Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos

Neide Emy Kurokawa e Silva Leyla Gomes Sancho Wagner dos Santos Figueiredo Sobre os autores

Resumo

Trata-se de ensaio que discute possibilidades de conexões conceituais e práticas entre as noções de linha do cuidado e de itinerários terapêuticos, a partir dos aportes teóricos que embasam a Linha do Cuidado Integral em Saúde e das abordagens hermenêuticas sobre o Cuidado. Vislumbra-se a implementação de linhas do cuidado afinadas com as necessidades de saúde – individuais e coletivas – a partir da construção de projetos terapêuticos, na medida em que privilegiam as particularidades de cada situação na pactuação de fluxos de consultas, exames e demais procedimentos. O projeto terapêutico, tomado como arranjo, estratégia, dispositivo ou dimensão basilar do Cuidado no processo de trabalho em saúde, pode ser concebido como imagem que desenha uma possibilidade de futuro, este, por sua vez, uma projeção condicionada por experiências prévias – de saúde, de doença, de vida. Da crítica aos modelos explicativos, pregnantes nos estudos sobre itinerários terapêuticos, defende-se o investimento em abordagens que privilegiam a interpretação e a compreensão, capazes de recuperar, contextualizar e reconstruir as trajetórias, a partir dos sujeitos implicados no processo do cuidado.

Saúde; Linha do cuidado; Itinerários terapêuticos; Projetos terapêuticos

Introdução

O objetivo do presente ensaio é apresentar e discutir possíveis conexões conceituais e práticas entre linha do cuidado e itinerários terapêuticos, problematizando a ênfase das abordagens explicativas que se expressam na relação instrumental entre o conhecimento dos itinerários terapêuticos e a sua aplicação prática.

As reflexões, aqui expressas, visam subsidiar um estudo em desenvolvimento, intitulado “Estudo sobre acesso de homens a diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis”, financiado pelo CNPQ Universal 14/2012. Proc. 476020/2012-3, e constituem esforço no sentido de aprofundar o conhecimento acerca dos construtos – linha do cuidado e itinerários terapêuticos –, explorando-os sob o eixo da integralidade e do cuidado11. Cecilio LCO, Merhy EE. A integralidade do cuidado como eixo da gestão hospitalar. In: Pinheiro R, Mattos RA. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS Abrasco; 2003. p. 133-126.

2. Franco TB, Magalhães Junior JM. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. In: Merhy EE. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 125-134.

3. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde soc 2004; 13(3):16-29.
-44. Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu) 2004; 14(8):73-92..

Observa-se que tanto os conceitos de linha do cuidado quanto de itinerário terapêutico têm sido explorados sob diferentes perspectivas, o mais das vezes de modo fragmentado, circunscrito à descrição de percursos ou fluxos, de busca e/ou oferta de atenção à saúde, seja pelo sistema formal, da rede de serviços de saúde, seja pelo sistema informal, envolvendo outras referências, como autocuidado, cuidados caseiros e práticas religiosas.

Parte-se do pressuposto de que, não obstante a existência de fluxos programáticos visando orientar o percurso dos cidadãos pelo sistema de saúde, esses nem sempre correspondem àquele percorrido ou almejado pelas pessoas, resultando em peregrinações malsucedidas por diferentes serviços de saúde. Do ponto de vista legal e normativo, conta-se com instrumentos, como o Decreto 7.508/201155. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun., que prevê o estabelecimento de Redes de Atenção à Saúde (RAS), além de preconizar o Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica, cuja finalidade é estabelecer critérios para o diagnóstico, tratamento e demais produtos e procedimentos, a serem seguidos pelos gestores do Sistema Único de Saúde – SUS.

Alguns documentos normativos aproximam-se do disposto no referido decreto, a partir da proposição de linhas de cuidado específicas, abrangendo doenças ou ciclos de vida (câncer de mama66. Instituto Nacional de Câncer (INCA). Coordenação de Prevenção e Vigilância. Parâmetros técnicos para programação de ações de detecção precoce do câncer da mama: recomendações para gestores estaduais e municipais. Rio de Janeiro: INCA; 2006., hipertensão arterial e diabetes77. Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Linhas de cuidado: hipertensão arterial e diabetes. Brasília: OPAS; 2010., gestante e puérpera88. São Paulo. Secretaria Estadual de Saúde (SES). Coordenadoria de Planejamento em Saúde. Assessoria Técnica em Saúde da Mulher. Atenção à gestante e à puérpera no SUS – SP: manual de orientação ao gestor para implantação da linha de cuidado da gestante e da puérpera. São Paulo: SES/SP; 2010), geralmente concebidos por órgãos governamentais. No caso das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), os principais documentos que sugerem linhas de cuidado são o Manual para Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis99. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Manual de controle das doenças sexualmente transmissíveis. 4ª ed. Brasília: MS; 2006. e as Diretrizes para o Controle da Sífilis Congênita1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST/AIDS. Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso. 2ª ed. Brasília: MS; 2006.. A maior parte dessas propostas de linhas de cuidado destaca os fluxos visando organizar a rede de serviços e os procedimentos (consultas, exames, internações), majoritariamente com ênfase na gestão da atenção à saúde e/ou nos protocolos clínicos para as DST mais comuns.

