Características de estudos qualitativos conduzidos por médicos: revisão da literatura

Stella Regina Taquette Maria Cecília de Souza Minayo Sobre os autores

Resumo

O método qualitativo de pesquisa é pouco utilizado por médicos, apesar de estes serem atores privilegiados na condução de estudos compreensivos na saúde devido à proximidade com o campo. Objetivamos conhecer e analisar as características da produção científica brasileira de médicos com método qualitativo. Realizamos busca bibliográfica de estudos qualitativos publicados em periódicos indexados no SciELO de 2004 a 2103, através de palavras-chave e por autores reconhecidos no uso deste método. Classificamos os artigos de acordo com: formação e atuação profissional do médico, tema da pesquisa, periódico publicado e características do percurso metodológico empreendido. Encontramos 135 artigos, os classificamos em sete principais temas, sendo Políticas Públicas, Medicina Clínica e Cirúrgica e Saúde Mental os mais frequentes. Os periódicos de Saúde Pública concentram mais de 50% das publicações. Entrevista é o instrumento de uso mais frequente e a análise de conteúdo a técnica mais utilizada. Concluímos que a produção científica de médicos com o método qualitativo é diversificada, contudo, muito reduzida. Para ampliá-la é necessário que se criem estratégias, como, por exemplo, a disponibilização de linhas de financiamento específicas para estudos desta natureza pelas agências de fomento.

Palavras-chave
Pesquisa qualitativa; Currículo médico; Conhecimento científico

Introdução

Os médicos são atores privilegiados para a realização de estudos de problemas e questões de saúde de natureza compreensiva. Eles necessariamente, por causa de sua experiência na assistência, têm contato com as pessoas e deveriam conhecer seus problemas de saúde e a eles relacionados11. Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças, e seus objetos de pesquisa. Rev Saude Publica 2005; 39(3):507-514.. Cassorla22. Cassorla RMS. Prefácio. In: Turato ER, organizador. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2003. p. 19-32. defende que trabalhar com método qualitativo, que tenta compreender o significado dado pelo sujeito às suas ações, é estar próximo do que faz o médico clínico, que em seu ofício deveria ir além dos sinais e sintomas que apresenta. Apesar desse reconhecimento por parte de alguns pesquisadores médicos, poucos estudos realizados na grande área da saúde são conduzidas com métodos qualitativos, aqui entendidos como aqueles que se ocupam com um nível de realidade que é tratado por meio da história, da biografia, das relações, do universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes33. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec; 2006..

Os estudos qualitativos são realizados geralmente por pesquisadores não médicos, ou por aqueles que se debruçam mais nos problemas de saúde coletiva e não exercem diretamente a prática clínica. A linguagem dos textos científicos sobre o método qualitativo é pouco usual aos médicos, cuja formação é predominantemente técnica, o que lhes dificulta a apropriação dos textos que tratam desse tipo de conhecimento e, consequentemente, a possibilidade de sua utilização na pesquisa44. Cohn A. Ciências Sociais e Saúde Pública/Coletiva: a produção do conhecimento na sua interface. Saúde Soc 2013; 22(1):15-20.. O resultado é uma abordagem reducionista de certos problemas que se apresentam na prática da medicina que demandariam um esforço compreensivo e de intersubjetividade dos profissionais. Por desconhecimento ou por negação, os pesquisadores médicos tendem a questionar a cientificidade e a validade da abordagem qualitativa, tomando como pretexto sua não reprodutibilidade e impossibilidade de generalização de seus achados55. Morse JM. Reconceptualizing Qualitative Evidence. Qual Health Res 2006; 16(3):415-422..

