Resumo
O presente estudo buscou, a partir do referencial teórico metodológico da pesquisa qualitativa, investigar a percepção, sobre a leishmaniose visceral (LV), de atores sociais diretamente envolvidos com a prevenção e controle da doença. A partir da realização de 38 entrevistas semiestruturadas com moradores e grupo focal com 18 agentes de saúde, de município endêmico para LV, foram coletados depoimentos que, tratados pela Análise de Conteúdo, evidenciaram lacunas, desafios e perspectivas do controle e prevenção da doença. A população associava a LV ao cão, reconhecia sua corresponsabilidade no enfrentamento da doença e demandava informação. Os agentes de saúde identificavam o saneamento ambiental como fator imprescindível para prevenção da LV. Entre as lacunas observamos fragilidade nas informações sobre a doença e culpabilização do indivíduo pela não adesão a medidas, sobretudo, de manejo ambiental. Provavelmente, abordagens que destaquem o papel do ambiente como promotor de saúde, em detrimento da prescrição pontual de medidas ambientais específicas contra LV, constitui perspectiva de superação dessas lacunas. Entendemos que o principal desafio para o fortalecimento da prevenção e controle seja a construção participativa e dialógica dessas abordagens entre profissionais de saúde e população.
Leishmaniose visceral; Prevenção e controle
Introdução
A leishmaniose visceral (LV), caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como doença negligenciada, constitui grande problema de saúde pública no Brasil, onde estão concentrados 70% de todos os casos registrados na América do Sul11. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet 2011; 377(9780):1877-1889.. A doença encontra-se amplamente difundida no país, com casos registrados nas cinco regiões brasileiras e 21 Unidades Federadas22. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Glossário de doenças. [acessado 2014 maio 21]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br
http://portal.saude.gov.br... .
No período entre 1990 e 2012, a taxa de incidência média no país foi igual a 1,8 casos/100.000 habitantes (desvio padrão igual a 0,4)33. Departamento de Informática do SUS (DATASUS). [homepage na internet]. Sala de apoio à gestão estratégica [acessado 2014 jul 09]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=04
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index... . Apesar de se verificar estabilização na ocorrência de casos a partir de 2004, com redução na Região Nordeste, tradicionalmente mais afetada, a LV vem ampliando sua área de ocorrência para as Regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste. Especificamente em Minas Gerais, a taxa de incidência média no período 1990-2001 foi igual a 0,8 caso/100.000 habitantes (desvio padrão igual a 0,3); já para o período 2001-2012, esse indicador passou para 2,3 casos/100.000 habitantes (desvio padrão igual a 0,5)44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Saúde Brasil 2009: uma análise da situação de saúde e da agenda nacional e internacional de prioridades em saúde. Brasília: MS; 2010..
No Brasil, o controle da LV está centrado no diagnóstico e tratamento precoces, redução da população de vetores e eutanásia de cães com diagnóstico sorológico e/ou parasitológico positivo55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília: MS; 2006.. A opção por tais estratégias se fundamenta no fato da ecologia e epidemiologia da doença ser bastante complexa, com o vetor apresentando elevada capacidade de adaptação a diferentes ambientes, inclusive o urbano, possibilitando a reativação constante do ciclo de transmissão66. Costa PL, Dantas Torre F, Silva FJ, Guimarães VC, Gaudêncio K, Brandão Filho SP. Ecology of Lutzomyia longipalpis in an area of visceral leishmaniasis transmission in north-eastern Brazil. Acta Trop 2013; 126(2):99-102.
7. Silva JP, Werneck GL, Macedo EC, Carvalho H, Pires, Cruz MS. Factors associated with Leishmania chagasi infection in domestic dogs from Teresina, State of Piauí, Brazil. Rev. Soc. Bras. Med. Trop 2012; 45(4):480-484.