A apreensão de linha do cuidado como mero fluxo, que instrumentaliza a gestão e permite o estabelecimento de protocolos clínicos, pode ser ampliada e reconfigurada a partir da proposição da Linha do Cuidado Integral em Saúde1111. Franco CM, Santos AS, Salgado MF. Manual do gerente: desafios da média gerência na saúde. In: Pessoa LR, Santos EHA, Torres KBRO, organizadores. Manual do gerente: desafios da média gerência na saúde. Rio de Janeiro: ENSP; 2011.

12. Franco CM, Franco TB. Linhas do Cuidado Integral: Uma proposta de organização da rede de saúde. In: Secretaria de Estado de Saúde do RS. [Página na Internet]. [acessado 2015 maio 05]. Disponível em: http://www.saude.rs.gov.br/upload/1337000728_Linha%20cuidado%20integral%20conceito%20como%20fazer.pdf
http://www.saude.rs.gov.br/upload/133700...
-1313. Malta DC, Merhy EE. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface (Botucatu) 2010; 34(14):593-606., que é a “imagem pensada para expressar os fluxos assistenciais seguros e garantidos ao usuário, no sentido de atender às suas necessidades de saúde”1111. Franco CM, Santos AS, Salgado MF. Manual do gerente: desafios da média gerência na saúde. In: Pessoa LR, Santos EHA, Torres KBRO, organizadores. Manual do gerente: desafios da média gerência na saúde. Rio de Janeiro: ENSP; 2011.. Além de orientar o percurso dos usuários pelo sistema, e dentro dos próprios serviços de saúde, a Linha do Cuidado Integral em Saúde inclui as relações oriundas desse percurso.

Afinando-se com os trabalhos de Malta e Merhy1313. Malta DC, Merhy EE. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface (Botucatu) 2010; 34(14):593-606., Merhy e Franco1414. Merhy EE, Franco TB. Por uma composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves e no campo relacional. Saude em debate 2003; 27(65):316-323. e Merhy1515. Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas. Interface (Botucatu) 2000; 4(6):109-116., tal formulação destaca a importância da dimensão micropolítica e relacional do trabalho em saúde, a partir da construção de linhas do cuidado organizadas sob o eixo da integralidade na assistência à saúde.

Embora a tônica possa recair na integralidade, observa-se que tal formulação coaduna-se com o construto filosófico de cuidado, como desenvolvido por Ayres33. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde soc 2004; 13(3):16-29.,44. Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu) 2004; 14(8):73-92., que destaca a dimensão intersubjetiva do processo de trabalho em saúde. Ainda que no senso comum sobressaia o sentido instrumental do cuidado em saúde, associado a “um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um tratamento”33. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde soc 2004; 13(3):16-29., a proposta do autor abre-se a outras dimensões da atenção à saúde. São trazidos à cena os sujeitos implicados no processo do cuidado, rompendo com os bem conhecidos desencontros entre fluxos preestabelecidos e possibilidades práticas à sua concretização.

Nesse sentido, apesar de considerar a importância do papel dos fluxos de referência e contrarreferência, destacam-se as possibilidades de pactuação desses fluxos, de forma a reorganizar os processos de trabalho, lembrando que tal pactuação, sob a referência das Linhas de Cuidado Integral em Saúde, implica a presença de prestadores e destinatários da atenção. Com essa preocupação, o momento assistencial privilegiado para a compatibilização de diferentes interesses e realidades é o da construção dos projetos terapêuticos, como abordado a seguir.