Como num efeito cumulativo de negação da metodologia qualitativa pelos pesquisadores médicos, poucos periódicos da área de medicina aceitam publicar pesquisas de cunho qualitativo e, não raramente, quando os estudos são enviados aos periódicos da área, recebem críticas acirradas pela falta de aprofundamento teórico66. Canesqui AM. Sobre a presença das ciências sociais e humanas na saúde pública. Saúde Soc 2011; 20(1):1621.88. Gomes MHA, Silveira C. Sobre o uso de métodos qualitativos em Saúde Coletiva, ou a falta que faz uma teoria. Rev Saude Publica 2012; 46(1)160-165., o que muitas vezes é merecido, pela forma apenas descritiva ou até superficial como são tratados os achados empíricos. No entanto, as inadequações que frequentemente se observam não podem inviabilizar a importância do método que traz uma alternativa aos esquemas de questionários fechados e dialogam com os sujeitos. O antropólogo H. Becker99. Becker HS. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Ed. Hucitec; 1999. enfatiza que o pesquisador social não pode se submeter à camisa de força das metodologias que buscam fazer caber nelas a realidade social, quando o mundo empírico é infinitamente mais rico. O desafio é a capacidade de compreendê-lo e de interpretá-lo1010. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626..

Buscando qualificar as questões levantadas nesta introdução, realizou-se esta revisão da literatura existente sobre estudos qualitativos desenvolvidos por pesquisadores médicos, visando a responder as seguintes questões: qual a formação e atuação do médico que utiliza o método qualitativo? Sobre que problemas da área da saúde eles se debruçam? Quais as características do percurso metodológico empreendido por esses investigadores? Tais estudos recebem financiamento?

Material e Métodos

Foi realizada uma busca de artigos publicados em periódicos indexados no Scientific Electronic Library Online (SciELO) do Brasil entre os anos de 2004 e 2013, ou seja, na última década, desenvolvidos por médicos e com método qualitativo. Selecionamos esta base de dados pelo fato de ser a mais completa em revistas científicas brasileiras que passam por avaliação periódica realizada por comitê composto por profissionais experientes, representantes das grandes áreas de conhecimento. Os artigos publicados em periódicos indexados no SciELO são obrigatoriamente avaliados por pares.

Utilizamos as seguintes palavras-chave: entrevista; entrevista em profundidade; entrevista semiestruturada; entrevista aberta; pesquisa qualitativa; método qualitativo; estudo qualitativo; grupo focal; história de vida; história oral; observação participante; representações sociais; narrativas; análise de conteúdo; análise de discurso; hermenêutica e dialética. Por esse primeiro critério, selecionamos 1616 artigos. Em seguida, verificamos os artigos quanto ao título e ao periódico publicado. Os títulos que claramente demonstravam que o tema de estudo ou do periódico era de área totalmente distinta da saúde (linguística, economia, sociologia, política, meio ambiente, filosofia, entre outras) foram descartados. Igualmente o foram os publicados em periódicos de áreas específicas como enfermagem e odontologia, que tradicionalmente veiculam artigos de profissionais destas categorias. Após estes dois filtros, lemos os resumos dos artigos. Quando o manuscrito dizia respeito à pesquisa realizada no campo da saúde, buscamos os currículos do primeiro e segundo autor na Plataforma Lattes para identificação de médicos. Além desta estratégia, selecionamos artigos de autores conhecidos na área qualitativa, indicados por outros pesquisadores e também outros trabalhos dos mesmos autores já identificados. Os artigos conceituais foram excluídos da análise.

Analisamos os textos selecionados, inicialmente quanto às características do autor (tempo de profissão, titulação, instituição de origem, área de atuação) e do periódico (área, ano de publicação, financiamento). Em seguida, após a leitura e releitura atenta dos manuscritos criamos categorias classificatórias relativas ao tema do estudo e analisamos o percurso metodológico empreendido desde o período da pré-coleta de dados, coleta propriamente dita e análise dos dados. Ao final, realizamos a síntese dos principais resultados encontrados com sugestão de estratégias para aperfeiçoamento do uso do método qualitativo por pesquisadores médicos.