8. Rangel EF, Vilela ML. Lutzomyia longipalpis (Diptera, Psychodidae, Phlebotominae) and urbanization of visceral leishmaniasis in Brazil. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2948-2952.-99. Barata RA, França-Silva JC, Mayrink W, Silva JC, Prta A, Lorosa ES, Fiúza JA, Gonçalves CM, Paula K, Dias ES. Aspectos da ecologia e do comportamento de flebotomíneos em área endêmica de leishmaniose visceral, Minas Gerais. Rev. Soc. Bras. Med. Trop 2005; 38(5):421-425.. Na área urbana, tal aspecto é potencializado pela presença do reservatório canino, seja pela manutenção prolongada do estado infeccioso, independente de sintomatologia clínica, ou pela reposição rápida após eutanásia1010. World Health Organization (WHO). Control of the leishmaniases. Geneva: WHO; 2010.,1111. Oliveira CDL, Morais MHF, Machado-Coelho GLL. Visceral leishmaniasis in large Brazilian cities: challenges for control. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2953-2958..
Essa multiplicidade de fatores ecológicos e epidemiológicos, associada à ocupação urbana desordenada e a outros subjacentes a esse processo, tais como, condições insalubres de moradia e saneamento básico e dificuldades no acesso e na organização dos serviços de saúde, contribuem para a conformação de cenários heterogêneos de transmissão da LV1212. Werneck GL. Forum: geographic spread and urbanization of visceral leishmaniasis in Brazil. Introduction. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2937-2940.,1313. Sabroza PC, Kawa H, Campos WSQ. Doenças transmissíveis: ainda um desafio. In: Minayo MCS, organizadora. Os muitos brasis: saúde e população na década de 80. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995. p. 177-244.. Além disso, com o processo de municipalização do Sistema Único de Saúde brasileiro, a gestão e a operacionalização das ações de controle e vigilância da LV passam a ser responsabilidade dos municípios, impondo a adequação das atividades de prevenção e controle à realidade local, constituindo desafio para os serviços de saúde do país.
Avançar na compreensão da doença, para além de características clínicas e epidemiológicas, contemplando a percepção de atores sociais diretamente envolvidos com a prevenção e o controle pode contribuir para a efetividade dessas ações. Esse caminho é apontado por autores como Lasker e Weiss1414. Lasker RD, Weiss ES. Broadening participation in community problem solving: a multidisciplinary model to support collaborative practice and research. J Urban Health 2003; 80(1):14-47. e Israel et al.1515. Israel BA, Checkoway B, Schulz A, Zimmerman M. Health education and community empowerment: conceptualizing and measuring perceptions of individual, organizational, and community control. Health Educ Q 1994; 21(2):149-170. que defendem a participação da população na resolução de problemas coletivos e não apenas sua inclusão como objeto de preocupação, fonte de dados ou alvo dos esforços para solução dos problemas. Abordagens como essas, participativas e dialógicas, encontram respaldo teórico já consolidado, sobretudo no campo da educação em saúde a partir da perspectiva freiriana1616. Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.,1717. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996..
A OMS, no relatório da última reunião de peritos sobre LV realizada em 2010, coaduna com essa perspectiva, destacando que a mobilização social no sentido de mudar comportamentos da população requer estratégias eficazes de comunicação, destacando o diálogo permanente entre população e profissionais de saúde1010. World Health Organization (WHO). Control of the leishmaniases. Geneva: WHO; 2010..
Essa premissa norteou o desenvolvimento do presente estudo, cujo objetivo foi compreender a percepção de agentes de saúde e população sobre as ações de prevenção e controle da LV, procurando identificar lacunas, desafios e perspectivas.
Metodologia
O estudo foi desenvolvido, entre 2011 e 2014, em um município da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) classificado, segundo critérios do Ministério da Saúde, como de transmissão intensa para LV, ou seja, apresentou média de casos, nos últimos cinco anos, maior ou igual a 4,455. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília: MS; 2006.. De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde, foram registrados no município, entre 2000 e 2010, 137 casos humanos de LV.
