Ofıcinas terapêuticas para a reabilitação psíquica de pacientes institucionalizados em decorrência da hanseníase

Soraia Cristina Coelho Leite Antônio Prates Caldeira Sobre os autores

Resumos

A hanseníase ainda constitui um importante problema de saúde pública e as ações de promoção da reabilitação psíquica dos pacientes ainda são insuficientes. Este estudo se propôs a avaliar o impacto de oficinas terapêuticas sobre a qualidade de vida e sintomas depressivos em pacientes institucionalizados em decorrência da hanseníase. Aplicou-se o Inventário de Depressão de Beck e o instrumento genérico de avaliação da qualidade de vida WHOQOL-bref, antes e após o desenvolvimento de oficinas terapêuticas ao longo de seis meses. Participaram do estudo 62 pacientes, quase todos idosos, com baixa escolaridade. Observou-se uma redução significativa dos escores de sintomas depressivos após a intervenção proposta (p < 0,001) e impacto positivo para os domínios psicológico (p = 0,001), físico (p = 0,03) e de meio-ambiente (p < 0,001), mas não para as relações sociais (p = 0,124). Oficinas terapêuticas parecem ter o potencial de auxiliar na reabilitação psíquica de pacientes institucionalizados em decorrência da hanseníase.

Hanseníase; Sintomas depressivos; Qualidade de vida


Introdução

A hanseníase é uma doença conhecida desde os tempos bíblicos, com grande impacto nos laços sociais, afetivos e familiares e elevado poder incapacitante, capaz de afetar “a dimensão funcional do corpo”11. Palmeira IP, Ferreira MA. “O corpo que eu fui e o corpo que eu sou”: concepções de mulheres com alterações causadas pela hanseníase. Texto & Contexto enferm 2012; 21(2):379-386.. Apesar de curável, ainda representa relevante problema de saúde pública22. World Health Organization (WHO). Leprosy, global situation. Wkly Epid Rec 2008; 33:293-300., sendo o Brasil o segundo país mais endêmico do mundo, com estatísticas superadas apenas pela Índia33. Pan American Health Organization (PAHO). Situation Report: Leprosy in the Americas. Washington: American Health Organization; 2007. [acessado 2010 out 10]. Disponível em: http://www.paho.org/English/AD/DPC/CD/lep-sitreg-2007.pdf/.
http://www.paho.org/English/AD/DPC/CD/le...
. O país ainda não conseguiu alcançar a meta proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de redução do coeficiente de prevalência para um valor inferior a 1/10.000 habitantes, e o enfrentamento dessa enfermidade ainda representa uma preocupação para os gestores de saúde.

A hanseníase integra o grupo das doenças tropicais negligenciadas que, segundo a OMS44. World Health Organization (WHO). Working to overcome the global impact of neglected tropical diseases. Geneva: OMS; 2011., relacionam-se à pobreza e precárias condições de vida, acometendo principalmente faixas populacionais pobres, marginalizadas e menos favorecidas economicamente. A negligência associada a esta doença, transcende os aspectos médico-assistenciais, dada a intensidade em que a mesma se associa ao preconceito e estigma presentes desde a antiguidade no imaginário coletivo55. Cunha VS. Isolados “como nós” ou isolados “entre nós”?: a polêmica na Academia Nacional de Medicina sobre o isolamento compulsório dos doentes de lepra. Hist cienc saúde-Manguinhos 2010; 17(4):939-954.. Até o limiar do século XX, tal enfermidade foi regida pela religião, mas nessa ocasião começou a ser objeto também de preocupação da Medicina Social, que ganhava espaço naquele momento, inclusive, no cenário nacional. Como política de profilaxia da época, assumia-se o controle sobre o corpo do indivíduo acometido pela doença e os pacientes eram isolados em leprosários, obrigados a viver em regime de confinamento, com o objetivo de afastar o perigo da moléstia do mundo dos sãos55. Cunha VS. Isolados “como nós” ou isolados “entre nós”?: a polêmica na Academia Nacional de Medicina sobre o isolamento compulsório dos doentes de lepra. Hist cienc saúde-Manguinhos 2010; 17(4):939-954.,66. Almeida SSL, Savassi LCM, Schall VT, Modena CM. Maternidade e hanseníase: as vivências de separação devido ao isolamento compulsório. Estud psicol 2012; 17(2):275-282.. Tal política de exclusão parece ter gerado marcas significativas e sequelas, não somente no corpo, mas também no psiquismo dos pacientes asilados77. Castro SMS, Watanabe HAW. Isolamento compulsório de portadores de hanseníase: memória de idosos. Hist cienc saúde-Manguinhos 2009; 16(2):449-487.,88. Cavaliere IAC. Hanseniano - ser ou não ser interno: eis a questão. Cad Saúde Colet 2009; 17(1):203-219..