Resultados

Reunimos nesta busca 135 artigos, sendo que em 82 os médicos eram autores e em 53, coautores. Os artigos filtrados pelas palavras-chave foram apenas 63 e os 72 restantes foram selecionados pelos nomes dos autores. O número total de médicos que pratica a pesquisa qualitativa foi de 68, sendo 42 mulheres e 26 homens: 41 eram autores de apenas um artigo; 20 de 2 a 4 artigos; cinco de 5 a 7 artigos; e dois, de 8 a 10 artigos no período analisado. Apesar dos variados critérios de busca, certamente não foram levantados todos os trabalhos desse grupo, pois muitos artigos não dispõem de palavras-chave que os identifiquem como estudos qualitativos.

Dados referentes ao autor e ao periódico da publicação

Os médicos brasileiros que utilizam método qualitativo em sua produção científica, em geral, têm longo tempo de profissão. Cerca da metade deles (48,1%) se formou entre 21 e 30 anos atrás; e quase um terço (29,7%) há mais de 30 anos. Um percentual menor possui até 10 anos de graduados (8,9%) e entre 11 e 20 anos, (13,3%). Este perfil dos médicos autores não parece diferir da maioria dos pesquisadores em saúde.

Em seus currículos, os médicos que trabalham com o tema em pauta informaram 12 campos distintos de atuação profissional, sendo dois os mais frequentes: Saúde Pública (38,5%) e Psiquiatria (34,8%). Os profissionais dessas áreas de conhecimento, em geral, em sua formação têm mais contato com temas das ciências humanas, como filosofia, antropologia e psicologia, o que lhes facilita a realização de estudos compreensivos. As demais áreas são: medicina de adolescentes, medicina de família, gineco-obstetrícia, clínica médica, pediatria, homeopatia, saúde indígena, geriatria, dermatologia e hematologia.

Os autores dos artigos, em geral, são profissionais experientes. A maioria é pós-graduada: 113 (83,7%) são doutores; 15 (11,1%) são mestres; três (2,2%) são especialistas; três (2,2%) são graduados e um (0,8%) é ainda estudante de graduação. As publicações analisadas têm autores de todas as cinco regiões do país, sendo que mais de 60% atuam em instituições acadêmicas da região Sudeste do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em ordem decrescente de número de publicações citam-se as seguintes as instituições de origem dos autores. Em São Paulo: Unicamp, USP, UNIFESP, UFSCAR, UNESP, Anhembi Morumbi, Santa Casa de São Paulo e UNITAU. No Rio de Janeiro: UERJ, Fiocruz, UFRJ, Secretaria Municipal de Saúde e UNESA. Em Minas Gerais: UFJF, UFMG, Unimontes, Prefeitura de BH e Hemominas.

As instituições da região Nordeste filiam autores de 26,6% dos artigos. Do Estado da Bahia citam-se a UFBA, UEFS, CAPS de Cipó. Do Ceará, UECE e HGWA. De Pernambuco, IMIP. Do Rio Grande do Norte, a UFRN. E da Paraíba, UFPB. No Sul, a maioria trabalha no Rio Grande do Sul: na Unisinos e Universidade Luterana de Canoa. Na região Norte, houve uma pequena representação do Estado de Amazonas: UEA. E na região Centro- Oeste, do Distrito Federal com estudos produzidos na Fundacentro.

Os artigos em que os médicos são coautores, os autores principais pertencem a 13 diferentes áreas: psicologia (43,4%); enfermagem (15,1%); pedagogia (9,4%); ciências sociais (7,4%); e com menos expressão, fisioterapia, terapia ocupacional, serviço social, farmácia, nutrição, odontologia, fonoaudiologia, jornalismo e ciências econômicas.

Os artigos foram publicados em 28 periódicos diferentes, sendo que sete deles veicularam 75% do total de publicações analisadas, com cinco ou mais artigos, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição dos periódicos com 5 ou mais artigos: 75% do total

Os outros periódicos que publicaram quatro ou menos artigos são: Revista Latino-Americana de Psicologia; Revista de Psiquiatria do RGS; Revista Brasileira de Saúde Ocupacional; São Paulo Medical Journal; Trends Psyachiatric and Psychoterapy; Estudos de Psicologia; Revista Brasileira de Enfermagem; Revista Brasileira de Psiquiatria e Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil.