Com população de 637.961 habitantes1818. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). [homepage na internet]. Censo demográfico 2010 [acessado 2014 mar 17]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br
http://www.ibge.gov.br... , o sistema de saúde municipal é organizado em sete regionais administrativas. O município contava, à época do estudo, com 446 agentes comunitários de saúde (ACS) responsáveis pela cobertura de 40% da população33. Departamento de Informática do SUS (DATASUS). [homepage na internet]. Sala de apoio à gestão estratégica [acessado 2014 jul 09]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=04
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Foram definidas duas regionais como cenário do presente estudo, denominadas A e B. A inclusão dessas duas regionais teve o intuito de contemplar contextos heterogêneos no que dizem respeito ao número de casos humanos registrados entre 2000 e 2010, a Regional A notificou 10 casos no período e a B, 37 casos.
O estudo foi dividido em duas etapas e, em ambas, os procedimentos teórico metodológicos foram norteados pelos pressupostos da Pesquisa Qualitativa que se volta para os significados e a intencionalidade das ações nos contextos das estruturas sociais1919. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010.. Na primeira etapa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com moradores das duas regionais e na segunda foram conduzidos grupos focais com profissionais de saúde.
Em cada regional foram incluídos os bairros com maior número de casos humanos de LV notificados entre 2000 e 2010. O sorteio de domicílios foi utilizado no recrutamento dos participantes cujo total foi definido pelo critério de saturação teórica1919. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010.,2020. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.. Dessa forma, a partir da constatação de que a inclusão de novos indivíduos não forneceria elementos adicionais para balizar ou aprofundar a teorização, a coleta de informações foi encerrada. As entrevistas, realizadas no domicílio, abordaram as percepções sobre a LV, sua prevenção e controle.
Os resultados obtidos com a análise das entrevistas nortearam a elaboração do roteiro do grupo focal. Nesse sentido, a categoria espaço/ambiente foi incluída na reflexão realizada nos grupos focais, envolvendo, mais especificamente, a relação entre ambiente e ocorrência/prevenção/controle da LV. Foram realizados dois grupos focais, um com ACS e outro com agentes de combate a endemias (ACE), ambos de uma Unidade Básica, localizada na Regional B, onde foi notificado o maior número de casos humanos entre 2000 e 2010. A coordenação da Atenção Primária do município indicou essa Unidade Básica por entender que os profissionais de saúde teriam maior disponibilidade e interesse em integrar os grupos focais, cuja participação foi inteiramente voluntária.
Todos os depoimentos coletados foram integralmente transcritos e tratados pela Análise de Conteúdo2121. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010., a partir de duas categorias operacionais: prevenção e controle da LV, de forma a compreender as percepções de atores sociais envolvidos, quais sejam população e agentes de saúde, com essas ações em seu cotidiano de vida e de trabalho.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Pesquisas René Rachou. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Entrevistas com moradores das regionais
Foram realizadas, na Regional A, 24 entrevistas, sendo entrevistados 22 (91,7%) mulheres e dois (8,3%) homens, com idade média igual a 45,6 anos (variando de 22 a 85) e alfabetizados (95,8%). A renda familiar média dos 17 (85%) entrevistados que responderam essa questão foi equivalente a 5,1 salários mínimos.
Na Regional B, caracterizada pelo maior número de notificações de casos humanos de LV, foram realizadas 13 entrevistas. Participaram do estudo 10 (76,9%) mulheres e três (23,1%) homens, com idade média igual a 47,9 anos (variando de 29 a 74 anos) e alfabetizados (100%). A renda familiar média dos seis (46,1%) entrevistados que responderam essa questão foi equivalente a 4,5 salários mínimos.
Em ambas as regionais, o tempo médio de moradia no domicílio foi de 17 anos, demonstrando a inserção já consolidada dos entrevistados nas localidades.
Percepções dos entrevistados sobre prevenção e controle da LV
De maneira geral, a análise evidenciou dúvidas dos moradores entrevistados sobre práticas de prevenção, controle, transmissão, sinais e sintomas da LV. Por exemplo, identificamos a percepção da LV como doença associada ao cão, imputando ao mesmo a responsabilidade, muitas vezes única, pela transmissão, seja pelo contato direto, através da mordedura, seja pelo contato indireto com secreções, urina e fezes: Ah eu acredito assim... se o animal infectado morde a gente... talvez pode transmitir.