A estratégia de isolamento em relação à hanseníase teve sua extinção oficial, por poder de lei, em 1962, mas muitos pacientes acometidos pela doença permaneciam na internação e isolamento, que só foi extinta, de fato, em 1986, com a recomendação para a transformação de alguns leprosários em hospitais gerais99. Sangi KCC, Miranda LF, Spindola TL, Machado AM. Hanseníase e Estado Reacional: história de vida de pessoas acometidas. Rev enferm UERJ 2009; 17(2):209-214..

Mesmo após o término da política de confinamento e sendo abertas as portas dos antigos asilos-colônias, muitos pacientes permaneceram morando nos mesmos locais. Isso aconteceu porque esses pacientes, em sua maioria, já haviam perdido seus laços familiares e sociais, não vislumbrando perspectiva alguma de vida no ambiente extra hospitalar ou apresentando dificuldades no processo de reinserção social99. Sangi KCC, Miranda LF, Spindola TL, Machado AM. Hanseníase e Estado Reacional: história de vida de pessoas acometidas. Rev enferm UERJ 2009; 17(2):209-214.. Dos 101 hospitais colônias, construídos no decorrer da prática isolacionista, 33 foram conservados enquanto abrigo daquelas pessoas que estavam sem vínculos familiares, sem emprego ou local para ir, incluindo-se entre esses a Casa de Saúde Santa Fé (CSSFé), em Três Corações, Minas Gerais1010. Meyer TN. Casa de Saúde Santa Fé: breve história de uma ex-colônia de hanseníase. Rev Méd Minas Gerais 2010; 20(4):612-621.. Em ambientes similares, os pacientes são mantidos sob os cuidados do Estado, sendo acompanhados por uma equipe multidisciplinar.

Segundo a Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG), responsável pela gestão da CSSFé, a instituição conta com 93 leitos asilares cadastrados, estando 70 deles ocupados. Os pacientes que ali permanecem recebem cuidados médicos e de enfermagem, atendimento psicológico, nutricional, odontológico, fisioterápico e acompanhamento pela terapia ocupacional. Apesar dos cuidados multiprofissionais é presumível que esses pacientes apresentem uma qualidade de vida limitada e quadros depressivos. Na área da saúde mental, a utilização de oficinas terapêuticas tem sido descrita como ferramenta útil para a ressocialização e inserção individual em grupos, propondo atividades que estimulam vivências e pensares coletivos, com ênfase no paradigma psicossocial que é o respeito à individualidade, alteridade e subjetividade1111. Azevedo DM, Miranda FAN. Ofıcinas terapêuticas como instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15(2):339-345..

No presente estudo, buscou-se avaliar os escores de escalas de depressão e de qualidade de vida em pacientes asilados na CSSFé antes e após a implantação de atividades de oficinas terapêuticas especialmente desenvolvidas para esse público, com o objetivo de avaliar o impacto de tais medidas.

