Resumo
A violência é um fenômeno social e de saúde pública, com maior exacerbação quando acontece na infância, provocando um impacto no desenvolvimento e uma catastrófica repercussão no comportamento na vida adulta. O objetivo deste artigo é caracterizar por meio das evidências científicas a violência infantil no cenário brasileiro. Utilizou-se uma revisão integrativa da literatura, tendo como fonte de pesquisa as bases de dados Lilacs e SciELO no período de agosto de 2013. Dentre as publicações identificadas seis mostraram a negligência como principal tipo de violência, cinco discorreram que o sexo masculino é o gênero mais atingido e dez afirmaram que o agressor sempre é um membro da família. Ainda neste cerne, torna-se evidente que os pais são os maiores perpetradores da violência contra crianças, destacando-se a mãe como a maior agressora. Os resultados demonstram a necessidade de se identificar precocemente todos os tipos de violência, sobretudo a negligência, reconhecendo que não há distinção significativa da violência entre os sexos e sendo o ambiente familiar o local mais propício para o desenvolvimento dos eventos violentos.
Violência doméstica; Maus-tratos infantis; Defesa da criança e do adolescente; Violência; Criança
Introdução
A violência pode ser considerada como uso da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação11. World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002..
Mais do que qualquer outro tipo de violência, a cometida contra a criança não se justifica, pois as condições peculiares de desenvolvimento desses cidadãos os colocam em extrema dependência de pais, familiares, cuidadores, do poder público e da sociedade. Em 2011, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), registrou 39.281 atendimentos na faixa de < 1 a 19 anos idade, que representam 40% do total de 98.115 atendimentos computados pelo sistema nesse ano22. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012. Crianças e Adolescentes do Brasil. São Paulo: Instituto Sangari; 2012.. O aumento no número de casos de violência infantil, segundo os dados epidemiológicos mundiais e brasileiros, mostra cada vez mais que é necessário demandar ações de controle, por meio de condutas preventivas, pelos setores sociais envolvidos, bem como profissionais de saúde, conselhos tutelares, entre outros.
A problemática alcançou relevância política e visibilidade entre a sociedade, principalmente a partir da década de 1990, com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, através da Lei 8.069, que tem por finalidade: “Garantir às crianças e ao adolescente, a promoção da saúde e a prevenção de agravos, tornando obrigatória a identificação e a denúncia de violência”33. Brasil. Presidência da República. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 Jul.. Com isso, o Estado passou a ter instrumentos legais de proteção nas situações de violência na infância e na adolescência, tornando obrigatória sua notificação até mesmo nos casos de suspeita.
A Organização Mundial de Saúde (OMS)44. World Health Organization (WHO). Preventing child maltreatment: a guide to taking action and generating evidence. Geneva: WHO; 2006. classifica a violência contra a criança em quatro tipos, abuso físico, sexual, emocional ou psicológico e negligência, os quais podem resultar em danos físicos, psicológicos; prejuízo ao crescimento, desenvolvimento e maturação das crianças.
A violência, no meio infantil, se traduz em um forte estressor em relação ao processo normal de crescimento e desenvolvimento, devendo ser considerado em sua totalidade, para o seu pleno reconhecimento, a fim de se poder implantar medidas eficazes para sua resolução. Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo caracterizar, por meio das evidências científicas a violência infantil no cenário nacional.
Metodologia
Buscando responder a questão norteadora: Como se caracteriza a violência infantil no cenário nacional? Realizou-se uma Revisão Integrativa (RI), a qual traz subsídios relevantes para o fortalecimento da Prática Baseada em Evidências (PBE)55. Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão Integrativa: Método de Pesquisa para a Incorporação de Evidências na Saúde e na Enfermagem. Texto Contexto Enferm 2008; 17(4):758-764..
