Disputas científicas que transbordam para o campo da Ética em pesquisa: entrevista com Maria Cecília de Souza Minayo

Maria Cecília de Souza Minayo Sobre o autor

Resumos

Esta entrevista foi realizada pelas Professoras Iara Coelho Zito Guerriero e Maria Lúcia Magalhães Bosi com Maria Cecília de Souza Minayo. Esta reflete o calor dos debates atuais em torno à implementação de um protocolo específico para a avaliação das Pesquisas em Ciências Sociais e Humanas (CHS), vis a vis, as atuais normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Saúde que têm um viés claramente biomédico. A entrevista versa sobre as dificuldades de se introduzir normas adequadas e justas para julgamento dos projetos de CHS, frente a uma compreensão hegemônica do próprio conceito de ciência pelos biólogos e médicos que tendem a não reconhecer outras abordagens a não ser as que adotam seus referenciais. No caso, o Conselho Nacional de Saúde acaba por ser portador dessa polêmica, levando os pesquisadores das ciências humanas e sociais a se perguntarem se o setor saúde tem competência para criar normas para outras áreas de conhecimento.


1. Iara Coelho Zito Guerriero (ICZG) e Maria Lúcia Magalhães Bosi (MLMB): Considerando sua experiência como antropóloga da saúde e pesquisadora que, quando membro do CNS, votou pela aprovação da Res.196/96, agora revogada pela 466/12, e como uma autora com publicações sobre o tema, sendo atualmente membro do GT CHS/CONEP encarregado da elaboração de uma resolução para Ciências Humanas e Sociais (CHS), gostaríamos de ouvi-la sobre a importância dessa Resolução e o que a justifica.

Maria Cecília de Souza Minayo (MCSM): Considero fundamental ter normas claras para as áreas de Ciências Humanas e Sociais porque, de um lado, não cabe às áreas biomédicas colonizarem outro campo e subordinálo à sua lógica. De outro, as CHS também precisam de orientação e não podem se considerar acima de qualquer lei ou norma: sua história mostra muitos acertos e contribuições, mas também desacertos – alguns clássicos – em relação às populações com as qual trabalham.

Fui sim, membro do Conselho Nacional de Saúde em nome da SBPC e votei a favor da Resolução 196/96. Na época, ela era uma novidade para todos nós e a área de saúde estava sob os impactos das denúncias sobre coleta e contrabando de sangue de indígenas brasileiros; e, também, sob os influxos negativos da obra da Antropóloga Nancy Scheper-Hughes sobre a “negligência materna seletiva”, uma categoria interpretativa criada por essa autora para se referir ao comportamento de mães pobres de Recife que, segundo sua interpretação, deixavam morrer os filhos doentes e fracos, privilegiando os mais fortes e sadios, frente à impotência pessoal e à falta de suporte social e de saúde para cuidar de todos. Essa interpretação se mostrou não só superficial, como inidônea e cruel com as referidas mulheres. A pesquisa havia acontecido sem nenhum controle social ou dos órgãos públicos.

Foi com o tempo e a prática de apresentar projetos para serem avaliados pelos comitês de ética, que eu e a maioria de meus colegas cientistas sociais e da área de humanidades, principalmente os que trabalham com temas de saúde, fomos nos dando conta da impropriedade dos instrumentos propostos pela Resolução 196/96, para analisar os aspectos éticos da pesquisa empírica em Ciências Humanas e Sociais, particularmente, no caso da antropologia.

2. ICZG e MLMB: Poderia comentar alguns aspectos dessa “impropriedade dos instrumentos” a que você se refere, com base em problemas que você tenha testemunhado?

MCSM: As dificuldades de pesquisadores, como eu, que trabalham com investigação qualitativa e antropológica – que por natureza incluem relações intersubjetivas como cerne do processo compreensivo –, precedem os procedimentos exigidos pelos Comitês de Ética com foco biomédico, remontam ao consolidado discurso acadêmico das ciências duras que só reconhece como ciência o que possa ser quantificável. Nos Comitês de Ética se presentificam, sob a forma de normas, essa lógica hegemônica.

