Celebrando Ciência & Saúde Coletiva, lembrando da trajetória da Physis

Kenneth Rochel de Camargo JúniorSobre o autor

Resumo

Descrevemos a história e as características da revista Physis, apresentando uma visão geral do que foi publicado nos 24 anos desde seu número inicial. Apresentamos alguns dados referentes a citações e uma discussão crítica dos mesmos. Encerramos com uma discussão dos movimentos observados recentemente nas políticas de agências governamentais com relação à política científica, manifestando nossa preocupação e defendendo uma política que privilegie a diversidade e a ampliação dos veículos de divulgação científica.

Palavras-chave
Physis

Introdução

Foi com muita alegria que recebemos o convite para fazer parte das merecidas comemorações do aniversário de Ciência & Saúde Coletiva, um dos periódicos mais importantes da saúde coletiva brasileira, entre outras razões por ser publicação de nossa Associação maior, a Abrasco.

O coletivo de revistas da área, do qual Physis se orgulha de fazer parte, tem sido um importante instrumento na discussão e difusão da produção da saúde coletiva, com uma dimensão relevante não apenas no plano da ciência, mas também da intervenção, dada a característica dual do campo.

Características, política editorial e histórico

Physis é publicada pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ e pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Saúde Coletiva (CEPESC), entidade sem fins lucrativos vinculada ao IMS que tem como objetivo promover e difundir a produção de conhecimento científico na área de Saúde Coletiva, bem como incentivar e facilitar a cooperação entre os pesquisadores das diferentes instituições que integram esta área. Apesar de publicada por uma instituição específica, a revista não é um órgão departamental ou institucional, publicando autores de todo país e do mundo.

Nossa história se inicia um pouco antes do surgimento de Ciência & Saúde Coletiva, em 1991. Esta data é relevante também por outras razões; naquele ano o Instituto de Medicina Social completava vinte anos de existência, e seu programa de pós-graduação abria a primeira turma de doutorado. Após a experiência de edição de uma publicação com pouca circulação – os “Cadernos do IMS,” a instituição assumiu o desafio de criar um novo periódico que refletisse mais proximamente o universo temático das suas pesquisas e de seus colaboradores. Com algumas características singulares, entre as quais a de ser o programa de pós-graduação com a maior participação de docentes/pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas em Saúde no país, o IMS via a oportunidade de agregar novas temáticas ao que já se publicava na então relativamente recente Saúde Coletiva. Tendo um importante intelectual da área, o professor Joel Birman, como editor, Physis inicia sua trajetória, como revista semestral.

Joel Birman foi o editor da revista até 1999. No ano seguinte, o professor André Rangel Rios assume a editoria, após ter passado um período como editor adjunto. Durante seu período como editor, buscou ampliar ainda mais os horizontes da revista, convidando pesquisadores para coordenar a publicação de números com temas específicos e introduzindo uma nova estrutura para a revista, com artigos temáticos, outros de demanda livre e resenhas, a partir de 2002. Em torno desse período fui convidado a participar, como editor-adjunto, da gestão da revista, e no segundo semestre de 2004 assumi a editoria principal. Após a admissão da revista na coleção da SciELO, em 2005, a submissão de artigos aumentou consideravelmente, e passamos a publicar três números por ano, em 2007, e quatro, em 2008, número que mantemos até o presente. Em 2010 passamos a trabalhar com seis editores associados, três do próprio IMS e três convidados de outras instituições. Ao final de 2014 convidamos quatro pesquisadores de instituições de outros países para participarem, como editores associados internacionais, da gestão da revista.

Em 2008 fizemos uma reforma no padrão gráfico da revista, em parte para produzir um aggiornamento na sua aparência, mas também pensando na redução de custos com a publicação. A sustentabilidade financeira da revista tem sido uma preocupação constante ao longo de sua trajetória; ao contrário de diversas congêneres, não contamos com financiamentos adicionais, à exceção dos recursos obtidos junto ao CNPq, limitados e progressivamente reduzidos, sempre insuficientes frente às novas demandas colocadas pela própria SciELO.

Physis se dedicou, ao longo de toda sua trajetória, a divulgar a produção de autores nacionais e internacionais nas áreas de fronteira do campo, com ênfase na interdisciplinaridade e no diálogo entre as várias disciplinas que se entrecruzam em torno desta temática. Sua orientação editorial é aberta para a produção na área de Saúde Coletiva, com ênfase nas áreas de Ciências Humanas e Sociais e de Política, Planejamento e Administração em Saúde. Dada a existência de publicações relevantes nacionais na área de Epidemiologia, o corpo editorial da revista optou por dar prioridade nesta área a artigos que abordem dimensões conceituais da mesma ou ainda às repercussões sociais dos conhecimentos produzidos pela pesquisa epidemiológica. Por conta dessa orientação e de sua tradição (é uma das mais antigas revistas de Saúde Coletiva no Brasil), tornou-se um dos principais veículos de divulgação dessas subáreas da Saúde Coletiva, tendo em vista a predominância de artigos epidemiológicos em outras publicações. Esta especificidade de orientação editorial – privilegiando as ciências sociais e humanas e a política, o planejamento e a administração em saúde – é única na área de Saúde Coletiva no Brasil.