Apresentando apenas um artigo em coautoria estão: Acta Amazônica; Jornal Brasileiro de Nefrologia; Psicologia em Estudo; Revista da Associação Médica Brasileira; Revista Brasileira de Hematologia; Estudos Feministas; Revista de Nutrição; Revista de Psiquiatria Clínica; Revista da Escola de Enfermagem Anna Nery; Texto e Contexo; Saúde em Debate; Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia.

Dos 28 periódicos analisados, apenas cinco têm normas editoriais explícitas ou implícitas para publicação de estudos qualitativos. Esses informam, por exemplo, que “aceitam-se outros formatos de artigos originais, quando pertinente, de acordo com a natureza do trabalho,” ou que o texto deve ser “constituído de Introdução, Metodologia, Resultados, Discussão e Conclusão, embora outros formatos possam ser aceitos”. Oito periódicos não contêm informações específicas para publicação de textos com abordagem qualitativa, mas permitem artigos longos, o que facilita a publicação que, em geral, tendem a ocupar mais espaço. Seis periódicos dispõem em suas instruções para autores, normas que em tese rejeitam estudos qualitativos como, por exemplo, deve-se “explicar os procedimentos realizados, de tal modo que outros pesquisadores possam repetir o estudo; o procedimento estatístico utilizado deve ser descrito”. Em oito periódicos, o tamanho máximo do texto é bastante curto, inibindo alguns estudos compreensivos que exijam mais espaço para reflexão. Um dos periódicos consultados apresenta normas ambíguas, pois ao mesmo tempo em que as instruções pontuam que os estudos devem apresentar resultados replicáveis ou generalizáveis, admite tratamento estatístico ou categorização de dados.

A grande maioria dos artigos levantados nesta análise não informa a fonte de financiamento da pesquisa da qual resultou o estudo (95 = 70,4%). Apenas 40 estudos (29,6%) descrevem claramente que foram subsidiados. As fontes de fomentos citadas são: CNPq (13), Ministério da Saúde/UNESCO/OPAS/OMS (10), CAPES (6), FAPESP (6), FAPEMIG (1), FAPERJ (1), Fiocruz (1), FUNCAP (1) e CDC (1).

Na distribuição temporal, verificamos tendência crescente de publicações qualitativas por médicos, embora com pequena redução no último biênio, conforme mostramos na Tabela 2 e na Figura 1.

Tabela 2
Distribuição das publicações por Período de Publicação (Biênio) e N° Artigos
Figura 1
Distribuição do número de artigos por biênio.

Dados referentes aos temas de estudo e ao percurso metodológico

Após leitura e releitura dos artigos com foco no principal tema em estudo, criamos sete categorias temáticas. Não foi uma tarefa fácil e isenta de ambiguidades, pois alguns têm características que poderiam ser classificadas em mais de uma. Porém, optamos por valorizar o tema predominante do estudo.

  • Políticas públicas e organização de serviços (27 - 20%). Os artigos se referem à avaliação de serviços, gestão, políticas públicas gerais (Estratégia Saúde da Família, Emergências, Atenção Básica, Saúde Ocupacional) ou estão direcionados a segmentos específicos da população (idosos, homens). Esses trabalhos, em geral, têm como público alvo os gestores e profissionais de saúde.

  • Clínicos e cirúrgicos (27 - 20%): os estudos se referem à relação médico paciente e às patologias clínicas e cirúrgicas, como doenças crônicas, infecciosas, oncológicas e genéticas. Tratam de grupos específicos de pacientes: crianças, adolescentes e idosos. Os principais interlocutores desses estudos são pacientes, familiares, cuidadores e, em menor número, médicos.

  • Saúde mental (23 - 17%). Todos os textos discorrem sobre patologias psiquiátricas, serviços e atendimentos a pacientes; profissionais de saúde mental; psicofármacos e reforma psiquiátrica. O público alvo desta categoria de estudos são pacientes, familiares e profissionais de saúde mental.