Linhas do Cuidado e Projetos terapêuticos

Partindo de considerações sobre as relações entre saúde e sociedade e necessidades de saúde e tendo como referência o trabalho de Merhy1414. Merhy EE, Franco TB. Por uma composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves e no campo relacional. Saude em debate 2003; 27(65):316-323.,1515. Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas. Interface (Botucatu) 2000; 4(6):109-116., Oliveira1616. Oliveira GN. O projeto terapêutico como contribuição para a mudança das práticas de saúde [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2007. aponta algumas abordagens sobre projetos terapêuticos, sintetizando-as como arranjo, como estratégia ou como dispositivo na reorganização do processo de trabalho de equipes de saúde.

Desde uma perspectiva mais geral e comum de apreensão, o referido autor aponta que o projeto terapêutico pode ser tomado como “expressão operacional dos modelos de atenção nas práticas de saúde [...] equacionando a capacidade de produzir certas práticas de saúde com o mundo das necessidades de saúde”1616. Oliveira GN. O projeto terapêutico como contribuição para a mudança das práticas de saúde [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2007., ou seja, privilegiando a ação tecnológica propriamente dita.

Já nas reflexões sobre a dimensão cuidadora nas práticas de saúde, o projeto terapêutico se situaria na intersecção entre a ação clínica e a ação gestora, configurando-se como Projeto Terapêutico Individual, desta feita, com objetivos “usuários-centrados”.

Na área da saúde mental, afinando-se com o jargão da análise institucional, o projeto terapêutico serviria como dispositivo de integração e organização de equipes de profissionais de saúde e os usuários, possibilitando e fomentando a cidadania desses últimos, além do restabelecimento de relações afetivas e sociais, expresso como reabilitação psicossocial.

Ainda no âmbito da análise institucional, outra ênfase no projeto terapêutico ressaltaria a figura do profissional de referência, que funcionaria como dispositivo de responsabilização e de reforço do vínculo com o paciente.

Por fim, Oliveira1616. Oliveira GN. O projeto terapêutico como contribuição para a mudança das práticas de saúde [dissertação]. Campinas: Unicamp; 2007. destaca uma última vertente de exploração do projeto terapêutico, que seria o denominado Projeto Terapêutico Singular, o qual, ao valorizar a singularidade de cada “caso”, ressalta a dimensão social implícita nessa singularidade, seja de ordem familiar, social, econômica etc., tendo como destinatários, portanto, indivíduos e coletividades.

Somando-se às abordagens ancoradas na análise institucional, destaca-se outra, fundada na matriz marxiana de trabalho, que, a exemplo do Projeto Terapêutico Singular, incorpora seus elementos dinâmicos e relacionais, tendo o cuidado33. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde soc 2004; 13(3):16-29.,44. Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu) 2004; 14(8):73-92. como referência a partir da qual distingue-se o tratar do cuidar, no projeto terapêutico. O primeiro termo designa um conjunto de procedimentos e finalidades definidos a priori, geralmente visando corrigir, curar ou reabilitar alguma anormalidade morfofuncional tida como patológica. Já a principal característica do cuidado, por seu turno, é justamente o fato de que a atenção à saúde não estaria calcada em “a priori” técnicos, como almejado pelo “tratar”, mas em sucessos práticos, ou seja, horizontes que permitem a permeabilidade do técnico ao não técnico e a afluência de diferentes interesses e projetos, intersubjetivamente tratados entre os sujeitos.

Na abordagem de linha de cuidado que se pretende explorar no presente texto, a noção de projeto terapêutico, embora possa incorporar os atos assistenciais em si, não se reduziria a estes, na medida em que é vislumbrado como uma imagem, um devir consensuado pelos diferentes atores e instâncias envolvidos. Assim, nessa perspectiva, a definição de uma indicação médica para uso de determinado medicamento ou mesmo de um procedimento cirúrgico, por exemplo, não é tomada como única e soberana: essa avaliação é cotejada com a de outros profissionais da equipe de saúde, incluindo ativamente a voz do paciente. Para as equipes de saúde, essa lógica supera a reconhecida fragmentação dos processos de trabalho nas equipes de saúde, permitindo a aproximação à noção de equipe-integração1717. Peduzzi M, Palma JJL. A equipe de saúde. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes Gonçalves RB, organizadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 234-250.,1818. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saude Publica 2001;35(1):103-9..