A seleção dos artigos ocorreu a partir da delimitação dos critérios de inclusão utilizados para a satisfação da amostra, sendo estes: artigos que remetiam ao tema abordado e/ou temáticas congêneres na íntegra, publicações em português e recorte temporal entre 2008 e 2012. Como critério de exclusão optou-se por não utilizar textos incompletos, artigos em língua estrangeira e que não estivessem disponíveis integralmente on-line.
A tarefa seguinte foi a realização da busca da amostra em fontes indexadas na base de dados SciELO (Scientific Eletronic Library Online) e Lilacs (Literatura Latino-Americano e do Caribe em Ciências da Saúde), utilizando os seguintes descritores: criança, maus-tratos infantis, defesa da criança e do adolescente, violência e violência doméstica, durante o período de Agosto de 2013, obedecendo à obrigatoriedade das etapas como mostra a Figura 1.
Os dados foram analisados e organizados através do instrumento de coleta validado por Ursi66. Ursi ES. Prevenção de lesões de pele no perioperatório: revisão integrativa da literatura [dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2005. e posteriormente agrupados em quadros nas seguintes variáveis: autor/ano, delineamento/nível de evidência e resultados.
Os resultados e as discussões foram apresentados na ordem das questões que constituem o instrumento de coleta de dados. Para auxiliar na escolha da melhor evidência possível, propõe-se uma hierarquia, segundo o delineamento da pesquisa, que é um dos itens a serem analisados nesta fase77. Stetler CB, Morsi D, Rucki S, Broughton S, Corrigan B, Fitzgerald J, Giuliano K, Havener P, Sheridan EA. Utilization-focused integrative reviews in a nursing service. Appl Nurs Res 1998; 11(4):195-206..
O presente estudo foi cadastrado na Coordenação de Pesquisa e Pós Graduação do Centro Universitário UNINOVAFAPI.
Resultados e discussão
A partir do processo de rastreamento realizado, inicialmente identificaram-se 1.571 artigos todos potencialmente elegíveis através da leitura rápida do título, objetivo(s) e ano de publicação. Destes, apenas 12 artigos foram analisados na íntegra a partir de leitura minuciosa. Para uma melhor compreensão da natureza de cada artigo analisado, foi proposta uma distribuição que apontasse as vertentes trabalhadas por cada manuscrito analisado. Essa distribuição pode ser vista no Quadro 1.
Foi possível observar que o local de maior procura para a realização dos estudos, quando se trata de maus-tratos contra a criança, foi os Sistemas de Notificação (33,3%), seguido pelos hospitais (25%). Quanto ao ano, houve predomínio dos estudos publicados em 2012 (33,3%), seguido pelos anos de 2009 (25%).
O tipo de pesquisa com maior publicação foi a do tipo quantitativa, incluindo as de natureza descritiva e exploratória. De todos os artigos, apenas um foi do tipo relato de experiência, reduzindo o grau de confiança deste estudo.
Tendo em vista à visibilidade e riqueza dos artigos analisados procurou-se expor o nível de evidência de cada amostra selecionada a fim de dar crédito ao estudo. A distribuição pode ser vista no Quadro 2.
Distribuição dos estudos segundo resultados, delineamento e nível de evidência (2008-2012).
Quando se avaliou a ideia central de cada artigo, verificaram-se o predomínio de três categorias, sendo estas: tipo de violência predominante contra crianças; perfil do gênero atingido pela violência; e o tipo de agressor (Quadro 3). Em relação ao tipo de violência, foi possível observar o predomínio da negligência (50%), seguindo pela física (33,3%), psicológica (8,3%) e sexual (8,3). Quanto ao gênero, é possível observar a preponderância do sexo masculino (41,7%) em relação ao feminino (25%), ressaltando que alguns estudos estabelecem percentual para cada gênero, levando em consideração um tipo de violência isoladamente. Quanto ao tipo de agressor, foi possível identificar a prevalência da agressão perpetrada por algum membro do grupo familiar (75%). Dois estudos (16,7%), não descreveram o agressor e apenas um (8,3% dos casos) referiu a fonte do agressor como extrafamiliar, descrito neste estudo como outros – sendo qualquer indivíduo que mantenha relação indireta com as vítimas sem qualquer grau de parentesco.