  • HIV/AIDS (18 - 13,3%). Os estudos, em sua maioria, envolvem pacientes ou médicos. Os subtemas incluem adesão terapêutica, religiosidade, acesso a diagnóstico e tratamento, mudanças de vida pós-diagnóstico, sorodiscordância, vias de transmissão, teste rápido e vacinas.

  • Violências (16 −11,9 %). A maioria se refere à violência contra a mulher. Outros tratam de discriminação, assédio moral, violência institucional, violência contra policiais, crianças e adolescentes. Os sujeitos de pesquisa são diversos: estudantes, pacientes, familiares, profissionais e gestores.

  • Saúde sexual e reprodutiva (13 - 9,6%). Incluem-se nesta categoria os estudos sobre sexualidade, aborto, pré-natal, gestação e parto, questões ginecológicas e de assistência à saúde sexual e reprodutiva. O público alvo é constituído de pacientes, profissionais de saúde e gestores.

  • Educação médica (11 - 8,2%). Nesta categoria, os artigos têm como o público alvo estudantes de medicina, profissionais que atuam nos serviços e recebem estudantes e professores. Os subtemas abordados são: relação professor-aluno, ensino de habilidades e currículo médico.

Em relação ao tipo de população analisada nos estudos, a quase totalidade (94,1%) refere-se a seres humanos em suas relações, interações, sofrimentos, dores e potencialidades; pela ordem: pacientes, profissionais de saúde, familiares, gestores, professores e estudantes de medicina. Uma pequena parcela dos artigos (5,9%) se refere a análises documentais.

Um total de 85 artigos utilizou apenas uma técnica qualitativa, sendo mais frequente a entrevista (em 57 estudos). Em seguida e em ordem decrescente de frequência encontram-se as técnicas de grupos focais (15), história oral (3) e observação etnográfica (2). Em 50 artigos, os autores usaram várias técnicas: além das entrevistas, acrescentaram observação participante, análise documental e grupo focal.

Quantitativamente, as amostras variam muito, sendo que em mais de 50% do total de artigos o número de interlocutores foi menor do que 20. Quanto ao critério amostral, em todos os artigos em que este é relatado os autores falam em “saturação de conteúdos” sem dar maiores explicações.

Na metodologia descrita, 35 artigos não falam da análise dos dados empíricos ou documentais, mas há descrição de como foi decomposto o material coletado. Em cinco artigos não é nomeado nem descrito como as informações de campo foram analisadas. O método mais citado, em 52 artigos (38,5%), é “análise de conteúdo,” em suas variações temática e de enunciação, seguido de “análise hermenêutico-dialética,” citada em 27 estudos (20%). Outras modalidades foram descritas com menos frequência: análise de discurso, discurso do sujeito coletivo, grounded theory, estrutura de narrativas, análises clínico-qualitativa, fenomenológica e de pesquisa-ação. O uso de softwares para trabalhar com dados textuais foi infrequente. Apareceu apenas em 11 estudos. São eles: LOGOS, ETHNOGRAPH, QSR Nvivo, Atlas ti, SIM, EVC, Answr, MaxQDA, Openlogos e UCINET.

Discussão

As informações aqui citadas evidenciam que a produção científica brasileira de médicos que utilizam método qualitativo de pesquisa ainda é muito reduzida. Há uma tendência de crescimento deste tipo de estudo, porém lenta. Minayo1111. Minayo MCS. A produção de conhecimento na interface entre as Ciências Sociais e Humanas e a Saúde Coletiva. Saúde Soc 2013; 22(3):21-31., em pesquisa sobre a produção científica em ciências sociais e saúde, que compreende a maioria dos estudos qualitativos nas principais revistas da área, num período de 20 meses entre 2011 e 2012, verificou que 31% das publicações foram com essa abordagem. Comparando nossos achados com os dados desta pesquisa, podemos inferir ser bem pequena a parcela de estudos de autores médicos comparada com as demais categorias profissionais no universo da pesquisa qualitativa.