A limpeza e a higiene foram, recorrentemente, citadas pelos entrevistados como medida de prevenção da leishmaniose: ...eu acho que mais é limpeza né. Tem que fazer uma limpeza, higiene né (Regional B). Ainda, entre os entrevistados que assinalaram o papel do vetor no ciclo de transmissão da LV, foi possível identificar a associação com o da dengue e, por conseguinte, com as medidas destinadas ao controle e prevenção dessa doença: É, é... não acumular água, né? Como o pessoal já faz na campanha da dengue. Manter as vasilhinhas limpas... penso que sim (Regional A).
A experiência anterior com a LV, seja pelo adoecimento de pessoas próximas, o que foi mais raro, ou pelo acometimento de cães próprios ou de vizinhos, situação mais comum, estimulou a condução de entrevistas com maior duração e mais ricas em detalhamentos das situações vivenciadas e até de questionamentos. A esse respeito, mencionamos o surgimento de demandas em várias entrevistas, em relação à solução de problemas vivenciados no cotidiano dos entrevistados, tais como roedores nos domicílios, cães errantes nas ruas, poda de árvores, entre outros: [...] todo bairro que você chega tem um monte de cachorro na rua [...] eu não sei quem é o responsável, se é a prefeitura, se é o ministério público, o ministério da saúde, sei lá, enfim. Mas alguém tem que tomar uma providência a respeito disso (Regional A).
Grupo focal com profissionais de saúde
Participaram dessa etapa do estudo seis ACE, sendo cinco (83,3%) mulheres e um (16,7%) homem, com idade média igual a 36,8 anos (variando de 23 a 56 anos), todos com ensino médio completo e tempo médio de trabalho como ACE na região de estudo igual a 7 anos.
No grupo focal realizado com ACS, participaram 13 mulheres, com idade média igual a 29,6 anos (variando de 22 a 45 anos), todas com ensino médio completo e quatro (30,8%) cursando o ensino superior. O tempo médio de trabalho como ACS na região de estudo foi de 5,8 anos.
Percepções dos profissionais de saúde sobre prevenção e controle da LV
Assim como na análise das entrevistas com moradores das regionais, foi possível identificar dúvidas dos profissionais com relação à LV, bem como demandas por capacitações relacionadas ao tema.
No que diz respeito às ações de prevenção e controle, ficou clara a centralidade das ações do ACE no combate à dengue. Foi relatado pelos profissionais que as ações relacionadas à LV (coleta sanguínea e tratamento químico do ambiente) ficavam sob responsabilidade de quatro ACE: Pro cê vê que, em toda Regional B nós temos uma equipe com quatro pessoa que faz leishmaniose.
Os ACE demonstraram, de maneira geral, maior familiaridade com a LV e as medidas de prevenção e controle do que os ACS, o que era esperado, devido às diferentes atribuições desses profissionais.
Foi possível apreender, a partir da análise dos depoimentos, que ao ambiente foram atribuídos dois sentidos, aparentemente não relacionados, um próximo ou ‘ligado’ à natureza e, outro, relativo ao local de moradia/trabalho: A natureza... a casa da gente; espaço físico; o que, de certo modo, poderia contribuir para o entendimento de uma relação entre a população, suas condições de vida e o ambiente que os cerca. No entanto, houve, sobretudo entre os ACE, uma postura de responsabilização e culpabilização do indivíduo pela não adesão às ações de prevenção e controle prescritas. A rotulação da população de forma depreciativa por esses profissionais foi constante, corroborando com os resultados encontrados por Fraga2222. Fraga LS. Controle de zoonoses: estudo sobre práticas educativas voltadas ao manejo da população canina [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2012. ao analisar as práticas educativas realizadas no âmbito do serviço de controle de zoonoses de uma Regional de Saúde de Belo Horizonte/MG.