Distribuição quantitativa quanto a Tipologia, Gênero e Agressor da Violência contra Crianças.
O viés para a discussão da violência contra a criança neste estudo será apresentado de forma categórica, dimensionado sobre a seguinte ótica: tipo de violência que mais incide sobre as crianças, o gênero sexual da qual houve maior predominância nos artigos analisados e de onde parte a ação violenta, ou seja, buscar quantificar o grau de relação/parentesco do agressor.
Tipos de violência predominante contra crianças
A negligência é uma violência de difícil definição, pois envolve aspectos culturais, sociais e econômicos de cada família ou grupo social, é o que afirma Zambon et al.88. Zambon MP, Jacintho ACA, Medeiro MM, Guglielminetti R, Marmo DB. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(4):465-464.. A negligência é a forma mais frequente de maus-tratos contra crianças e adolescentes88. Zambon MP, Jacintho ACA, Medeiro MM, Guglielminetti R, Marmo DB. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(4):465-464.
9. Faleiros JM, Matias ASA, Bazon MR. Violência contra crianças na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil: a prevalência dos maus-tratos calculada com base em informações do setor educacional. Cad Saude Publica 2009; 25(2):337-348.
10. Pfeiffer L, Rosário NA, Cat MNL. Violência contra crianças e adolescentes: proposta de classificação dos níveis de gravidade. Rev Paul Pediatr 2011; 29(4):477-482.
11. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2305-2317.-1212. Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS, Egry EY. Características da violência contra a criança em uma capital brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem 2012; 20(2):266-273..
De acordo com Faleiros et al.99. Faleiros JM, Matias ASA, Bazon MR. Violência contra crianças na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil: a prevalência dos maus-tratos calculada com base em informações do setor educacional. Cad Saude Publica 2009; 25(2):337-348., a privação materna é um estressor importante que afeta diretamente o desenvolvimento da criança, e indivíduos vítimas de negligência ou qualquer outro tipo de violência na primeira década de vida possuem, na maioria das vezes, desvios de conduta, principalmente transgressões das regras sociais.
Outro ponto também importante diz respeito à faixa etária das crianças agredidas, havendo predominância de agressão em menores de cinco anos, segundo observado por Apostólico et al.1212. Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS, Egry EY. Características da violência contra a criança em uma capital brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem 2012; 20(2):266-273., sendo que esse número pode ser maior quanto mais jovem a criança for, completa Assis et al.1111. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2305-2317..
Assim, compreende-se que quanto menor a idade, maior a vulnerabilidade e o risco de violência, pois o desempenho das atividades básicas de sobrevivência depende inteiramente do cuidador, requerendo habilidades inerentes ao cuidar o que pode se tornar um fator estressante para quem demanda o cuidado.
Vale ressaltar ainda, de acordo com Granville-Garcia et al.1818. Granville-Garcia AF, Silva MJ F, Menezes VA. Maus-Tratos a Crianças e Adolescentes: Um Estudo em São Bento do Una, PE, Brasil. Pesq Bras Odontoped Clin Integr 2008; 8(3):301-307., que a negligência tem alta prevalência nas mais variadas localidades e tem sido descrita na literatura como preocupante, uma vez que este tipo de abuso, apesar de não inspirar o mesmo grau de indignação dos demais representa cerca de 40% das fatalidades registradas.
Com isso, é possível sugerir o grande impacto social dos outros tipos de violência contra crianças, como por exemplo, a violência física e sexual, que repercute de maneira mais intensa na sociedade, obtendo grande visibilidade, uma vez que há diversas políticas públicas direcionadas a estes casos.