A tipologia formulada por Peduzzi & Palma1717. Peduzzi M, Palma JJL. A equipe de saúde. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes Gonçalves RB, organizadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 234-250. e Peduzzi1818. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saude Publica 2001;35(1):103-9., fundamentada nos estudos sobre processo de trabalho em saúde1919. Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec; 1994. e na teoria do agir comunicativo2020. Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989., prevê duas modalidades de trabalho em equipe de saúde: equipe agrupamento, expressa como a mera justaposição de processos de trabalho, e a equipe integração, quando há a integração das ações, a partir da interação dos agentes, com vistas a uma finalidade negociada entre esses e o paciente. Com base nessa tipologia, espera-se que o projeto terapêutico não se restrinja ao âmbito do serviço de saúde, no qual é originado, mas que envolva e incorpore outras instâncias e atores, direta ou indiretamente ligados a ele.

Seja sob a matriz da análise institucional, seja sob a da ação comunicativa, os projetos terapêuticos, embora possam partir do momento assistencial, não se reduzem a ele: a lógica interacional dos projetos terapêuticos considera todos os momentos e pontos da atenção à saúde, além das diferentes racionalidades presentes, com os sujeitos, recursos e dinâmicas peculiares a cada um deles, o que pode ser fecundo para a construção de linhas do cuidado compromissadas com a integralidade e o cuidado.

O empreendimento baseado na construção de projetos terapêuticos pode soar pertinente para uns, nem tanto para outros, ou mesmo ser rechaçado por aqueles que acreditam em uma supremacia do critério “técnico” em relação a outras racionalidades, nas decisões sobre a saúde.

Ainda que respeitadas todas as posições, há que se concordar que a apreensão da concepção de linha do cuidado como sinônimo de fluxograma envolvendo exclusivamente os serviços de saúde parece nem corresponder e nem atender às demandas e expectativas das pessoas, diante de suas necessidades de saúde e contextos de vida.

A incorporação da construção de projetos terapêuticos, nos processos de trabalho em saúde, parece ser uma fecunda proposta que permite incorporar e valorizar as particularidades dos sujeitos no modo como lidam com as diferentes situações envolvendo sua saúde e a doença, e não apenas atuar sob a forma de prescrições protocoladas e pouco sensíveis a essas particularidades.

Tanto os fluxogramas quanto os protocolos de atenção à saúde têm sua função e importância, mas tornam-se obstáculos a essa atenção quando não são suficientemente claros ou permeáveis às diferentes lógicas que perpassam o processo de cuidado à saúde. Não se quer com isso, como equivocadamente costumam ser interpretadas as proposições dessa natureza, instaurar uma ditadura de atendimento a singularidades, que inviabilizaria o trabalho institucional e coletivo. O que se pretende ao enfatizar a importância da dinâmica do projeto terapêutico é não fazer dos fluxos e protocolos um escudo contra as possibilidades de diálogo e de responsabilização das diferentes instâncias e profissionais do setor saúde.

Seja concebida como tecnologia leve1414. Merhy EE, Franco TB. Por uma composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves e no campo relacional. Saude em debate 2003; 27(65):316-323.,1515. Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas. Interface (Botucatu) 2000; 4(6):109-116. ou como sabedoria prática2121. Ayres JRCM. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática. Interface - Comunic., Saude, Educ. 2000; 4(6):117-120., um dos grandes desafios da assistência à saúde é justamente essa dimensão “não padronizável” da atenção, que requer a presença e interação efetiva dos sujeitos envolvidos no ato assistencial, criando proposições que ultrapassem as finalidades estritamente técnicas – estandardizadas e reproduzíveis – do trabalho em saúde.

Paralelamente ao caminho traçado no sistema de saúde ou mesmo em cada um dos pontos de atenção à saúde, convivem pessoas e contextos, mutuamente implicados, que conformam diferentes expectativas, recursos, redes sociais e familiares, valores e decisões que nem sempre correspondem à lógica desenhada pelo sistema de saúde. Tomemos como exemplo duas situações concretas, em dois serviços de saúde, captadas a partir da observação e de depoimentos apreendidos no desenvolvimento de uma disciplina teórico-prática, de um curso de graduação na área da saúde, coordenada por um dos autores.

Em um hospital público, referência nacional para dada especialidade, em um município de grande porte, a fila de espera para cirurgia abriga centenas de pacientes, que chegam a aguardar até quatro anos para a sua realização. Antes de chegar a essa fila de espera, essas pessoas já peregrinaram em outros serviços de saúde, não raro, por igual período de tempo, entre agendamentos, consultas e exames. Soma-se a esse contexto o fato de que ao dar entrada nesse hospital, o paciente reinicia todo o processo diagnóstico, refazendo exames e avaliações médicas, desconsiderando-se tudo o que foi realizado “lá fora”. Não obstante a demora, muitas pessoas preferem passar por todo esse processo e serem operadas nesse hospital de referência do que em qualquer outro, no mesmo município e com maior brevidade.