A orientação editorial da revista segue sendo fiel à proposta dos seus primeiros editores. Nas palavras de Birman, no editorial que marca o início da nossa história:

O campo da saúde coletiva é, pois, fundamentalmente multidisciplinar e admite no seu território uma diversidade de objetos e de discursos teóricos, sem reconhecer em relação a eles qualquer perspectiva hierárquica e valorativa. É evidente que os diferentes discursos biológicos têm um lugar fundamental no campo da saúde, o que não deve implicar uma posição hegemônica em relação aos outros. Por tudo isso, a multidisciplinaridade pretende ser a marca simbólica desta publicação semestral que agora se inicia. Pretendemos reunir trabalhos de pesquisa oriundos de diferentes áreas de conhecimento, dando lugar tanto aos que circulam em campos de objetividade já constituídos, quanto àqueles que promovam a abertura de novos espaços de investigação1Birman J. A physis da saúde coletiva. Physis Rev Saude Coletiva 1991; 1:7-11..

Algumas características dos artigos publicados

Nos 24 anos que nos separam daquele momento, publicamos um total de 59 fascículos (desconsiderando o suplemento do volume 15, que foi comemorativo) e 654 artigos até o último número de 2014 (Figura 1). A maior parte dos temas foi ligada às ciências sociais e humanas em saúde, num total de 30, seguida da política e planejamento em saúde, com um total de 17. Dentro das ciências sociais e humanas em saúde, alguns subtemas tiveram destaque: temas ligados à sexualidade (5), à saúde mental (4) e à filosofia (3).

Figura 1
Fascículos e artigos publicados em Physis, 1991-2004.

Entre os números temáticos, destacaríamos alguns que se caracterizaram pela sua inovação e contribuição ao debate no campo da Saúde Coletiva. Já no volume 7, em 1997, tematizamos a questão da sexualidade como relevante para a saúde coletiva. Em 2002 a saúde nas grande cidades foi tema de um dos números. No ano seguinte trouxemos para o primeiro plano os recursos humanos em saúde, e colocamos em discussão a questão do aborto. Em 2004 tratamos das relações entre “raça” (assim mesmo, com aspas), sexualidade e saúde. Os problemas ligados aos processos de avaliação da ciência têm sido cada vez mais objeto de discussão no nosso campo, e em 2005 fomos das primeiras revistas do campo a colocar essa temática em discussão. Esses são apenas alguns dos tópicos que mostram o escopo da contribuição específica da revista para a ampliação do campo.

A focalização em artigos específicos é um pouco mais complexa, com quase 700 publicados em 24 anos, o que torna difícil selecionar alguns entre eles para o espaço que dispomos. Sendo assim, fizemos recurso a um atalho. As estatísticas disponíveis no site SciELO fornecem alguns dados interessantes para a reflexão, com a ressalva de que seguimos críticos da sua utilização como critério de avaliação2Camargo Júnior KR. Produção científica: avaliação da qualidade ou ficção contábil? Cad Saude Publica 2013; 29(9):1707-1730..

Em primeiro lugar, consideremos os dez artigos mais citados no período que se inicia em 2009. A data é limitação da própria base de dados, o Google Scholar, que é utilizado pela própria SciELO em seu site. Como toda base de citações, há limitações importantes na mesma; uma vez que a coleta de citações foi feita para computar um índice bibliométrico (H5) que se refere apenas a artigos publicados nos últimos 5 anos, não há referência àqueles publicados antes de 2008. De todo modo, a lista na Tabela 1 reflete em alguma medida a variedade temática do que a revista publica.

Tabela 1
Artigos mais citados de acordo com o Google Scholar.

A partir do site SciELO é também possível identificar os artigos com mais acessos, medidos, segundo o site, através do acesso ao sumário, aos resumos e aos artigos em HTML e em PDF. Para manter a comparabilidade com a métrica do GoogleScholar, foram considerados apenas artigos publicados a partir de 2008, e os acessos a partir de 2009. Os dez mais acessados segundo esses critérios estão na Tabela 2.

Tabela 2
Artigos mais acessados segundo o site SciELO.

Ao cotejar os dois quadros, dois fatos saltam aos olhos. Em primeiro lugar, há pouca correspondência entre artigos mais citados e mais acessados; apenas dois figurando nos dois quadros (os de Carrara, Russo e Faro e de Gomes e Menezes). Em segundo lugar, e mais importante, nota-se a imensa discrepância entre acessos e citações. Foram registradas mais de setecentas vezes o número de acessos que citações para os primeiros colocados na lista. Mesmo levando-se em consideração possíveis limitações no indicador de acessos (e as há para as citações), tal diferença deve no mínimo nos convidar à reflexão.