Darei três exemplos de dificuldades que tenho encontrado: (1) exigência de explicitar antecipadamente o número de participantes de determinada pesquisa, quando a preocupação deveria ser se o universo proposto é suficientemente abrangente (por exemplo, se serão ouvidos os diferentes atores que fazem parte da mesma questão estudada, em busca de um processo de “saturação” que se encaminhe para a iluminação do problema e também do contexto). Na insanidade que acompanha tal exigência há quem defina, de antemão, que se não houver 30 interlocutores, pelo menos, a pesquisa não terá representatividade. De onde saiu esse número mágico? Que critérios o baseiam? Não existe fundamentação teórica nem na antropologia e nem nas várias teorias da pesquisa social que os justifiquem. (2) Exigência de assinatura individual para grupos ou pessoas que só dão seus depoimentos se isso não implicar nenhuma assinatura em papel, como são os casos que envolvem situações de transgressão. (3) Exigência de assinatura para processos de observação participante, quando o que se deseja conseguir é a espontaneidade da comunicação, que visa a fazer uma triangulação com as entrevistas, grupos focais, ou, em muitos casos, confrontar a teoria e a prática dos discursos oficiais.

Eu poderia continuar exemplificando, mas gostaria de reiterar que as dificuldades de convivência entre o modelo biomédico, uma proposta que contemple e normas adequadas para as CSH fazem parte da incompreensão e da desvalorização da natureza desse campo científico por parte das ciências biomédicas.

3. ICZG e MLMB: Uma questão sempre presente é a insatisfação dos pesquisadores das CHS por terem que seguir as resoluções até aqui vigentes que, além de orientadas pelo modelo biomédico, são aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Embora todos reconheçam a importância do CNS, eles questionam a legitimidade da área da saúde para normatizar a ética em pesquisa para todas as áreas do conhecimento. Indagase, por exemplo, por que um pesquisador que estuda religião deve seguir essas normas?

MCSM: De certa forma, já respondi a esta pergunta e concordo plenamente que a área de saúde não tem o direito de impor sua visão a outros campos de conhecimento. Por isso, considero que foi um passo muito importante dado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), por meio da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), a criação de um grupo de trabalho para discussão das questões trazidas pelas CHS, reunindo antropólogos, sociólogos, psicólogos, historiadores, pedagogos, assistentes sociais, estudiosos de direito e outros, todos apoiados e amparados por suas respectivas Associações Científicas. Julgo muito importante essa participação conjunta, pois as Ciências Sociais e Saúde não são uma disciplina específica, elas praticam uma leitura do fenômeno saúde/doença sob a ótica das CHS e ao mesmo tempo se referenciam nas ciências da saúde, como num híbrido interdisciplinar.

Já as CHS, em sentido estrito, constituem o campo gerador tanto da filosofia como da ética das diversas disciplinas. No entanto, conjunturalmente, foi o setor saúde quem fez a convocação para se pensar um protocolo adequado à ética da pesquisa social e humana. Poderia ter sido outra área que, talvez, não tenha se sentido autorizada a realizar essa chamada. Considero, porém, que quem convoca não pode se sentir como outorgante do direito de pensar, formular e normatizar e, eventualmente, censurar o que outro campo de conhecimento, em estrita observação de seus princípios básicos, estabeleceu.

4. ICZG e MLMB: Seria mais pertinente se o CNS normatizasse somente pesquisas em CHS na saúde? Quais seriam as vantagens e desvantagens dessa opção?

MCSM: Acho que a opção de o CNS normatizar apenas as CHS em Saúde resolveria o problema internamente para quem trabalha no setor e sofre com incompreensões e disputas com a área biomédica, sempre tentando aplicar sua lógica de forma homogênea a todo o campo das ciências da vida. Mas, essa seria uma solução contingente, pois como já me referi acima, as Ciências Humanas e Sociais em Saúde não constituem um campo em si. Elas fazem parte da lógica mais ampla das CHS, nas quais fundamentam tanto seus princípios filosóficos como éticos. Por isso, a solução ideal seria construir um código comum em que todas as disciplinas das CHS encontrassem resposta para sua linguagem, método e necessidades, inclusive para as Ciências Humanas e Sociais em Saúde.