Métodos

Trata-se de um estudo de intervenção aberto, com abordagem quantitativa. Foram incluídos os pacientes asilados na CSSFé devido à hanseníase e que ainda permanecem institucionalizados no referido local, e que se prontificaram a participar do estudo. Foram excluídos os pacientes que não consentiram com a sua participação e aqueles que apresentavam comprometimento neurológico significativo, com impedimento à participação nas oficinas e à resposta dos questionários utilizados. A coleta dos dados foi realizada antes do início das oficinas (março de 2011) e os mesmos instrumentos foram aplicados novamente aos mesmos pacientes após seis meses de desenvolvimento das atividades (outubro de 2011).

Para avaliação da qualidade de vida, foi utilizado o WHOQOL-bref (ou WHOQOL abreviado), instrumento proposto pela OMS, já validado no país. Trata-se de um questionário com 26 perguntas que abordam os domínios físico, psicológico, de relações sociais e meio ambiente1212. The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med 1995; 41(10):1403-1409.. Tanto os domínios do instrumento como a qualidade de vida geral são mensurados em direção positiva, ou seja, escores mais altos denotam melhor qualidade de vida.

Para avaliação de sintomatologia depressiva, foi utilizado o Inventário de Depressão de Beck (IDB)1313. Beck AT, Steer RA, Garbin MG. Psychometric Properties of the Beck Depression Inventory: Twenty-Five Years of Evaluation. Clinical Psychology Review 1988; 8(1):77-100.,1414. Cunha J. Manual em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.. Trata-se de um instrumento também validado, composto de 21 itens que abordam componentes cognitivos, afetivos, comportamentais e somáticos da depressão. Os escores assumidos no presente estudo presumem: ausência de sintomas depressivos (pontuação de 0 a 9), sintomatologia leve (de 10 a 16), moderada (de 17 a 29) e severa (de 30 a 63).

Os questionários foram aplicados por profissional com formação em psicologia e experiência no acompanhamento de pacientes crônicos institucionalizados (SCCL), que também mediou as oficinas. Foram desenvolvidas, prospectivamente, três tipos de oficinas terapêuticas (artes, música e recreação/jogos). As atividades aconteciam semanalmente com duração aproximada de duas horas cada, nas enfermarias masculina e feminina e também na comunidade (oficinas itinerantes para os pacientes que não saiam de casa). A proposta, durante todo o período das atividades, foi oportunizar coletivamente um espaço aberto de expressão e socialização, possibilitando a ampliação do campo vivencial. Nessa perspectiva, buscou-se o desenvolvimento da autoestima, enfrentamento do estigma e da autoimagem, muitas vezes deteriorada, bem como a ressignificação da história de vida. Para alcance desses objetivos, os participantes das oficinas eram estimulados a falarem de suas dificuldades com a doença e estratégias de enfrentamento utilizadas, compartilhando experiências e buscando auxiliar nas dificuldades apresentadas pelos outros membros do grupo. O principal desafio do trabalho foi o de promover o envolvimento real dos sujeitos participantes, uma vez que a proposta consistia na participação efetiva do paciente, estimulada pela oportunidade de vivência coletiva num momento prazeroso, de interação com os outros moradores e alguns funcionários da CSSFé.

Para a análise dos dados, na comparação das medianas foi usado o teste de Wilcoxom para amostras pareadas (antes versus depois). Para comparação das proporções foi usado o qui-quadrado. Para o cálculo dos escores, o algoritmo do cálculo do WHOQOL-bref foi adaptado para o SPSS.

Todos os aspectos éticos foram respeitados na condução da intervenção. Houve aprovação prévia dos dirigentes da instituição para condução do estudo. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e o projeto foi aprovado pelos comitês de ética em pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros e da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – FHEMIG.