Embora a negligência seja o tipo mais comum de maus-tratos em crianças, outros autores indicam o abuso físico como mais frequente1414. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saude Publica 2010; 26(2):347-357.,1616. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(6):659-665.,1717. Garbin CS, Rovida TAS, Joaquim RC, Paula AM, Guimarães e Queiroz APD. Violência denunciada: ocorrências de maus tratos contra crianças e adolescentes registradas em uma unidade policial. Rev Bras Enferm 2011; 64(4):665-670.,1919. Carvalho ACR, Barros SG, Alves AC, Gurgel CA. Maus-tratos: estudo através da perspectiva da delegacia de proteção à criança e ao adolescente em Salvador, Bahia. Cien Saude Colet 2009; 14(2):539-546., podendo em alguns casos destacar-se o espancamento/força física, conforme Mascarenhas et al.1414. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saude Publica 2010; 26(2):347-357..
A violência física como forma de educação, sob a ótica do cuidador/agressor, apresenta explicações sobre o ato de bater ou espancar motivado por dificuldades sociais, no dia a dia nas relações familiares e com a criança, descontrole emocional e sentimento de culpa desta pelos problemas.
Segundo Gawryszewski et al.1616. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(6):659-665., por se tratar de um problema amplamente discutido na sociedade em geral, os maus-tratos físicos tendem a ocupar o primeiro posto entre as modalidades de violência em estudos realizados nas unidades de pronto atendimento voltado para estes casos, provavelmente por serem mais graves e exigirem atendimento de saúde, fato que dependendo da circunstância não poderá ser omitido.
Tomando como relevante o local procurando para registrar a ocorrência de violência, as delegacias de polícia se destacam como o primeiro lugar a ser procurado, enquanto os serviços de saúde são esquecidos, isso porque as vítimas ou quem as conduz, não consideram o setor de saúde como competente para lidar com esse tipo problema.
Em outra concepção, ainda segundo os estudos analisados no que tange à tipologia da violência, é observado de forma escassa na literatura a agressão psicológica como o tipo de maus-tratos predominante entre as crianças, sendo praticamente ignorada nos hospitais, conforme afirmam Moura et al.1515. Moura ATMS, Moraes CL, Reichenheim ME. Detecção de maus-tratos contra a criança: oportunidades perdidas em serviços de emergência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2926-2936..
A cena cultural e social onde ocorre a violência psicológica tem que ser considerado como relevante, pois seu reconhecimento depende substancialmente do contexto em que se está inserido. Muitas vezes, a detecção da fonte da ocorrência pode ser dificultada pela omissão dos casos, já que a violência psicológica não deixa marcas tão expressivas inicialmente.
Por fim, em relação à predominância do tipo de violência, foi possível, de forma distante, encontrar estudo comprovando a violência sexual como o tipo mais comum, apontando que as crianças não estão preparadas física, cognitiva, emocional ou socialmente para encarar uma situação de violência sexual. A relação sexualmente abusiva é de poder entre o adulto que vitima e a criança que é vitimizada88. Zambon MP, Jacintho ACA, Medeiro MM, Guglielminetti R, Marmo DB. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(4):465-464..
Contudo, para estabelecer um quantitativo fidedigno sobre a prevalência do tipo de violência, é necessário levar em conta que o perfil de ocorrências pode variar conforme a fonte ou o local pesquisado.
Gênero Sexual mais prevalente sob a ótica da violência infantil
Tão importante quanto quantificar as formas de violência que acometem os menores de idade, é saber diferenciar qual gênero sofre mais com maus-tratos, uma vez que a condução da ação pelos profissionais responsáveis pelo atendimento à criança maltratada deve ser feita de maneira particular, respeitando a individualidade de cada caso.
