Senhor editor,
Interessante o artigo de Fonseca e Costa11. Fonseca EM, Costa NR. Federalismo, complexo econômico-industrial da saúde e assistência farmacêutica de alto custo no Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(4):1165-1176. que avaliou o processo de negociação entre Ministério da Saúde (MS) e governos subnacionais na construção, em 2009, do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF). Entretanto, os achados deste artigo devem ser interpretados com cautela, porque os autores realizaram inferências sem considerar o processo histórico e a profundidade dos debates vivenciados na elaboração e implementação do CEAF. Ao descontextualizar a recentralização, os autores omitiram a complexidade do processo, chegando a conclusões que não refletem a relação interfederativa na concretização dessa política pública.
A construção do CEAF foi iniciada em 2008 com o grupo de trabalho tripartite22. Brasil. Portaria Nº 14, de 19 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a instituição de Grupo de Trabalho com o objetivo de discutir e apresentar proposta para o aprimoramento do Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional - CMDE. Diário Oficial da União 2008; 20 nov. criado para reformular a política de medicamentos de alto custo. Assim, a construção do CEAF retomou a coordenação interfederativa desta política, ampliou o acesso aos medicamentos e deu sustentabilidade econômica, sem provocar verticalização e redução da autonomia decisória dos governos subnacionais, como afirmado pelos autores.
Essa construção demandou profundas alterações no modelo existente33. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Da excepcionalidade às linhas de cuidado: o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Brasília: MS; 2010., em que a centralização foi apenas uma das estratégias, contrariando a afirmação dos autores. O CEAF passou a ser uma estratégia de acesso ao tratamento medicamentoso definido nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, cujas tecnologias são avaliadas na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde do SUS, instância com representação dos três entes federados. Do ponto de vista econômico, ampliaram-se as isenções fiscais e a aplicação do coeficiente de adequação de preços para a totalidade dos medicamentos; bem como a centralização de um conjunto selecionado de medicamentos. Somadas à reorganização das responsabilidades pelo financiamento, essas estratégias permitiram a sustentabilidade econômica dessa política, com a ampliação do acesso e novas incorporações de medicamentos44. Alexandre RF, Domingues, PHF, Bastos EA, Schneiders RE, Nascimento Júnior JM. Acesso aos medicamentos incorporados no SUS: estratégias para garantia da sustentabilidade econômica. Gestão & Saúde 2015; 6(4):3338-3353..
Com a centralização, em cinco anos, foram otimizados R$ 1,4 bilhão, considerando-se a redução dos preços dos medicamentos produzidos sob monopólio, em que o poder de compra do MS é a estratégia econômica mais eficiente55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Componente Especializado da Assistência Farmacêutica: Inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Brasília: MS; 2014.. Esses recursos, somados à ampliação do orçamento do MS, permitiu um crescimento de 33% no número de pessoas tratadas. Além disso, contribuiu para o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, reduzindo a vulnerabilidade nacional no campo dos fármacos e medicamentos, contribuindo para a melhoria da balança comercial com fortalecimento regional.
Portanto, não é de se estranhar que os estados não rejeitaram tal proposta, como se surpreenderam os autores do estudo, pois a construção do CEAF se deu a partir de um amplo espectro de discussões, numa arena em que os atores estavam alinhados em torno da agenda. As propostas pactuadas foram implementadas porque eram estruturantes e mais profundas do que a simples centralização da compra dos medicamentos, como foi concluído pelos autores do estudo.
Referências
- 1Fonseca EM, Costa NR. Federalismo, complexo econômico-industrial da saúde e assistência farmacêutica de alto custo no Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(4):1165-1176.
- 2Brasil. Portaria Nº 14, de 19 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a instituição de Grupo de Trabalho com o objetivo de discutir e apresentar proposta para o aprimoramento do Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional - CMDE. Diário Oficial da União 2008; 20 nov.
- 3Brasil. Ministério da Saúde (MS). Da excepcionalidade às linhas de cuidado: o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica Brasília: MS; 2010.
- 4Alexandre RF, Domingues, PHF, Bastos EA, Schneiders RE, Nascimento Júnior JM. Acesso aos medicamentos incorporados no SUS: estratégias para garantia da sustentabilidade econômica. Gestão & Saúde 2015; 6(4):3338-3353.