Resultados

Participaram do estudo 62 pacientes, sendo que as principais características do grupo são apresentadas na Tabela 1. O grupo era formado por ligeira maioria de pessoas do gênero masculino (51,6%), com idade predominante entre 66 e 75 anos (32,3%). Quanto ao estado civil, 45,2% eram viúvos e, com relação à situação funcional, 91,9% eram aposentados ou pensionistas. No tocante ao nível de escolaridade, 45,3% (28) dos pacientes eram analfabetos e 43,5% (27) cursaram apenas os primeiros anos do ensino fundamental. Quanto à forma da doença, os registros dos pacientes destacaram o predomínio da virchowiana (67,7%). Quanto ao grau de incapacidade, registrou-se predomínio do grau II (grau moderado de limitação da atividade segundo a escala de participação salsa)1515. SALSA Collaborative Study Group, Ebenso J, Fuzikawa P, Melchior H, Wexler R, Piefer A, Min CS, Rajkumar P, Anderson A, Benbow C, Lehman L, Nicholls P, Saunderson P, Velema JP. The development of a short questionnaire for screening of activity limitation and safety awareness (SALSA) in clients affected by leprosy or diabetes. Disabil Rehabil 2007; 29(9):689-700., correspondendo a 32,3%.

Tabela 1
Características de pacientes institucionalizados em decorrência da hanseníase na Casa de Saúde Santa Fé (MG), 2011.

A avaliação de manifestações depressivas antes e após as intervenções é apresentada na Tabela 2. Percebe-se que, no período pré-intervenção, 21% dos pacientes não apresentavam manifestações depressivas e que após intervenção esse percentual subiu para 53,2%. De forma similar, os pacientes com escores indicativos de sintomas moderados, diminuíram de 54,8% (pré-intervenção) para 17,7% (pós-intervenção). Os escores do questionário de qualidade de vida antes e após as oficinas terapêuticas são apresentados na Tabela 3. As alterações foram significativas para os domínios Físico, Psicológico e de Meio Ambiente, não se registrando diferença significativa apenas para o domínio de relações sociais.

Tabela 2
Escores do Inventário de Depressão de Beck, nos períodos pré e pós ofıcinas terapêuticas com pessoas institucionalizadas na Casa de Saúde Santa Fé (MG), 2011.
Tabela 3
Escores de avaliação da qualidade de vidas (WHOQOL-bref) antes e após ofıcinas terapêuticas com pessoas institucionalizadas na Casa de Saúde Santa Fé, Minas Gerias, 2011.

Discussão

O presente estudo registrou um impacto positivo nos escores das escalas de depressão e de avaliação da qualidade de vida após a realização de oficinas terapêuticas para pacientes institucionalizados em função da hanseníase ainda abrigados na CSSFé. Trata-se de resultado relevante, pois a literatura registra vários estudos que destacam a interferência da hanseníase na qualidade de vida das pessoas acometidas por essa enfermidade1616. Lustosa AA, Nogueira LT, Pedrosa JIS, Teles JBM, Campelo V. The impact of leprosy on health-related quality of life. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(5):621-626.1919. Bottene IMC, Reis VMS. Quality of life of patients with paucibacillary leprosy. An Bras Dermatol 2012; 87(3):408-411..

Em estudo realizado no Piauí, os autores registraram que o impacto das formas graves e incapacitantes de hanseníase está diretamente relacionado à baixa qualidade de vida, mesmo para os pacientes curados. No referido estudo, o diagnóstico tardio, as formas multibacilares, as reações da doença, o grau II de incapacidade e o preconceito observado pelos pacientes foram as variáveis mais associadas à baixa qualidade de vida1616. Lustosa AA, Nogueira LT, Pedrosa JIS, Teles JBM, Campelo V. The impact of leprosy on health-related quality of life. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(5):621-626..