Medidas de “impacto” e o futuro da publicação científica brasileira

Para um campo como a Saúde Coletiva, que inclui não apenas a produção de conhecimentos, mas também a ação em várias modalidades, desde a atenção à saúde à formulação e implementação de políticas, passando pelo ativismo junto a movimentos sociais, considerar apenas a utilização por outros pesquisadores (e de modo limitado), como fazem as citações, é deixar de lado um aspecto relevante da sua contribuição.

E, no entanto, é esse tipo de avaliação estreita, que vem recebendo críticas crescentes, inclusive internacionalmente3Cagan R. San Francisco Declaration on Research Assessment. Dis Model Mech 2013; 6(4):869-870., que segue ditando normas em nosso meio, o que nos leva a contemplar o futuro com alguma apreensão. Conseguimos, com muito esforço e dedicação, praticamente sextuplicar o número de artigos publicados por ano, dispondo da mesma infraestrutura e com limitações crescentes de financiamento. Sem querer polemizar com nossos companheiros que optaram por esse caminho, não gostaríamos de adotar o modelo, infelizmente cada vez mais disseminado, de transferir o ônus do financiamento da publicação para os autores. As exigências adicionais colocadas pela SciELO, contudo, em especial no que diz respeito à publicação em inglês de parte considerável dos artigos, implicam em custos adicionais – no caso, da tradução. Tal custo tensionará ainda mais um orçamento já nos seus limites, no nosso caso.

Fora este aspecto, metas baseadas em conceitos equivocados – a nosso ver – de impacto e internacionalização correm o risco de interferir em políticas editoriais e mesmo comprometer a qualidade do que é publicado.

Temos observado, com preocupação, sinais crescentes de comprometimento da qualidade daquilo que é produzido em nossa área, o que acreditamos ser atribuível em boa medida à pressão por publicação em volumes crescentes. Temos mantido vigilância em particular sobre a multiplicação exponencial do número de autores por artigo, que já documentamos anteriormente4Camargo Jr KR, Coeli CM. Multiple authorship: growth or inflationary bubble? Rev Saude Publica 2012; 46(5):894-900.. Observamos um aumento do número de autores por artigo mesmo na subárea de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, que segue sendo bastante autoral, e cujos métodos de pesquisa não sofreram, ao que consta, nenhuma transformação radical em anos recentes, continuando a ser bastante artesanais. Preocupa-nos, como a vários colegas nossos, o risco da mediocrização daquilo que é publicado, restrita à reiteração do já conhecido e seguro, o “mais do mesmo” apontado pelas editoras dos Cadernos de Saúde Pública5Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Mais do mesmo? Cad Saude Publica 2013; 29(11):2141-2143..

Cremos ser necessária uma reflexão profunda sobre o sentido da publicação científica, dos problemas postos pela crescente mercantilização da mesma, e da inserção da ciência brasileira no cenário mundial para poder identificar corretamente o caminho a seguir. Como afirmou recentemente Richard Horton, editor do Lancet, a questão que os publishers deveriam estar perguntando não é como proteger fatias do mercado. É como explorar – e aproveitar – o valor pleno da ciência para a sociedade6Horton R. Offline: What is the point of scientific publishing? Lancet 385(9974):1166.. Não temos visto sinais de que as instâncias-chave para a produção e a difusão da ciência no Brasil estejam enfrentando adequadamente essa tarefa. Por outro lado, esses temas têm estado presentes nas discussões do recém-criado Fórum de Editores em Saúde Coletiva, o que nos traz algum alento.

Dispor de um leque variado e amplo de revistas é essencial para qualquer campo científico, mais ainda no caso da Saúde Coletiva, considerando a imensa diversidade interna que essa rubrica abarca. Necessitamos de um conjunto sólido, amplo de revistas, com politicas editoriais e escopos diferentes, até mesmo para que artigos de umas possam citar as outras. Dado o compromisso político e social da Saúde Coletiva, nosso horizonte deve ser sempre o de ampliar, e não de restringir oportunidades de publicação. Esta tem sido uma meta na trajetória de Physis, e claramente o mesmo se aplica à Ciência & Saúde Coletiva. Que os próximos vinte anos nos vejam crescer ainda mais.

Referências

  • 1
    Birman J. A physis da saúde coletiva. Physis Rev Saude Coletiva 1991; 1:7-11.
  • 2
    Camargo Júnior KR. Produção científica: avaliação da qualidade ou ficção contábil? Cad Saude Publica 2013; 29(9):1707-1730.
  • 3
    Cagan R. San Francisco Declaration on Research Assessment. Dis Model Mech 2013; 6(4):869-870.
  • 4
    Camargo Jr KR, Coeli CM. Multiple authorship: growth or inflationary bubble? Rev Saude Publica 2012; 46(5):894-900.
  • 5
    Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Mais do mesmo? Cad Saude Publica 2013; 29(11):2141-2143.
  • 6
    Horton R. Offline: What is the point of scientific publishing? Lancet 385(9974):1166.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2015
  • Revisado
    16 Abr 2015
  • Aceito
    18 Abr 2015
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