- 5Brasil. Ministério da Saúde (MS). Componente Especializado da Assistência Farmacêutica: Inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS Brasília: MS; 2014.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Abr 2016
Reply
Federalismo e medicamentos de alto custo no Brasil
Elize Massard da Fonseca Nilson do Rosário Costa Sobre os autoresOs autores respondem à carta
Agradecemos aos comentários e manifestamos a satisfação em poder retomar algumas questões teóricas e argumentativas que ficaram implícitas no texto.
O objetivo do nosso artigo é realizar uma análise de processo político do desenvolvimento do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) no âmbito do Executivo Federal/Ministério da Saúde (MS). Nestes termos, o texto pode ser lido considerando estritamente as fronteiras de uma análise de processo político, minimizando quaisquer pretensões de avaliação da ação governamental.
A decisão de realizar a análise de processo político tem muitos aspectos positivos e, como toda reflexão científica, também suas restrições. A preocupação do nosso texto não é demonstrar resultados ou argumentar favoravelmente sobre a efetividade e qualidade governamental ou da ação de qualquer ator da sociedade civil. Espera-se que a análise de processo político tenha sucesso em provocar a reflexão sobre processos decisórios na esfera pública, frequentemente reificados como resultado natural de decisões administrativas ou de um pacto setorial virtuoso.
Para desenvolver o texto, recorremos à referência teórica de mudança institucional, para a qual é essencial analisar o processo em perspectiva histórica. Metodologicamente, isto é importante porque uma análise pontual do período de transformação institucional, invariavelmente, enfatizaria apenas o papel da agência neste processo11. Pierson P. Politics in Time: History, Institutions, and Social Analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004.. Diferentemente, investigamos o contexto histórico e, com base na literatura da ciência política, também o processo de negociação das condições de provisão de medicamentos de alto custo no país.
Os atentos comentaristas informam que as alterações na política de medicamentos de alto custo são resultado do grupo de trabalho tripartite em 2008. Portanto, se havia uma clara ineficiência na compra descentralizada de medicamentos de alto custo, com assimetria no poder de compra entre Estados, por que esta decisão não foi tomada anteriormente? Ao tentar responder este questionament abordamos a tensão centralização x descentralização que tem sido bastante reificada na produção intelectual sobre o federalismo e a política de saúde brasileira. Essa objetivação impede que sejam questionadas as falhas [ou virtudes] da coordenação federativa por força do conflito de interesses e do poder de veto das instâncias regionais, locais e mesmo empresarial. O país padece nos dias atuais de um seriíssima crise sanitária que interroga as falhas de coordenação na vigilância epidemiológica e no saneamento, o que ressalta a pertinência da reflexão sobre os processos decisórios no âmbito federativo.
Nesse sentido, consideramos muito importantes as afirmações dos comentaristas sobre a atuação do CEAF, que teria ampliado o acesso aos medicamentos e a sustentabilidade econômica da política pública sem provocar verticalização e redução da autonomia decisória dos governos subnacionais. Os autores afirmam ainda que o novo arranjo “contribuiu para o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, reduzindo a vulnerabilidade nacional no campo dos fármacos e medicamentos, contribuindo para a melhoria da balança comercial com fortalecimento regional”.
Entretanto, estes efeitos não explicam a decisão da recentralização. Reafirmamos a relevância de analisar, em perspectiva diacrônica, os eventos cruciais que levaram à decisão de tamanha relevância política. Nossos achados sugerem que a decisão da recentralização é explicável pela eficácia dos mecanismos de coordenação do governo federal.
Não resta dúvida que afirmações de agentes públicos sobre a experiência de implantação bem sucedida de uma política de governo devem motivar pesquisas independentes que ratifiquem, ou não, os resultados reivindicados. Defendemos a importância estratégica das pesquisas independentes sobre as decisões governamentais diante da severa e inquietante crise de confiança em relação à esfera pública em curso no país.
Referências
- 1Pierson P. Politics in Time: History, Institutions, and Social Analysis New Jersey: Princeton University Press; 2004.