Em outro hospital público, no mesmo município, outrora referência para determinada patologia, a situação atual é de franca e visível escassez de recursos humanos e materiais, além do sucateamento de suas instalações físicas. Aliado a esse quadro, o hospital fica localizado em lugar isolado, de difícil acesso por transporte público. Outros hospitais do município também prestam o mesmo atendimento, talvez com melhores condições em relação às instalações físicas e aos recursos disponíveis, inclusive quanto ao número de profissionais. Não obstante tal panorama, os pacientes não abrem mão do vínculo com esse serviço, recusando-se a serem atendidos em outro local.

Exemplos semelhantes a esses, que serão retomados adiante, podem ser encontrados em todos os níveis de atenção à saúde, sugerindo a complexidade do processo envolvendo a demanda e a oferta de serviços de saúde. Ainda que, em um primeiro momento, possa se suspeitar que o principal critério utilizado pelas pessoas na escolha de um serviço de saúde seja a confiança no corpo técnico do hospital ou o renome da instituição, nem sempre essa é tônica que mobiliza suas decisões.

No primeiro caso, poderia se inferir a disseminação e consideração de experiências bem-sucedidas nesse hospital e/ou de experiências malsucedidas em outros e/ou a “fama” da instituição diante da opinião pública. No outro exemplo, a rede de solidariedade e os vínculos afetivos entre os próprios pacientes, e desses com os profissionais, poderia justificar a escolha por aquele serviço, que, contrastando com o caso anterior, dispõe de escassos recursos tecnológicos e infraestrutura para o atendimento. Entretanto, apegar-se apenas a essas hipóteses seria um modo muito reduzido de apreender a complexidade de relações e contextos envolvidos no processo de busca por cuidado, nesses exemplos, dentro do sistema formal de saúde.

Não sendo necessariamente convergentes as expectativas que levam as pessoas a buscarem cuidado para a sua saúde e aquilo que os serviços de saúde efetivamente oferecem, a compreensão da trajetória e dos significados presentes nos caminhos traçados para fazer face às suas demandas pode enriquecer a compreensão e construção dos projetos terapêuticos.

Uma referência que parece contribuir para essa compreensão é a noção de itinerário terapêutico: ainda que com enfoques diversos, ela permite a incorporação e ampliação de significados presentes na trajetória das pessoas quando buscam a solução de alguma questão relacionada à saúde e que não se restringem a um fluxo predeterminado e rígido, envolvendo tão somente as instituições de saúde, o diagnóstico e tratamento de doenças ou os médicos e suas prescrições.

Se o projeto terapêutico pode ser tomado como uma imagem que desenha uma possibilidade de futuro e se esse futuro for entendido como uma projeção marcada ou condicionada por experiências prévias – de saúde, de doença, de vida –, vislumbra-se que o conhecimento acerca dos itinerários terapêuticos pode trazer ricas contribuições ao planejamento e para o desenvolvimento de linhas de cuidado que se aproximem da proposta de Linhas do Cuidado Integral em Saúde.

Itinerários Terapêuticos: enfoques e contribuições

Para situar o conceito de itinerário terapêutico, recorrer-se-á à reconhecida publicação de Alves e Souza2222. Alves PCB, Souza IM. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 125-138., que é incorporada nas referências de praticamente todos os estudos brasileiros sobre itinerários terapêuticos.

Afinada com a literatura sobre illness behavior (comportamento do enfermo), os primórdios dos estudos sobre itinerários terapêuticos são atribuídos aos trabalhos que postulavam que as escolhas dos indivíduos para resolver suas questões de saúde eram orientadas por um processo de avaliação racional baseada na lógica do custo-benefício.

Contrastando a racionalidade biomédica com os processos lógicos do conhecimento leigo, os estudos sobre illness behaviour, de um modo geral, buscavam explicar como valores culturais determinavam o volume de utilização de serviços médicos profissionais.

Mesmo considerando as críticas oriundas das premissas utilitaristas e racionalistas e da ênfase no cuidado médico, os estudos sobre illness behaviour evidenciaram a importância de fatores extrabiológicos na definição popular sobre doença e sobre os modos de fazer face à mesma. Nessa perspectiva, a partir de 1970, são registradas investigações que privilegiavam os aspectos cognitivos e interativos envolvidos no processo de escolha e tratamento de saúde, como a percepção acerca da doença e as interpretações sobre normalidade ou ainda versando sobre as redes sociais, envolvendo parentes e amigos e o seu papel na busca pela resolução de problemas de saúde.