Avaliando pacientes em tratamento de surtos reacionais de hanseníase, outro estudo registrou significativo impacto na qualidade de vida dos pacientes e os autores concluíram que tal doença causa sofrimento que ultrapassa a dor e o mal-estar estritamente vinculados ao prejuízo físico, com grande impacto social e psicológico1717. Costa MD, Terra FS, Costa RD, Lyon S, Costa AMDD, Antunes CMF. Assessment of quality of life of patients with leprosy reactional states treated in a dermatology reference center. An Bras Dermatol 2012; 87(1):26-35.. De forma similar ao que se registrou no presente estudo, os índices mais baixos foram observados para os domínios físico, psicológico e das relações sociais. Também o estudo de Martins et al.1818. Martins BDL, Torres FN, Oliveira MLWDR. Impacto na qualidade de vida em pacientes com hanseníase: correlação do Dermatology Life Quality Index com diversas variáveis relacionadas à doença. An Bras Dermatol 2008; 83(1):39-43. concluiu, avaliando a qualidade de vida em pacientes com hanseníase, que a doença causa sofrimento que se estende além das sequelas físicas e que compromete também as relações sociais e o estado psicológico dos pacientes, justificando uma abordagem multidisciplinar aos mesmos.

Avaliando especificamente um grupo de pacientes com hanseníase paucibacilar, Bottenne e Reis identificaram pouco comprometimento da qualidade de vida, levando os autores à conclusão de que, quanto mais precoce é o diagnóstico e o tratamento, menor é o acometimento da qualidade de vida de tais pacientes1919. Bottene IMC, Reis VMS. Quality of life of patients with paucibacillary leprosy. An Bras Dermatol 2012; 87(3):408-411.. No presente estudo, o contexto de vida dos pacientes avaliados já pressupõe um significativo impacto na qualidade de vida. Alguns estudos destacam que os pacientes que vivem institucionalizados em decorrência da hanseníase e suas complicações sofrem bastante em função do estigma e do preconceito, intimamente relacionados à doença2020. Bittencourt LP, Carmo AC, Leão AMM, Clos AC. Estigma: percepções sociais reveladas por pessoas acometidas por hanseníase. Rev enferm UERJ 2010; 18(2):185-190.,2121. Cavaliere IAL, Costa SG. Isolamento social, sociabilidades e redes sociais de cuidados. Physis 2011; 21(2):491-516.. Em algumas situações, as histórias de vida desses pacientes permitem o aprofundamento nas sequelas psicológicas da doença e revelam uma verdadeira e inaceitável exclusão social2222. Martins PV, Caponi S. Hanseníase, exclusão e preconceito: histórias de vida de mulheres em Santa Catarina. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):1047-1054.. Assim, o presente estudo não buscou apenas apresentar uma situação já destacada pela literatura, mas apontar a necessidade de intervenções objetivas aos pacientes que convivem com as sequelas de uma doença altamente estigmatizante. Infelizmente, a literatura não registra estudos que apresentem intervenções voltadas a melhorar as condições de saúde mental de tais pacientes.

As oficinas terapêuticas conduzidas neste estudo, como proposta de reabilitação psíquica dos pacientes que vivem com o estigma da hanseníase, mostraram um bom potencial, contribuindo significativamente para a melhora da qualidade de vida e dos aspectos que compõem seus domínios físico (mobilidade, energia, capacidade de trabalho), psicológico (autoestima, sentimentos positivos) e relacionados ao meio-ambiente (recursos financeiros, ambiente no lar, cuidados de saúde e sociais).

As oficinas não se mostraram efetivas para melhorar o domínio “relações sociais”, isto é, não foram capazes de promover a ressocialização dos hansenianos institucionalizados ou a percepção de inclusão social. Esse dado é relevante e talvez esteja ligado às condições de institucionalização crônica. Esse aspecto salienta a necessidade de outras estratégias de intervenção, idealmente extensivas à sociedade em geral, para promover a inclusão desses sujeitos.