Esta parcela de estudos é pequena não por acaso. O crescimento lento resulta dos muitos obstáculos com os quais os médicos se deparam1212. Bosi MLM. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Cien Saude Colet 2012; 17(3):575586. e do pouco reconhecimento científico que tais estudos têm na área. É de se lamentar o estado atual desse campo de conhecimento que, sob todos os aspectos, traz larga contribuição para o desenvolvimento e a compreensão das complexas questões de saúde, inclusive para a clínica1313. Baxter S, Killoran A, Kelly M P, Goyder E. Synthesizing diverse evidence: the use of primary qualitative data analysis methods and logic models in public health reviews. Public Health 2010; 124(2):99-106.. Falando de sua importância para o setor saúde, os temas encontrados nos estudos que avaliamos se encaixam nos cinco principais eixos do campo da saúde coletiva1414. Marsiglia EMG. Temas emergentes em ciências sociais e saúde pública/coletiva: a produção do conhecimento na sua interface. Saúde Soc 2013; 22(1):32-43.: Políticas de saúde e Organização de serviços, Condições de vida e saúde, Recursos Humanos e Saúde, Trabalho e Saúde e Violência e Saúde.

No entanto, a escassez e a pouca importância dada aos estudos compreensivos não é um problema apenas brasileiro. Pesquisas internacionais também evidenciam realidade parecida. Schuval et al.1515. Shuval K, Harker K, Roudsari B, Groce EM, Mills B, Siddiqi Z, Shachak A. Is Qualitative Research Second Class Science? A Quantitative Longitudinal Examination of Qualitative Research in Medical Journals. PLoS One 2011; 6(2)-e16937. afirmam que em 10 anos houve aumento de 3,4 vezes de publicações qualitativas nas revistas de medicina (1,2% em 1998 e 4,1% em 2007). Porém, apesar deste aumento, o percentual ainda é muito pequeno. Mesmo com o reconhecimento recente do valor da pesquisa qualitativa por parte de algumas revistas importantes como Lancet e JAMA, a evidência empírica é de que ela ainda não recebe apoio da maioria. Em revisão sistemática sobre pesquisa em serviços de saúde e em gestão de saúde publicados nos principais periódicos internacionais da área, Hoff e Witt1616. Hoff TJ, Witt LC. Exploring the use of qualitative methods in published health services and management research. Med Care Res Rev 2000; 57(2):139-160. encontraram que apenas um em cada sete artigos utilizava método qualitativo.

As características dos artigos aqui analisados têm semelhanças e diferenças com os citados na literatura mundial, segundo ampla revisão de trabalhos publicados entre 2000 e 2004, realizada por Yamazaki et al.1717. Yamazaki H, Slingsby BT, Takahashi M, Hayashi Y, Sugimori H, Nakayama T. Characteristics of qualitative studies in influential journals of general medicine: a critical review. BioScience Trends 2009; 3(6):202-209.. Os autores analisaram as revistas de medicina geral de maior fator de impacto do mundo: BMJ, Lancet, JAMA, Annals of Internal Medicine e New England Journal of Medicine. Foram encontrados apenas 80 artigos e 78% usavam somente uma técnica, sendo a maioria entrevista (52%) ou grupo focal (21%). O tamanho amostral médio foi de 36 entrevistas (de 9 a 383) e 41% dos estudos não informavam qual o tipo de análise realizada, embora descrevessem em detalhes o processo analítico. Outros nomeavam algum tipo de análise, mas os autores não explicavam o que haviam feito. A abordagem mais comum foi a grounded theory, diferente do que encontramos, pois nos estudos que analisamos predominou a análise de conteúdo. Igualmente, o uso de softwares foi bem mais frequente (41%) do que o fazem autores brasileiros. Entretanto, tanto aqui como em outros países, o uso de softwares tem sido criticado, com o argumento de que eles não podem substituir o processo de análise compreensiva do pesquisador. Segundo Fossey et al.1818. Fossey E, Harvey C, McDermott F, Davidson L. Understanding and evaluating qualitative research. Aust N Z J Psychiatry. 2002; 36(6):717-732., muitas vezes eles podem ampliar as possibilidades de exploração de dados e aumentar a profundidade de entendimento, mas também podem restringi-los ou distorcer a análise.