Relacionando as diferentes interpretações sobre doenças e o modo como se escolhe dentre várias alternativas terapêuticas possíveis, o modelo idealizado por Kleinman em 19782323. Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442., propõe analisar os itinerários tomando três subsistemas sociais, a partir dos quais a enfermidade é vivenciada: profissional (medicina científica), folk (especialistas “não oficiais”, como curandeiros e rezadores) e popular (automedicação, redes sociais e familiares). A partir desse modelo, Kleinman desenvolveu o conceito de modelo explicativo, que consiste em:

[...] um conjunto articulado de explicações sobre doença e tratamento, que determina o que se pode considerar como evidência clínica relevante e como se organiza e interpreta esta evidência com base em racionalizações construídas por perspectivas terapêuticas distintas” (Kleinman apud Cabral et al.2323. Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442., grifo nosso).

A preocupação com a busca de elementos que amparem o trabalho médico é o solo no qual a noção de itinerários terapêuticos tem suas raízes, noção essa desenvolvida predominantemente a partir da Antropologia Médica, privilegiando o binômio doença-tratamento/cura e como os “doentes” apreendem e reagem à doença2323. Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442., ou seja, tendo como aspecto central o ponto de vista dos atores sobre a maneira como se dá sua experiência de doença e cura.

Oscilando entre modelos explicativos e abordagens fenomenológicas ou, mais especificamente, entre entender como as estruturas sociais modelam o percurso das pessoas na busca de solução de um problema de saúde – ou como os indivíduos percebem e reagem, subjetivamente, à doença –, a noção de itinerário terapêutico não é uníssona quanto às matrizes teóricas que o informam: via de regra, às menções ao sentido prático dos estudos subjazem certa pretensão de “aplicação” desse conhecimento.

Ainda que não se vislumbre questionar ou fazer objeções à expectativa de aplicação do conhecimento sobre os itinerários terapêuticos, problematiza-se as apreensões fragmentadas, que tomam conhecimento e aplicação como ações distintas do processo.

Itinerários terapêuticos: entre a aplicação e a compreensão. De volta aos projetos terapêuticos

Em 2008, na revisão de produção científica2323. Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442. versando sobre itinerário terapêutico, por insuficiência de referências literais com essa designação, a busca foi ampliada para termos correlatos que remetessem ao seu significado. Após a aplicação de filtros que excluíram, por exemplo, os estudos que abordavam exclusivamente a percepção dos pacientes sobre suas doenças, tal revisão resultou em 11 referências.

Os autores do referido estudo indicaram que o núcleo de interesse dos trabalhos sobre itinerários terapêuticos no Brasil tem sido o comportamento/percepção dos pacientes ou familiares sobre sua doença ou tratamento, buscando considerar a multiplicidade de práticas implicadas nesse processo. Foram também resgatadas as possibilidades de articulação entre o conhecimento acerca dos itinerários terapêuticos e a gestão do cuidado em saúde, seja na organização dos serviços, nas interações entre profissionais e pacientes ou mesmo no acesso à atenção à saúde.

Em busca recente, de maio de 2014, recorrendo diretamente aos descritores itinerários and terapêuticos and saúde, na base da Biblioteca Virtual em Saúde, foram encontrados 60 títulos, indicando um significativo incremento na utilização desse termo como referência para os estudos sobre percurso dos usuários na busca de solução para os seus problemas de saúde seja, ou não, pelo sistema formal de saúde.

A partir da ênfase na percepção dos doentes sobre suas doenças e quais dispositivos acionam para seu enfrentamento, os estudos sobre itinerários terapêuticos têm buscado propiciar uma apreensão ampliada acerca de condicionantes culturais nas práticas de saúde. Destaca-se que a essa apreensão segue-se a expectativa de que esse conhecimento possa instrumentalizar a ação dos profissionais, como se depreende na frase dos citados autores:

“[os estudos sobre itinerários terapêuticos] têm como objetivos, entre outros, conhecer os dispositivos de cuidados acionados pelo paciente e pela família no enfrentamento da doença e sugerir o olhar ampliado por parte dos profissionais de saúde sobre o universo cultural dos usuários de forma a adequar práticas e a atingir resultados terapêuticos mais efetivos”2323. Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442.. (grifo nosso)

Se, por um lado, a ampliação de uma lógica estritamente biomédica das práticas de saúde abre-se a outras perspectivas de cunho sociocultural, por outro, é notória a relação instrumental que se estabelece entre o conhecimento e sua aplicação prática. Em outras palavras, essa apreensão de que diferentes concepções sobre a doença e/ou diferentes contextos sociais levam as pessoas a construírem diferentes percursos na busca de cuidados e que essas informações podem subsidiar a ação dos profissionais perpassam duas ações distintas e não necessariamente intercambiáveis: 1) conhecer os itinerários e 2) subsidiar e traçar ações baseadas nesse conhecimento.

