Uma necessidade imperativa em âmbito global - como se lidar com a carga dobrada da má nutrição ao longo do curso da vida

Este número de Ciência & Saúde Coletiva focaliza, por razões de grande conveniência, sobre a importância da nutrição para a saúde pública, uma matéria cuja significância global está em ascensão contínua. O conceito de Carga Dobrada por Má Nutrição (DBM), descrito inicialmente nos anos noventa do século passado, é hoje reconhecido como tendo um efeito causal sobre o curso da vida, com as populações afetadas estando mais susceptíveis às doenças não transmissíveis relacionadas à nutrição, tais como a pressão sanguínea elevada e o diabetes. A nutrição em excesso e a subnutrição geralmente coexistem em uma mesma comunidade, e até em um mesmo lar, afetando países ricos ou pobres de mesmo modo.

Atualmente a má nutrição afeta pelo menos a metade da população global. No mundo, o comprometimento no desenvolvimento infantil afeta em torno de um quarto das crianças, enquanto cerca de um terço dos adultos está com sobrepeso ou, então, sofre de obesidade. A anemia também está afetando cerca de um terço das mulheres na idade fértil, e quase a metade das crianças em idade pré-escolar. A subnutrição infantil e a de suas mães constituem, quando consideradas em conjunto, as causas de quase a metade do total dos óbitos de crianças. Já o impacto econômico global provocado pela obesidade tem sido estimado, grosso modo, em dois trilhões de dólares, equivalentes a 2,8% do produto bruto global.

Para lidar com este problema, é essencial adotar-se uma abordagem multisetorial. A prioridade principal está em assegurar o crescimento ótimo de bebês e crianças, desde o nascimento até os dois anos, mas isso demanda que diversos setores façam esforços concentrados. O setor de saúde deve assegurar, mediante a melhora no cuidado pré-natal, a redução na proporção de nascimentos com baixo peso, assim como a melhora nas práticas de alimentação pós-parto. O setor de ensino deve assegurar a permanência de meninas adolescentes na escola até os dezoito anos, assim como o seu preparo para a maternidade, antes de deixar a escola. O setor agrícola deve proporcionar uma ajuda especial a mulheres que trabalham em fazendas, incentivando a produção de alimentos ricos em nutrientes, tanto para o consumo em casa, como para o mercado. A indústria alimentícia pode ajudar, enriquecendo os alimentos básicos com micronutrientes, e mediante a adoção de práticas de publicidade e marketing mais restritivas, e mais responsáveis. O setor de abastecimento d’água e de saneamento deve buscar, em especial, controlar as doenças diarreicas e gastrintestinais, principalmente das mães jovens e seus bebês. O setor de seguridade social deve, sempre que for viável, fazer a conexão de terminais para a transferência de dinheiro, principalmente para casas que abrigam famílias pobres e mães jovens, associado à promoção da educação, saúde e nutrição.

No entanto, lidar com o comprometimento do desenvolvimento nos primeiros mil dias de vida não é o bastante, levando-se em conta que ao longo do curso de vida é preciso empreender muitos esforços para se evitar o desenvolvimento da obesidade antes da idade adulta. Isso também demandará contribuições de diversos setores, mas o de educação deve assumir a liderança, permitindo que a formatura de crianças na escola venha acompanhada de qualificações adequadas para a vida e comportamentos apropriados que as ajudarão a evitar esses riscos de origem nutricional, na idade adulta. A garantia de qualificações adequadas para a vida depois da fase escolar pode ser facilitada mediante ambientes não obesígenos, que também demandam um apoio governamental, seja mediante a tributação, regulamentação e/ou subsídios. A garantia de que a atividade física venha a ser facilitada e disponibilizada sem dificuldade, e que o acesso a dietas de qualidade será financeiramente acessível, com extinção da publicidade que promove hábitos e produtos não saudáveis, vai muito além do domínio da mera “força de vontade”.

Para se alcançar uma eficaz abordagem multisetorial em relação a este tipo de curso de vida, os mecanismos de coordenação serão de importância essencial, devendo estar, em um sistema de governo centralizado, inseridos em nível supraministerial, a ser guiado por uma estrutura multisetorial acordada e voltada em direção a uma atuação eficaz. Os esforços para a criação de abordagens multisetoriais dessa natureza devem incluir incentivos, permitindo que líderes locais assumam os desafios envolvidos. Um apoio externo considerável será necessário, inicialmente para o desenvolvimento de qualificações, assim como para ajudar a construir os indispensáveis instrumentos de monitoramento e avaliação do progresso alcançado.

Roger Shrimpton
Dept. of Global Community Health and Behavioural Sciences, Tulane School of Public Health and Tropical Medicine, New Orleans, Louisiana, USA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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