Entre os ACS foi possível identificar atitude mais compreensiva com a população, devido, provavelmente, ao contato e à identificação dos ACS com as condições de vida e, muitas vezes, de sofrimento da população. No entanto, a abordagem de doenças como a LV não é realizada, ao menos sistematicamente, por esses profissionais.
Discussão
Os resultados encontrados, evidenciando dúvidas dos moradores sobre aspectos relacionados aos componentes epidemiológicos da doença, ao controle e à prevenção, também foram identificados por Borges2323. Borges BKA. Fatores de risco para leishmaniose visceral em Belo Horizonte, Minas Gerais [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2006. em Belo Horizonte/MG; Luz et al.2424. Luz ZMP, Schall V, Rabello A. Evaluation of a pamphlet on visceral leishmaniasis as a tool for providing disease information to healthcare professionals and laypersons. Cad Saude Publica 2005; 21(2):606-621. na RMBH e Gama et al.2525. Gama MEA, Barbosa JS, Pires B, Cunha AKB, Freitas AR, Ribeiro IR. Avaliação do nível de conhecimento que populações residentes em áreas endêmicas têm sobre leishmaniose visceral, Estado do Maranhão, Brasil. Cad Saude Publica 1998; 14(2):381-390. no Maranhão. Especificamente, a percepção da transmissão da LV associada apenas ao cão pode interferir na compreensão e adoção pela população de medidas de prevenção relativas ao manejo ambiental, cujas intervenções buscam alterar as condições do meio, impedindo o estabelecimento de criadouros de formas imaturas do vetor55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília: MS; 2006.. Como destacam Alexander e Malori2626. Alexander B, Malori M. Control of phlebotomine sandflies. Med Vet Entomol 2003, 17(1):1-18., o tamanho pequeno, o vôo silencioso e o fato de não pairar no ar, dificultam o reconhecimento do vetor pela população, que, mesmo em áreas endêmicas, pode não estar ciente da presença de flebotomíneos e seu papel na epidemiologia da doença.
A utilização da dengue, pelos moradores entrevistados, como ponto de referência da informação sobre doenças de transmissão vetorial como a leishmaniose pode estar relacionada ao maior destaque dado àquela, a exemplo da concentração de atividades dos ACE em ações de combate à dengue, sendo essas intensas e visíveis, como a realização do ciclo de atividades a cada dois meses e de inspeções domiciliares para controle de focos, bem como do impacto dos indicadores de morbimortalidade da doença. Soma-se a esse contexto, a visibilidade da dengue na mídia, que, conforme discutido por Reis2727. Reis ACP. Barra do Corumbê – Paraty - RJ: Leishmaniose e representações sociais [monografia]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2004., gera uma “tempestade de informações” sobre a doença na mente da população.
A adaptação de vetores de patógenos ao meio urbano e ao ambiente domiciliar, é um aspecto que deve ser considerado. Em função da complexidade da transmissão, a organização dos territórios coloca-se como parte fundamental da prevenção e na qual o morador pode desempenhar atuação significativa com a participação dos profissionais de saúde. É importante que morador e profissionais de saúde se apropriem do ciclo da doença para pensarem em conjunto como atuar no território de forma mais efetiva e sustentável. A associação entre ambas as doenças (dengue e leishmaniose) e a referência a outros problemas vivenciados no cotidiano (cães errantes, roedores, poda de árvores) ilustram tanto a construção cultural da doença, agregando representações e práticas elaboradas/reelaboradas por indivíduos e coletividades durante sua história de vida2828. Jovchelovitch S. Contextos do saber - representações, comunidade e cultura. Petrópolis: Vozes; 2008.,2929. Gazzinelli MF, Gazzinelli A, Penna CMM. Educação em saúde: conhecimentos, representações sociais e experiências da doença. Cad Saude Publica 2005; 21(1):200-206., quanto a ocupação com questões possivelmente mais urgentes e pungentes vivenciadas pelas pessoas em seu cotidiano. Esse último aspecto, inclusive, evidencia a necessidade de se refletir sobre a adequação das práticas de saúde no que diz respeito à equivalência entre prioridades das equipes/profissionais com as da comunidade, fragilidade essa que vem sendo apontada na literatura3030. Oliveira MC, Casanova AO. Vigilância da saúde no espaço de práticas da atenção básica. Cien Saude Colet 2009; 14(3):929-936.. Especificamente no que diz respeito à LV, o documento elaborado na última reunião de especialistas da OMS tanto enfatiza a necessidade de que os objetivos de um programa de prevenção e controle devam estar claros e em consonância com as demandas cotidianas para que possam fazer sentido para população, quanto problematiza a pouca efetividade de programas de prevenção e controle destinados exclusivamente a uma única doença1010. World Health Organization (WHO). Control of the leishmaniases. Geneva: WHO; 2010..