Ao postular possibilidades de articulação entre linhas do cuidado e itinerários terapêuticos, pode-se inferir mera sequência de acontecimentos, interligados por relação de causalidade, ou seja, a explicação dos itinerários teria a capacidade de levar os profissionais de saúde a reagirem, seja acomodando-se às necessidades dos pacientes, seja identificando a necessidade de fomentar o uso correto ou desejável da rede de serviços e de atenção à saúde.

Defende-se que é possível explorar a fecundidade do conhecimento dos itinerários terapêuticos, qualificando a construção de linhas do cuidado, sem necessariamente estabelecer essa relação de causalidade. Para tanto, é preciso, inicialmente, perscrutar como se constrói o conhecimento sobre os itinerários terapêuticos para, então, indagar sobre o seu sentido prático.

O resgate do trabalho de Alves e Souza2222. Alves PCB, Souza IM. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 125-138. ainda nos situa em relação a essa tarefa de aprofundamento do conhecimento sobre itinerários terapêuticos, a partir da literatura socioantropológica, perpassando abordagens sistêmicas e fenomenológicas. Os mesmos autores discorrem sobre o processo de interpretação que permeia os estudos sobre itinerários terapêuticos, marcadamente de cunho explicativo, cujo campo paradigmático é proveniente das ciências naturais e matemáticas:

A lógica explicativa baseia-se na busca de uma regularidade, de uma suposta ordem. É por intermédio de enunciados, tomados como universais, que o investigador estrutura o seu argumento lógico para entender a multiplicidade das ações sociais2222. Alves PCB, Souza IM. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 125-138..

Ao alertarem para a lógica presente no processo de explicação, chamam a atenção para a inconsistência epistemológica de se reduzir a interpretação a um ato explicativo: “a atitude explicativa não leva em devida conta o contexto intencional, circunstancial e dialógico em que os indivíduos desenvolvem suas ações”2222. Alves PCB, Souza IM. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 125-138..

Tanto o conhecimento dos itinerários quanto a sua apreensão prática passam por esse processo de interpretação que ressalta a dimensão dialógica, intersubjetiva, da construção tanto dos itinerários quanto das linhas do cuidado e projetos terapêuticos. O caráter intersubjetivo, que a cada encontro delineia contextos e decisões e que envolve outros agentes, além de pacientes e médicos, define a dinamicidade do processo e nos desafia no agir profissional.

Diante dos imponderáveis desses encontros, como compreender os exemplos acima mencionados e como agir diante dessas situações? Nos exemplos acima citados, o que levaria o hospital a ignorar todo o percurso do paciente pelo sistema formal de saúde, incluindo os exames e diagnóstico? Por que o paciente prefere aguardar por anos na fila de espera, a ser atendido em outro hospital? Ou por que persistir em ser internado em um serviço em condições tão precárias?

A simples formulação dessas questões pode levar à expectativa de determinado tipo de resposta. Ao perguntar o porquê de algo, é possível deduzir a expectativa de uma explicação peremptória, do tipo: “o nível de confiança nos médicos do hospital de referência é de 90%, ao passo que para outros hospitais essa proporção oscila entre 20 e 40%”. Já ao indagar sobre o “como” ou “o que levaria”, espera-se resposta contextualizada, envolvendo temporalidades, lugares e/ou pessoas, tais como: o hospital que hoje se encontra em precárias condições foi o pioneiro em acolher pacientes com essa patologia; os pacientes conhecem todos os profissionais, estabelecendo-se vínculos recíprocos de afetividade; as experiências dos pacientes em outros serviços não foram avaliadas como bem-sucedidas etc.

Note-se a distinção entre um caminho que opera uma simplificação analítica, com pretensões universalizantes, e outro que indaga pela trama de construção dessas escolhas e sobre os elementos em disputa na (re)construção dessas tramas que envolve uma miríade de atores – pesquisadores, “sujeitos da pesquisa”, profissionais de saúde e pacientes.

