento do encontro que produz cuidado. Conclui-se que, no âmbito deste estudo, as histórias de vida, ao intensificarem a operação coletiva de tecnologias leves em um encontro cuidador, proporcionado pelo convite ao projeto terapêutico compartilhado, atuaram na reorientação dos demais planos tecnológicos e operaram como potentes dispositivos para a produção do cuidado em saúde.

Agradecimentos

Os autores agradecem às suas famílias e aos colegas integrantes da linha de pesquisa micropolítica do cuidado e do trabalho em saúde, pelas contribuições nos debates realizados ao longo da elaboração desta pesquisa e da redação deste artigo.

Referências

  • 1
    Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546.
  • 2
    Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccim RB. Educación Permanente en Salud: una Estrategia para Intervenir en la Micropolítica del Trabajo en Salud. Salud Colectiva 2006; 2(2):147-160.
  • 3
    Merhy EE, Feuerwerker LCM. Educação Permanente em Saúde: educação, saúde, gestão e produção do cuidado. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Informar e Educar em Saúde: análises e experiências Salvador: Editora da UFBA; 2011. v. 1, p. 5-21.
  • 4
    Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002.
  • 5
    Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de Novas Tecnologias e Saúde São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 29-56.
  • 6
    Rodrigues HBC, Leitão MHS, Barros RDB, organizadores. Grupos e instituições em análise 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos; 2002.
  • 7
    Foucault M. Microfísica do Poder Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979.
  • 8
    Feuerwerker LCM. A cadeia do cuidado em saúde. In: Marins JJ, organizador. Educação, Saúde e Gestão. Rio de Janeiro, São Paulo: ABEM, Hucitec; 2011, p. 99-113.
  • 9
    Leal EM, Serpa Júnior OD. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em Saúde Mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2939-2948.
  • 10
    Leal EM, Dahl C, Serpa Júnior OD. A experiência do adoecimento em estudo de narrativas de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico: um debate sobre a categoria a partir de achados de pesquisa. Ci. Huma. e Soc. em Rev 2014; 36(1):55-67.
  • 11
    Hahnemann S. Organon da Arte de Curar Tradução da 6ª edição original de 1821 por Edimea Marturano Villela e Isao C. Soares. Ribeirão Preto: Museu de Homeopatia Abraão Brickmann; 1995.
  • 12
    Kossak-Romanach A. Homeopatia em 1000 Conceitos São Paulo: Ed. Elcid; 2003.
  • 13
    Eizayaga FX. Tratado de Medicina Homeopática. 3ª ed. Buenos Aires: Ediciones Marecel; 1992.
  • 14
    Hahnemann S. The Chronic diseases: their peculiar nature and their homeopathic cure Translated from the 2nd. Edition, 1835, by Tafel LH; with annotations by Hughes R. Vol. 01. New Delhi: Jain Publishing Co.; 1920.
  • 15
    Paschero TP. Homeopatia Buenos Aires: El Ateneo Pedro Garcia S. A.; 1984.
  • 16
    Rocha P. Perfis provisórios [performance artística]. Rio de Janeiro: III Fórum de Linguagem; 25 de maio de 2007.
  • 17
    Merhy EE, Feuerwerker LC, Silva, E. Methodological contributions towards the study of health care production: lessons from a research study on barriers and access in mental health. Salud Colectiva 2012; 8(1):25-34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2014
  • Revisado
    15 Out 2014
  • Aceito
    17 Out 2014
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br