Na maioria dos estudos há uma prevalência do sexo masculino entre as vítimas de violência99. Faleiros JM, Matias ASA, Bazon MR. Violência contra crianças na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil: a prevalência dos maus-tratos calculada com base em informações do setor educacional. Cad Saude Publica 2009; 25(2):337-348.,1111. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2305-2317.,1414. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saude Publica 2010; 26(2):347-357.,1515. Moura ATMS, Moraes CL, Reichenheim ME. Detecção de maus-tratos contra a criança: oportunidades perdidas em serviços de emergência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2926-2936., sendo que as formas de agressão diferem segundo o gênero, com “falta de controle parental” sendo significantemente mais frequente em meninos. Por outro lado, segundo Faleiros et al.99. Faleiros JM, Matias ASA, Bazon MR. Violência contra crianças na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil: a prevalência dos maus-tratos calculada com base em informações do setor educacional. Cad Saude Publica 2009; 25(2):337-348., as meninas vivenciariam mais as duas outras formas de negligência: o “abandono físico” e o “emocional”.
Um ponto que justifica a afirmação acima, como relata Mascarenhas et al.1414. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saude Publica 2010; 26(2):347-357., é o fato dado pelos diferentes comportamentos de cada sexo e por fatores culturais, que determinam maior liberdade aos meninos e, em contrapartida, maior vigilância sobre as meninas.
Nesse aspecto, a maior ocorrência de agressões entre os meninos pode ser relacionada com um dos grandes símbolos de masculinidade no mundo atual, as armas, que materializam o poder de submeter o outro a seus desejos e interesses, poder de vida ou morte, por meio de objetos que são introduzidos desde cedo na vida do menino, na forma de brinquedos, e passam a fazer parte do universo masculino.
Para se caracterizar o gênero prevalente, como diz Assis et al.1111. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2305-2317., é necessário também incluir o tipo de violência perpetrada, considerando que a violência sexual tende a ser dirigida mais frequentemente contra as meninas e a física e a negligência mais comumente observada em meninos, de acordo com a notificação de crianças entre 1-9 anos de idade.
Por outra visão, a condição de subordinação da mulher na sociedade verificada desde a infância, bem como a ideologia de uma suposta fragilidade feminina, conceito de que a mulher é fraca, submissa, passiva, em contrapartida ao homem, forte, viril, racional, são conceitos perpetrados ao logo de décadas que necessitam de solução quanto aos valores sociais, frente aos casos de violência, fazendo com que o sexo feminino seja considerado como o sexo de maior prevalência entre as agressões1616. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(6):659-665.,1717. Garbin CS, Rovida TAS, Joaquim RC, Paula AM, Guimarães e Queiroz APD. Violência denunciada: ocorrências de maus tratos contra crianças e adolescentes registradas em uma unidade policial. Rev Bras Enferm 2011; 64(4):665-670..
Dando sequência à crescente ideia sobre a prevalência do sexo feminino, é dada uma estreita relação ao predomínio do abuso físico em crianças do sexo masculino em relação aos outros tipos de maus-tratos, não indicando faixa etária específica para a ocorrência desses eventos, é o que diz Carvalho et al.1919. Carvalho ACR, Barros SG, Alves AC, Gurgel CA. Maus-tratos: estudo através da perspectiva da delegacia de proteção à criança e ao adolescente em Salvador, Bahia. Cien Saude Colet 2009; 14(2):539-546., na interface das relações entre os maus-tratos contra crianças e os aspectos da violência entre os gêneros.
Por mais que se note prevalência do sexo masculino nesta categoria, é possível observar que alguns estudos não deixando explícito o predomínio sobre qual incide a violência de acordo com o gênero, fazendo apenas um breve comparativo na relação tipologia/gênero como citado anteriormente – o sexo masculino acometido mais pelas agressões físicas e pelas violências psicológicas e negligência e o sexo feminino o que mais sofre violência sexual1010. Pfeiffer L, Rosário NA, Cat MNL. Violência contra crianças e adolescentes: proposta de classificação dos níveis de gravidade. Rev Paul Pediatr 2011; 29(4):477-482.,1212. Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS, Egry EY. Características da violência contra a criança em uma capital brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem 2012; 20(2):266-273..