Nesse sentido, medidas de manejo ambiental, como limpeza de quintais, eliminação correta de resíduos sólidos orgânicos e de fonte de umidade, não permanência de animais domésticos dentro de casa, entre outras, podem contribuir para evitar ou reduzir a proliferação do vetor não apenas da LV55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília: MS; 2006., mas também dos de outras doenças, como a dengue. Além disso, também contribuem para a prevenção e o controle de outros agravos de transmissão não vetorial, como a leptospirose, por exemplo.
A higiene do ambiente foi recorrentemente citada pelos entrevistados, provavelmente porque remete ao que é saudável e vivenciado no cotidiano, já que o binômio higiene e saúde é disseminado desde muito cedo na vida das pessoas, devemos escovar os dentes, lavar as mãos, dentre outros3131. Otranto D, Dantas Torres F. The prevention of canine leishmaniasis and its impact on public health. Trends in Parasitology 2013; 29(7):339-345.. A percepção da higiene, não apenas pessoal, mas do ambiente, enquanto medida de prevenção de doenças foi identificada em estudo conduzido por Roma et al.3232. Roma I, Silva JA, Magolbo NG, Aquino RF, Marin MJS, Moravcik MYAD. Analisando a percepção de uma população sobre higiene a partir de um jogo educativo. Rev Pesq Saúde 2011; 12(1):41-46., em região periférica de Marília (SP).
Ainda que o impacto de medidas de higiene sobre a incidência da LV em humanos e cães não tenha sido demonstrado cientificamente, a eliminação de micro habitats favoráveis ao desenvolvimento do vetor (como fendas e rachaduras nas paredes, solo úmido e áreas sombreadas) tem sido considerada um dos poucos exemplos de medida eficaz no combate aos flebotomíneos e que não envolve o uso de inseticidas2626. Alexander B, Malori M. Control of phlebotomine sandflies. Med Vet Entomol 2003, 17(1):1-18.,3131. Otranto D, Dantas Torres F. The prevention of canine leishmaniasis and its impact on public health. Trends in Parasitology 2013; 29(7):339-345..
Para além das dúvidas relativas a aspectos epidemiológicos e de controle/prevenção da LV, as falas, tanto dos moradores quanto dos profissionais de saúde, apontam a complexidade dos problemas ambientais existentes nas áreas urbanas e a necessidade de se ‘encontrar um culpado’ para responsabilização pelas mazelas vivenciadas no cotidiano, além de ‘um responsável por suas resoluções’.
Para compreender e lidar com essa complexidade nos parece significativo partir do conceito de espaço de Milton Santos, definido como “[...] o conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados e de sistemas de ações, deliberadas ou não”3333. Santos M. Os espaços da globalização. In: Santos M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 48-58.. Nesse sentido, o meio ambiente construído é histórico, temporal e mediado pela técnica, diferenciando-se pela carga maior ou menor de ciência, tecnologia e informação, sendo essas diferenças uma forma de resistência das cidades a essa própria racionalidade e, ao mesmo tempo, um retrato da diversidade das classes sociais, das diferenças de renda e dos modelos culturais. Além disso, o meio ambiente construído constitui um patrimônio que não se pode desconsiderar e que, na medida em que é remodelado e transformado, condiciona as ações que sobre ele serão exercidas3333. Santos M. Os espaços da globalização. In: Santos M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 48-58.. Assim, indivíduo e sociedade são coparticipes na construção histórica do espaço e herdeiros não apenas do espaço construído, mas também, e mais importante, dos diferentes problemas e consequências advindos da apropriação do espaço e que se materializam, por exemplo, em determinantes de adoecimento e óbito.