Questiona-se, aqui, o alcance das propostas de estudos sobre itinerários que se subsomem à mera descrição do percurso dos usuários pelos sistemas formais ou não de saúde ou a tentativas de investigar “causas” para esses percursos. Em outro nível, a crítica recai sobre relações instrumentais entre explicações sobre itinerários terapêuticos e a construção de linhas do cuidado, como se o conhecimento sobre itinerários pudesse ser meramente aplicado na formulação das linhas de cuidado.

Itinerários, projetos, encontros terapêuticos

Da crítica à apreensão da aplicação como mera identificação de um método que permitiria “transpor” unidirecionalmente os conhecimentos, sejam biomédicos ou socioantropológicos, no equacionamento das linhas do cuidado, tem-se como horizonte os trabalhos que resgatam as potencialidades da hermenêutica nos estudos em saúde. Em seu sentido lato, a hermenêutica remete à interpretação e compreensão2424. Caprara A. Uma abordagem hermenêutica da relação saúde-doença. Cad Saude Publica 2003; 19(4):923-931.,2525. Ayres JRCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):549-560., valendo destacar nesse processo a implicação dos sujeitos, temporalidades e abertura à construção de novos sentidos, expressos como fusão de horizontes2626. Gadamer HG. Verdad y método: fundamentos de una hermenéutica filosófica. Salamanca: Ed. Sigueme; 1996..

Não caberia recuperar a densidade da discussão sobre hermenêutica e a filosofia gadameriana, como exemplarmente o fizeram os autores acima mencionados, valendo aqui reter a centralidade da íntima relação envolvendo desde estruturas sociais mais amplas até as experiências singulares dos indivíduos.

Para que as linhas do cuidado não se reduzam a meros fluxos assistenciais e técnicos, fundados em protocolos clínicos, e para que os itinerários não sejam meros termômetros para guiar previamente as linhas do cuidado na atenção a patologias, o conhecimento sobre itinerários terapêuticos pressupõe a sensibilidade para captar essa relação, intimamente relacionada a concepções sobre saúde, doença e o bem viver. Se essa sensibilidade também permear as práticas de saúde e a construção dos projetos terapêuticos, pode-se, então, falar em possibilidades de articulação entre conhecimento sobre itinerários terapêuticos e construção de Linhas do Cuidado Integral em Saúde.

Tão caros às Linhas do Cuidado Integral em Saúde, os projetos terapêuticos serão tão fecundos quanto seja possível apreender os itinerários dos usuários, para além do sentido estrito e imediato das finalidades técnicas que mobilizam as trajetórias. Ainda que a correção de um distúrbio morfofuncional faça parte do projeto terapêutico, a sua principal característica reside na abertura ao devir e compartilhamento de valores éticos, morais e políticos no seu processo de construção, expressa como sucesso prático33. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde soc 2004; 13(3):16-29.,2121. Ayres JRCM. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática. Interface - Comunic., Saude, Educ. 2000; 4(6):117-120..

Nos exemplos citados acima, a tônica no êxito técnico ou sucesso prático podem ser identificados em cada uma das posições dos usuários dos hospitais, e a partir desse mote é possível contextualizar e compreender as motivações e aspirações não apenas dos usuários, mas dos sujeitos e instituições envolvidos, em interação.

A articulação entre itinerários terapêuticos e linhas do cuidado não se dará iminentemente pela via técnica ou instrumental, mas na medida em que as dimensões discursivas, ético-políticas, forem ativamente incorporadas tanto na interpretação dos itinerários quanto no modo como são apreendidos na construção dos projetos terapêuticos, promovendo encontros entre indivíduos – usuários dos serviços, profissionais de saúde e gestores.

Certamente, esse não é o caminho mais fácil para se conhecer os fluxos dos usuários na busca de cuidado à saúde e de construir propostas de cuidado à população. É um desafio permanente à Saúde Coletiva, de um fazer que não deve ser moldado apenas segundo normatizações ou protocolos genéricos e verticalizados nem tampouco se submeter arbitrariamente aos apelos “emocionais” de cada caso, ou seja, é um convite a todos nós, usuários, profissionais de saúde, gestores para a inovação e valorização das experiências que tenham o Cuidado como fim; e como ponto de partida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2015
  • Revisado
    27 Jun 2015
  • Aceito
    29 Jun 2015
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