5. ICZG e MLMB: A elaboração de resolução para CHS no âmbito do CNS confere características singulares a esse processo. Representantes do campo do Direito, integrantes do nosso GT, advertem que nos pontos em que a resolução específica para CHS for omissa valerá a Resolução 466/12. Como a Resolução 466/12 é visivelmente voltada para a área biomédica e assume uma concepção positivista de ciência, o GT optou por elaborar a minuta comparando cada item com a Resolução 466/12, para que não houvesse omissões. Isso resultou num texto longo, e difícil de ser adequado à toda diversidade paradigmática e teóricometodológica das CHS. Se não fosse isso, poderíamos ter considerado a possibilidade de elaborar princípios gerais amplos, sem esse nível de detalhamento. Gostaríamos de ouvir seus comentários sobre isso.

MCSM: Eu acho que a dificuldade de interlocução chegou ao ponto de se tornar uma arena de disputa política em que as CHS buscam espaço num campo dominado pela lógica biomédica. Do meu ponto de vista, esmiuçar demais as questões só faz criar casuística e dificultar os procedimentos de cada área em particular. No entanto, dada a conjuntura, o exercício comparativo pode ser um passo para mostrar a impropriedade do domínio de um campo sobre o outro. Considerando essa hegemonia a que vocês se referem e que a atribuição do CNS é específica ao campo da Saúde, seria mais adequado que a elaboração das diretrizes para pesquisas em CHS, bem como o gerenciamento dos Comitês de Ética em Pesquisa, fossem feitos por outra instância, que incluísse todas as áreas do conhecimento, como por exemplo, o CNPQ/MCTI. Mas esta última proposta é apenas uma opinião que, creio, não terá nenhuma transcendência no momento atual.

6. ICZG e MLMB: Um dos pontos de dissenso entre a CONEP e o nosso GT se refere à manutenção do grupo de trabalho, de modo a acompanhar a efetiva aplicação da resolução nos processos de revisão. Isso porque entendemos que a garantia no discurso, ainda que fundamental, não assegura a consolidação dos processos, sobretudo, quando envolve criação de uma nova cultura, como parece ser o caso. Quanto a isso, há que garantir, ainda, uma composição paritária, ou pelo menos equitativa, entre pesquisadores dos distintos enfoques. Como você vê esse aspecto especifico?

MCSM: Concordo plenamente que é preciso, pelo menos temporariamente, que o grupo de trabalho das CHS acompanhe a aplicação das normas específicas estabelecidas para as pesquisas da área. Como falei em resposta à primeira pergunta, foi na prática que começamos a ver a inadequação das regras estabelecidas pela Resolução 196/96 para as Ciências Humanas e Sociais em Saúde. Na vigilância sobre o que é prescrito e a prática, se corrigem rumos e se melhoram as formulações. Não existem normas inquebrantáveis e nem que possam se aplicar por si mesmas. Quanto à composição da CONEP, considero absolutamente justa a presença equitativa de representantes da CSH.

7. ICZG e MLMB: Para além dos aspectos selecionados nas questões que lhe dirigimos, o que você gostaria de acrescentar, em relação ao complexo processo em curso?

MCSM: Gostaria de lembrar, – embora acredite que para a maioria dos leitores desta revista seja óbvio – o que tenho escrito nos artigos publicados junto com você, Iara. A ética não é algo que se injete num projeto para que seja aprovado e nem se confunde com procedimentos. Ela deve ser parte intrínseca do comportamento de um pesquisador desde a definição de seu objeto de estudo até a publicação dos resultados. Portanto, ainda que um Comitê só possa agir a partir das informações que tem, o compromisso do pesquisador vai além da conformação técnica de sua investigação: ele precisa contemplar o sentido e a significância de sua investigação para a sociedade e, em especial, para o grupo que ele estuda em intersubjetividade; as justas e corretas relações com os financiadores; e a forma de tratar e qualificar sua equipe – os estudantes nela incluídos – por exemplo, dando crédito a todos os que participam do trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2015
  • Aceito
    10 Jul 2015
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