A postura de responsabilização e culpabilização do indivíduo (morador) pela não adesão às ações de prevenção e controle prescritas podem ser analisadas considerando o processo de incorporação de um saber técnico científico, inerente à formação do profissional, que, como discutem Fraga2222. Fraga LS. Controle de zoonoses: estudo sobre práticas educativas voltadas ao manejo da população canina [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2012. e Oliveira3434. Oliveira MVAS. A educação popular em saúde e a prática dos agentes de controle das endemias de Camaragibe: uma ciranda que acaba de começar [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2002., leva à desconstrução da identidade comunitária dos ACS e ACE e à construção de outra que incorpora subjetividades, que, conforme Rocha et al.3535. Rocha NHN, Barletto M, Bevilacqua PD. Identidade da agente comunitária de saúde: tecendo racionalidades emergentes. Interface (Botucatu) 2013; 17(47):847-857., (re)afirmam “relações não igualitárias no âmbito capilarizado das relações cotidianas”, legitimando uma prática profissional, em certa medida, fiscalizadora. Essa desconstrução e distanciamento da identidade comunitária, se por um lado possibilita “olhar” o ambiente de forma investigativa para identificação de situações de risco, pode por outro lado, respaldar posturas prescritivas e punitivas por parte desses profissionais.
A postura mencionada também pode ser pensada a partir do paradigma do risco, que, a partir da década dos 70 passa a constituir o principal referencial teórico explicativo (e preditor) da ocorrência de eventos indesejáveis em populações, como o adoecer e o morrer, criando-se, inclusive técnicas refinadas de análise do risco. Numa perspectiva antropológica, Mary Douglas3636. Douglas M. Risk and blame. In: Douglas M. Risk and blame. Essays in cultural theory. London: Routledge; 1996. p. 3-21. problematiza a abordagem purista adotada nas análises contemporâneas sobre percepção do risco que parte do pressuposto de que este é uma escolha individual e racional, não considerando a influência de fatores sociais, de intersubjetividade ou de construção de consenso nas decisões dos indivíduos. Essa pretensa objetividade é incorporada e constrói uma ‘linguagem do risco’ que pretende ser puramente científica. Assim, a linguagem científica transfere para o indivíduo a responsabilidade pela tomada de decisão sobre exposição a perigos, eliminando a necessidade de consenso. Além disso, Douglas3636. Douglas M. Risk and blame. In: Douglas M. Risk and blame. Essays in cultural theory. London: Routledge; 1996. p. 3-21.,3737. Douglas M. Impureza ritual. In: Douglas M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva; 1976. p. 19-42. assinala que a objetividade que se pretende dar à percepção de perigo na contemporaneidade exclui a possibilidade de compreendê-la como parte do processo de representação sobre a culpa, que colabora para a manutenção da ordem ideal da sociedade, na medida em que perigos ameaçam os transgressores. Para essa autora, os sistemas culturais de construção da culpa em uma sociedade organizam como e quais informações serão utilizadas no processo cognitivo de percepção de perigo3636. Douglas M. Risk and blame. In: Douglas M. Risk and blame. Essays in cultural theory. London: Routledge; 1996. p. 3-21.. Nesse sentido, novas informações para serem aceitas como verdadeiras devem ser leais à organização política particular do indivíduo/grupo, o resto será considerado suspeito, deliberadamente censurado ou inconscientemente ignorado3636. Douglas M. Risk and blame. In: Douglas M. Risk and blame. Essays in cultural theory. London: Routledge; 1996. p. 3-21..