Descrição do agressor quanto ao grau de relação/parentesco
Nesta categoria, nove (75%) dos 12 artigos analisados relataram que o agressor é sempre um dos membros da família. Apenas um estudo (8,3%) revelou que a fonte da agressão é externa, a qual foi classificada como “outros”, categoria não existente em dois artigos.
Segundo Mascarenhas et al.1414. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saude Publica 2010; 26(2):347-357., o ambiente domiciliar é um o local em que grande parte dos eventos violentos toma lugar, sendo este o ambiente favorável para a ocorrência de agressões e abusos contra crianças, principalmente as meninas. Por permanecerem por mais tempo em seus lares, as crianças acabam sendo violentadas mais frequentemente nestes locais.
É interessante ressaltar mediante esta problemática que qualquer membro da família pode se tornar, em determinadas circunstâncias, vítima ou autor de violência. Entretanto, as crianças, por serem mais susceptíveis, indefesos e dependentes da família e da sociedade, são as principais vítimas desse tipo de violência, remetendo cada vez mais um olhar de gênero sobre essa realidade.
Nesta relação, como cita Moura et al.1515. Moura ATMS, Moraes CL, Reichenheim ME. Detecção de maus-tratos contra a criança: oportunidades perdidas em serviços de emergência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(12):2926-2936., é importante destacar que a mãe foi considerada como principal agressor em alguns tipos de violência – a psicológica e o castigo corporal, seguido pela negligência.
De uma forma bem detalhada, observou-se a seguinte representatividade quanto aos agressores: os principais autores da agressão eram os próprios responsáveis pelas vítimas – mãe e pai1010. Pfeiffer L, Rosário NA, Cat MNL. Violência contra crianças e adolescentes: proposta de classificação dos níveis de gravidade. Rev Paul Pediatr 2011; 29(4):477-482.
11. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2305-2317.
12. Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS, Egry EY. Características da violência contra a criança em uma capital brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem 2012; 20(2):266-273.-1313. Martins CBG, Mello Jorge MHP. Desfecho dos casos de violência contra crianças e adolescentes no poder judiciário. Acta Pau Enferm 2009; 22(6):800-807.,1616. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(6):659-665., seguido pelo padrasto e madrasta – ou conhecidos, incluído outros familiares. De acordo com Gawryszewski et al.1616. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(6):659-665., essa distribuição apresentou diferenças em relação ao sexo, com alta proporção de mães como autoras da agressão contra crianças do sexo masculino. Ainda nesta interface, segundo Pfeiffer et al.1010. Pfeiffer L, Rosário NA, Cat MNL. Violência contra crianças e adolescentes: proposta de classificação dos níveis de gravidade. Rev Paul Pediatr 2011; 29(4):477-482., nos casos de violência sexual, o padrasto ou companheiro da mãe ocupou o primeiro lugar, seguido pelo pai, avô, tio e outros com quem a vítima mantinha laços de dependência, afeto e convivência.
A mãe ter sido apontada como a principal agressora pode ser explicado pelo fato dela estar mais próxima fisicamente da criança, seja responsabilizando-se pelo cuidado afetivo e educacional dos filhos, seja garantindo sua sobrevivência, já que na maioria das vezes, quando o casal está separado, é com ela que a criança permanece, sendo essa proximidade um fator de risco para o desenvolvimento da violência1919. Carvalho ACR, Barros SG, Alves AC, Gurgel CA. Maus-tratos: estudo através da perspectiva da delegacia de proteção à criança e ao adolescente em Salvador, Bahia. Cien Saude Colet 2009; 14(2):539-546.. No entanto, diversas situações são descritas pelas mães como fatores circunstanciais para desencadear o ato violento, como por exemplo, o choro da criança ou alguma ação realizada por ela da qual não tenha controle irritando o cuidador.