Numa revisão de 10 anos (1998 e 2008) sobre a utilização de métodos qualitativos em publicações que tratam de gestão e saúde pública em nove principais periódicos da área, Weiner et al.1919. Weiner BJ, Amick HR, Lund JL, Lee SY, Hoff TJ. Use of qualitative methods in published health services and management research: a 10-year review. Med Care Res Rev 2011; 68(1):30-33. encontraram somente 9% de artigos qualitativos e, destes, metade apresentava pouco ou nenhum detalhe sobre aspectos-chave do método utilizado. Quanto às técnicas empregadas, em metade dos estudos foi empregada apenas uma, sendo a entrevista adotada em 80% dos casos, corroborando com os dados de nossa pesquisa. Metade dos artigos analisados informava a fonte de financiamento das pesquisas que lhes deram origem, situação bem superior à nossa realidade. Na análise sobre a apresentação de dados de estudos qualitativos, Sandelowski et al.2020. Sandelowski M, Barroso J. Classifying the findings of qualitative studies. Qual Health Res 2003; 13:905-923. encontraram uma grande uniformidade na forma como resultados foram produzidos e apresentados, não importando qual o quadro de referência ou método usado.

Em outro estudo de revisão realizado no ano 2000 sobre uso do método qualitativo nas pesquisas nas 170 principais revistas clínicas do mundo, de 60330 artigos encontrados, apenas 355 apresentavam estudos qualitativos originais e estavam publicados em 48 periódicos: a maioria da área da enfermagem. Somente quatro dessas revistas apresentavam alto fator de impacto2121. McKibbon K, Gadd CS. A quantitative analysis of qualitative studies in clinical journals for the 2000 year. BMC Med Inform and Decis Mak 2004; 4:11..

Em síntese, o presente estudo evidencia que são poucos os artigos de médicos no universo da pesquisa qualitativa, e os profissionais que os escrevem estão concentrados na região sudeste do Brasil, especialmente no Estado de São Paulo, onde está também a maioria dos pesquisadores de outras áreas. Há predominância de autores filiados a instituições universitárias, como era de se esperar. A maior parte das publicações ocorre nas áreas de saúde mental, situações clínicas e cirúrgicas e políticas públicas e organização de serviços, sendo a maioria dos médicos atuantes na psiquiatria e na saúde pública. Quatro periódicos da área de saúde pública (Ciência & Saúde Coletiva, Cadernos de Saúde Pública, Revista de Saúde Pública e Physis) concentram mais de 50% das publicações. Entrevista é o instrumento de pesquisa de uso mais frequente. As amostras de pessoas abordadas nas pesquisas, em geral, são pequenas. E ainda é baixa a utilização de softwares para codificação de dados textuais. Análise de conteúdo é a técnica mais utilizada. Mas, apesar da escassez, existe tendência de aumento de estudos qualitativos desenvolvidos por médicos nos últimos quatro anos. Poucos estudos recebem financiamento, ou pelo menos os autores não os citam.

Destacamos que a presente revisão se limitou a estudos publicados em periódicos indexados no SciELO do Brasil, ou seja, não abrange possíveis publicações de médicos brasileiros em revistas indexadas em outras bases de dados.

Ao final, concluímos que a produção científica brasileira de estudos qualitativos desenvolvidos por médicos tem semelhanças com a produção internacional: é predominante em revistas de saúde pública, cresce lentamente, é pequena, restrita a algumas áreas e se utiliza mais frequentemente das mesmas técnicas. Para ampliá-la, é necessário que haja investimento das agências de fomento, no sentido de disponibilizar recurso para Editais que apoiem especialmente pesquisas de natureza qualitativa em saúde. O presente estudo demonstra que, pela variedade de campos de atuação dos autores médicos que realizaram pesquisas qualitativas sem apoio financeiro, existe necessidade de investimento e interesse por esse tipo de investigação dentro da área da saúde.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2014
  • Revisado
    30 Nov 2014
  • Aceito
    02 Dez 2014
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br