Considerando, então, a percepção de perigo como resultado de um processo cognitivo em que culpa e expiação estão presentes, e que elementos culturais orientam as escolhas, o reconhecimento de espaços insalubres pode não seguir unicamente uma ordenação higiênica típica do saber médico. Assim, a culpabilização dos moradores por não seguirem as prescrições que organizam e ordenam os espaços de forma a torná-los salubres não é só normativa, mas perversa, já que mais comumente e poderosamente se dá, considerando a atuação da atenção básica, em áreas de periferia, onde se assentam populações herdeiras de ambientes construídos de forma insalubre. Transfere-se, assim, para o indivíduo responsabilidades sobre determinantes do adoecimento/óbito, oferecendo objetividade, o discurso científico, para a tomada de decisão sobre qual(is) risco(s) correr e pela transformação do espaço, esvaziando-se os eventos da historicidade necessária para a sua compreensão e transformação.
A abordagem sobre o ambiente enquanto espaço historicamente construído e promotor de saúde, na prevenção e controle da LV, assim como de outras doenças endêmicas que demandam intervenções ambientais, em detrimento da prescrição de ações específicas para uma ou várias doenças, pode contribuir para que a população reconheça “seus problemas” em aspectos tratados pelas medidas de prevenção e controle propostas, o que eventualmente contribui para que as ações passem a “fazer sentido”. Tal “olhar” encontra respaldo nos preceitos da promoção da saúde que abarca uma concepção ampla do processo saúde doença e de seus determinantes e propõe a articulação de saberes técnicos e populares aliada à mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados para seu enfrentamento e resolução3838. Buss PM. Uma Introdução ao Conceito de Promoção da Saúde. In:Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 15-38..
O grande desafio que se impõe é a operacionalização desses conceitos no cotidiano de trabalho e de vida das pessoas. Nesse sentido, a reorganização do processo de trabalho a partir dos princípios norteadores da vigilância da saúde, território e problemas e práticas de saúde parece se constituir em real possibilidade para tal superação. Adotar a territorialidade como fio condutor das práticas de saúde permite acessar uma noção ampliada de ambiente, enquanto espaço geográfico e também social e político e contribuir para a atuação planejada e equânime sobre problemas e necessidades de saúde3030. Oliveira MC, Casanova AO. Vigilância da saúde no espaço de práticas da atenção básica. Cien Saude Colet 2009; 14(3):929-936..
Considerações finais
A prerrogativa da pesquisa qualitativa, de “construção de novas abordagens, revisão e recriação de novos conceitos e categorias durante a investigação”1919. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010. foi enriquecedora e permitiu agregar ao estudo a discussão sobre o ambiente e a urgência do olhar ampliado sobre o mesmo.
Algumas limitações devem ser consideradas, como por exemplo, o fato de terem sido incluídos no estudo profissionais de saúde pertencentes a apenas uma UBS. A inclusão de outros profissionais, que vivenciam realidades diferentes, ainda que no mesmo município, enriqueceria o entendimento sobre a realidade local.
A análise dos depoimentos permitiu identificar dúvidas tanto da população quanto dos profissionais de saúde sobre a LV, bem como a culpabilização do indivíduo pela não adesão a medidas, sobretudo, de manejo ambiental, constituindo lacunas no que diz respeito à prevenção e controle da LV nas regiões estudadas. Conforme discutido no texto do artigo, abordagens que destaquem o papel do ambiente como promotor de saúde, em detrimento da prescrição pontual de medidas ambientais específicas contra LV, constituem perspectivas de superação das lacunas encontradas. O desafio que se impõe é a construção participativa e dialógica dessas abordagens, incluindo profissionais de saúde e população.
Agradecimentos
As autoras agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo fomento à pesquisa. A todos os indivíduos que participaram do projeto. À Secretaria Municipal de Saúde de Contagem pelo apoio à pesquisa. À Juliana L. C. Santos pelo apoio operacional na realização dos grupos focais com os agentes de saúde.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Fev 2016
Histórico
- Recebido
02 Mar 2015 - Revisado
26 Jun 2015 - Aceito
28 Jun 2015