Toda esta configuração da violência vai contra a ideia de que o lar representa um lugar seguro, que serve como fonte de crescimento para as crianças. Os efeitos da violência podem surgir a curto ou em longo prazo no que tange aos aspectos biopsicossociais da criança agredida, o que dificulta o seu desenvolvimento no meio social, refletindo na diminuição da capacidade de pensar e agir, bem como enfrentar situações difíceis impostas a ela, convivendo assim com momentos de estresse por toda sua vida, uma vez que o evento violento ficará marcado na sua memória independente da idade que ocorra.
Zambon et al.88. Zambon MP, Jacintho ACA, Medeiro MM, Guglielminetti R, Marmo DB. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio. Rev Assoc Med Bras 2012; 58(4):465-464. afirmam que uma dificuldade observada em relação à violência quando cometida pela família, é o receio da própria criança em relatar o ocorrido, temendo futuras punições; passando pela dificuldade diagnóstica e de notificação até a falta de dispositivos padronizados e efetivos para a adequada condução desses casos pelo sistema de saúde.
Em outro olhar não tão distante sobre a violência infantil, segundo Carvalho et al.1919. Carvalho ACR, Barros SG, Alves AC, Gurgel CA. Maus-tratos: estudo através da perspectiva da delegacia de proteção à criança e ao adolescente em Salvador, Bahia. Cien Saude Colet 2009; 14(2):539-546., os agressores, em sua maioria, possuíam uma relação indireta com as vítimas, sendo que o perfil destes indivíduos é ser do sexo masculino, apresentando em média 31,55 anos de idade.
Neste sentido, é necessário salientar também a importância para o reconhecimento da violência extrafamiliar, pois geralmente as relações sociais abertas com os demais membros de uma comunidade podem favorecer o surgimento destes episódios, uma vez que as relações de confiança são dadas a vizinhos, amigos ou outra pessoa sem qualquer laço parental. Por isso, os casos de violência, em sua maioria, quando extrafamiliares, são cometidos por alguém que a criança conhece e confia, sendo considerado amigo da família.
Contudo, a violência contra as crianças e os adolescentes pode ser entendida como uma forma grave de desrespeito aos direitos fundamentais, que é tratada como um fato natural ou como apenas um modo particular de os pais lidarem com os seus filhos, passando a ser considerada como um grave problema a de responsabilidade tanto do Estado, sociedade civil e principalmente das próprias famílias.
Conclusão
Portanto, torna-se evidente que os pais são os maiores perpetradores da violência contra crianças, principalmente entre aquelas com faixa etária menor ou igual a 5 anos, destacando-se a mãe como a maior agressora. Quanto ao tipo de violência, a negligência emerge como a principal forma de maus-tratos, constituindo-se como um problema de ordem social grave, mesmo não tendo uma visibilidade expressa na sociedade nem políticas públicas específicas para o seu combate. Quanto à distinção da violência, não foi significativa quando analisados sob a ótica do sexo da vítima, ressaltando apenas que há uma notória predominância das violências física e negligência no sexo masculino e da sexual no sexo feminino.
Portanto, uma vez constituído esse tripé de reconhecimento da violência infantil é necessário que o profissional de saúde, com ênfase no enfermeiro, trace metas a fim de intervir de forma a resgatar os valores da família e coletividade envolvida no contexto violento, com medidas de educação em saúde e de forma continuada, na socialização dos atores envolvidos e no estímulo para o desenvolvimento das políticas sociais de enfretamento à violência.
Referências
- 1World Health Organization (WHO). World report on violence and health Geneva: WHO; 2002.
- 2Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012. Crianças e Adolescentes do Brasil São Paulo: Instituto Sangari; 2012.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Mar 2016
Histórico
- Recebido
06 Jul 2014 - Revisado
10 Jul 2015 - Aceito
12 Jul 2015