Oficinas terapêuticas representam uma ferramenta reconhecida e recomendada pelo Ministério da Saúde, que as caracterizam como atividades de socialização e inserção social2323. Monteiro RL, Loyola CMD. Qualidade de oficinas terapêuticas segundo pacientes. Texto & Contexto enferm 2009; 18(3):436-442.,2424. Lima AF. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade. Psicol soc (Online) 2008; 20(1):91-101.. Até então, essas oficinas têm sido utilizadas enquanto um dispositivo atual da Política Nacional de Saúde Mental, intervindo no campo da cidadania, numa proposta de reabilitação psicossocial visando à construção/valorização da subjetividade do indivíduo na sua relação com o ambiente em que vive. Elas têm se mostrado um meio eficaz no acompanhamento de pacientes psiquiátricos, que também convivem com a estigmatização e têm, geralmente, uma qualidade de vida prejudicada em função de seu adoecimento psíquico2323. Monteiro RL, Loyola CMD. Qualidade de oficinas terapêuticas segundo pacientes. Texto & Contexto enferm 2009; 18(3):436-442.,2424. Lima AF. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade. Psicol soc (Online) 2008; 20(1):91-101.. São formas de tratamento que favorecem a expressividade, a socialização, a criatividade, o desenvolvimento intelectual, o restabelecimento da cidadania, resgate da identidade e outros aspectos que estão diretamente articulados à vivência e autonomia dos sujeitos. Azevedo e Miranda1111. Azevedo DM, Miranda FAN. Ofıcinas terapêuticas como instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15(2):339-345. alertam para o fato de que as oficinas terapêuticas representam um dispositivo importante de ressocialização e inserção individual em grupos1111. Azevedo DM, Miranda FAN. Ofıcinas terapêuticas como instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15(2):339-345..

No movimento da reforma psiquiátrica no Brasil, as oficinas terapêuticas surgiram como uma das principais formas de tratamento oferecido nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e se consolidam como importante dispositivo clínico2525. Zanotti SV, Oliveira AAS, Bastos JA, Silva WVN. Jornal do CAPS: Construção de histórias em Oficinas Terapêuticas. Psico 2010; 41(2):278-284.. No presente estudo utilizou-se do potencial caráter transformador das oficinas terapêuticas como uma via de reabilitação psicossocial.

No contexto do paciente asilado com sequela de hanseníase é possível supor que os estados depressivos estejam presentes. Embora alguns estudos internacionais tenham abordado essa questão2626. Su TW, Wu LL, Lin CP. The prevalence of dementia and depression in Taiwanese institutionalized leprosy patients, and the effectiveness evaluation of reminiscence therapy-a longitudinal, single-blind, randomized control study. Int J Geriatr Psychiatry 2012; 27(2):187-196.2828. Nishida M, Nakamura Y, Aosaki N. Prevalence and characteristics of depression in a Japanese leprosarium from the viewpoints of social stigmas and ageing. A preliminary report. Lepr Rev 2006; 77(3):203-209., não foram identificados estudos na literatura nacional sobre o tema. É consenso entre os autores internacionais que o estigma e a auto-segregação dos pacientes asilados estão intimamente ligados a sintomas e manifestações depressivas.

No presente estudo, percebeu-se a presença de sintomas depressivos tanto antes, quanto após a intervenção, ressaltando que no período pós-intervenção, houve uma diminuição significativa dos sintomas depressivos. No caso dos pacientes em questão, o processo de asilamento pode ser um contributo no aumento dos sintomas depressivos, bem como para o declínio da qualidade de vida, reforçando a necessidade de um processo de reabilitação psíquica. Destacase que no IDB as categorias de sintomas e atitudes incluem humor, pessimismo, insatisfação, sentimentos de culpa, autoestima, choro, irritabilidade, afastamento social, mudança na imagem corporal, insônia, anorexia, perda de peso e preocupações somáticas entre outros1313. Beck AT, Steer RA, Garbin MG. Psychometric Properties of the Beck Depression Inventory: Twenty-Five Years of Evaluation. Clinical Psychology Review 1988; 8(1):77-100.,1414. Cunha J. Manual em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.. Muitas dessas categorias são empiricamente associadas às doenças crônicas, incluindo-se aí a hanseníase, com todo seu aspecto estigmatizante2828. Nishida M, Nakamura Y, Aosaki N. Prevalence and characteristics of depression in a Japanese leprosarium from the viewpoints of social stigmas and ageing. A preliminary report. Lepr Rev 2006; 77(3):203-209.,2929. Boing AF, Melo GR, Boing AC, Moretti-Pires RO, Peres KG, Peres MA. Associação entre depressão e doenças crônicas: um estudo populacional. Rev Saude Publica 2012; 46(4):617-623..

As oficinas terapêuticas desenvolvidas não foram capazes de promover diferenças significativas no subgrupo dos deprimidos graves. É razoável supor que as depressões graves não sejam responsivas a intervenções psicoterapêuticas, e em situações similares, o uso de antidepressivos é imperioso. O cuidado com o encaminhamento dos pacientes que foram identificados com sintomas depressivos graves foi assumido pelos pesquisadores, compromisso ético necessário em pesquisas dessa natureza.

As formas e métodos de abordagem dos pacientes hospitalizados ou doentes crônicos precisam ser criativos e flexíveis e não cristalizados e rígidos, possibilitando assim que um número cada vez maior de pacientes possa se beneficiar desse atendimento. O processo de criação é importante, uma vez que auxilia os sujeitos no restabelecimento de suas relações com o mundo, tornando-se protagonistas do seu próprio discurso, nas criações cotidianas3030. Silva TJF, Alencar MLOA. Invenção e endereçamento na oficina terapêutica em um centro de atenção diária. Rev latinoam psicopatol fundam 2009; 12(3):524-538.. Nesse sentido, as oficinas terapêuticas são um importante referencial na política de Saúde Mental, e podem proporcionar uma valorização da dimensão subjetiva do paciente, inclusive funcionando como um estimulador na busca do protagonismo e cidadania3131. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. Brasília: MS; 2010.,3232. Nunes JM, Oliveira EM, Vieira NFC. Hanseníase: conhecimentos e mudanças na vida das pessoas acometidas. Cien Saude Colet 2011; 16(Supl. 1):1311-1318.. Para os pacientes em sofrimento crônico decorrente da hanseníase, as oficinas podem funcionar como um dos dispositivos na luta pela diminuição dos processos de perda. Podem contribuir para a melhoria da integridade psicossocial, promovendo uma alteração na lógica da autoestigmatização, levando ao melhor enfrentamento do estigma e preconceito, e, em consequência, a um processo de ressocialização e ressignificação das histórias individuais e coletivas. O conceito de reabilitação psicossocial refere-se a uma busca de maior autonomia do sujeito, assim como do restabelecimento de suas funções na comunidade onde está inserido1111. Azevedo DM, Miranda FAN. Ofıcinas terapêuticas como instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15(2):339-345..

Naturalmente, os resultados do presente estudo devem ser interpretados à luz de algumas limitações. O estudo foi restrito a uma única unidade de saúde e com um número relativamente restrito de participantes. Considerando que as oficinas terapêuticas foram conduzidas pela mesma pessoa que aplicou os instrumentos, a segunda avaliação (pós-intervenção) pode ter sido respondida sob o viés da gratidão. Em outras palavras, os participantes tenderiam a apresentar respostas que acreditam agradar mais ao entrevistador, como forma de gratidão pelo trabalho realizado. Outro aspecto a ser destacado é a falta de um grupo controle, o que favorece a intervenção. Também é relevante destacar que parte da melhora observada nos sintomas depressivos pode ter sido secundária a outras intervenções concomitantes, por exemplo, o uso de antidepressivos, aspecto que não foi investigado no estudo. Entretanto, diante da carência de estudos de intervenção voltados a essa população, os resultados não devem ser desprezados. Sugere-se que a implantação de oficinas terapêuticas na CSSFé seja assumida como um dispositivo suplementar do universo das possibilidades de cuidados. Para além das limitações físicas e psíquicas, as oficinas trazem a possibilidade de ressignificação da história e construção de uma visão atual mais positiva para cada um dos pacientes ali residentes.

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2014
  • Revisado
    03 Out 2014
  • Aceito
    05 Out 2014
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