Resumo
Trata-se de um estudo sobre os referenciais teóricos que influenciaram os programas de saúde escolar no Brasil, apoiada na experiência do Rio de Janeiro. Utiliza da literatura brasileira desde meados do século passado até o presente e da internacional sobre a avaliação em promoção da saúde. Analisam-se as propostas de domesticação de comportamentos a partir de princípios higienistas, outras empenhadas na criação de uma disciplina específica sobre saúde no currículo escolar, e ainda aquelas apoiadas em perspectiva clínico-assistencial. Em período mais recente analisa a reaproximação dos dois setores a partir de um modelo vinculado à promoção da saúde. O artigo demonstra a importância dos diferentes referenciais teóricos para a compreensão das ações e estratégias sintetizadas em uma matriz. Explicita, ainda, a influência dos contextos históricos em que se dá o diálogo e a definição de ações entre educação e saúde em uma difícil articulação de práticas e saberes entre os dois setores.
Promoção da saúde; Educação em saúde; Práticas em saúde pública; Saúde na escola; Intersetorialidade
Introdução
Questões da saúde podem ser problematizadas no cotidiano de diferentes espaços sociais e de maneiras distintas. Melo11. Melo JAC. Educação sanitária: uma visão crítica. São Paulo: Cortez; 1987. refere que como práticas sociais, Educação e Saúde sempre estiveram articuladas. Nas escolas públicas de ensino fundamental questões referentes à saúde surgem nas salas de aula com diferentes representações, por professores, alunos, familiares, expressando preocupações com melhores condições de saúde e qualidade de vida. Por outro lado, questões relacionadas à educação e não problematizadas ou resolvidas pela escola, parecem ter como única alternativa os serviços de saúde22. Valla VV, Hollanda E. Fracasso escola, saúde e cidadania. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EM, organizadores. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v. II. p. 103-145. com a expectativa de resolvê-los na ótica médica.
Escolas do sistema público de ensino representam, historicamente, espaços importantes para práticas e vivências em saúde presentes nas relações entre os sujeitos que convivem nesse cenário. Fatores determinantes das condições de saúde e doença podem ser problematizados e analisados no espaço escolar. A escola como instituição se define por sua função de ensino; mas local em que saúde surge como tema recorrente de aprendizagem. Entretanto, problematizar saúde na escola se deu fundamentalmente em torno do controle e da prevenção do adoecimento e de situações de risco e agravos à saúde, pela vigilância epidemiológica e sanitária, e assistência clínico-terapêutica. Na trajetória da educação em saúde perdurou uma lógica higienista e preventivista, com componentes normativos e conteúdo pré-definido sobre o que deveria ser feito e discutido em saúde nas escolas33. Silva CS. O fracasso do(a) escola(r): questão de ótica. Rompendo o ciclo fechado de educação e saúde com a anamnese [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 1991.
4. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999.-55. Bodstein RC. The complexity of the discussion on effectiveness and evidence in health promotion practices. Promotion & Education 2007; 14(Supl. 1):16-20..
Hortênsia Hollanda, pioneira na crítica à lógica higienista, iniciou na década de 50 a abertura da educação em saúde valorizando a participação da comunidade66. Schall V. Alfabetizando o corpo: o pioneirismo de Hortênsia Hollanda na educação em saúde. Cad Saude Publica 1999; 15(Supl. 2):149-159., ao propor construir com a comunidade um saber para a vida a partir do referencial de Paulo Freire66. Schall V. Alfabetizando o corpo: o pioneirismo de Hortênsia Hollanda na educação em saúde. Cad Saude Publica 1999; 15(Supl. 2):149-159..
Recentemente, a redefinição do debate sobre saúde na escola emergiu do campo da promoção da saúde77. Kickbush I. Life-styles and health. Soc Sci Med 1986; 22(2):117-124.
8. Rootman I, Goodstadt M, Potvin L, Sprigett J. A framework for health promotion. In: Rootman I, Goodstadt M, Hyndman B, McQuee DV, Potvin L, Springett J, Ziglio E, editors. Evaluation in health promotion: principles and perspectives. Geneva: WHO; 2001. p. 7-38.-99. Potvin L, Gendron S, Bilodeau A. Três posturas ontológicas concernentes à natureza dos programas de saúde: implicações para a avaliação. In: Bosi MLM, Mercado FJ, organizadores. Avaliação qualitativa de programas de saúde: enfoques emergentes. Petrópolis: Vozes; 2006. p. 65-86.. Ao invés da ênfase exclusiva nos fatores e nas características biológicas, a saúde é compreendida como produto da vida cotidiana e abrange aspectos socioculturais ligados às condições de vida. Esse debate ganha força e reconhecimento no Brasil1010. Hartz Z. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000.,1111. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2005. p. 15-38. e reafirma a escola como espaço relevante para construção de cenários mais favoráveis à vida com qualidade.
Historicamente, foi reconhecida a diversidade de estratégias voltadas para inserção da saúde como uma questão para a escola: por um lado, modelos que visam à domesticação de condutas e comportamentos de alunos44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999., e por outro, práticas educativas, relacionadas à educação popular de estímulo à capacidade crítica e autônoma dos sujeitos e exercício de controle das suas condições de saúde e vida em sintonia com os princípios da promoção da saúde1212. Brasil. Ministério da Saúde (MS). 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília: MS; 1987..
Com base nos referenciais teóricos da promoção da saúde, buscamos compreender as distintas concepções e interfaces entre saúde e educação que as políticas e práticas de saúde na escola adquirem nos diversos contextos, internacional, nacional e local, nos últimos 80 anos. A organização, a estrutura e o desenvolvimento destas políticas e práticas representam diferentes concepções sobre saúde e educação e a articulação entre esses dois saberes33. Silva CS. O fracasso do(a) escola(r): questão de ótica. Rompendo o ciclo fechado de educação e saúde com a anamnese [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 1991.
4. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999.-55. Bodstein RC. The complexity of the discussion on effectiveness and evidence in health promotion practices. Promotion & Education 2007; 14(Supl. 1):16-20..
Estratégias Metodológicas
A opção teórico-metodológica do estudo foi fundamentada na abordagem de avaliação de programas1313. Weiss CH. Evaluation: methods for studying programs and policies. New Jersey: Prentice Hall; 1998.,1414. Patton MQ. Qualitatite research & evaluation methods. 3ª ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002. em particular da promoção da saúde1515. Silva CS. A escola promotora de saúde na agenda política do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2002.. Realizou-se recuperação e identificação de documentos oficiais, principalmente de publicações referentes à saúde escolar, selecionadas desde a década de 20 até 2009, tais como: relatos, artigos, registros, livros e legislação referentes aos chamados programas de saúde na escola ao longo desse período; relatórios e registros de atividades do programa municipal de saúde escolar do Rio de Janeiro, da Sociedade Brasileira de Pediatria, da Associação Brasileira de Saúde Escolar, da Iniciativa Escola Promotora de Saúde da OPAS1616. Organización Panamericana de Salud (OPAS). Escuelas promotoras de salud: modelo y guia para la acción. Washington: OPAS; 1996.; da Política Nacional de Promoção da Saúde1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de promoção da saúde. Brasília: MS; 2006. e do Programa de Saúde na Escola do Ministério da Saúde e Ministério da Educação, referência nacional em saúde na escola44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999.,55. Bodstein RC. The complexity of the discussion on effectiveness and evidence in health promotion practices. Promotion & Education 2007; 14(Supl. 1):16-20.,1818. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2007; 6 dez.. O Rio de Janeiro, base deste estudo, como capital federal do país, de certo modo, capitaneou o debate nacional e foi o locus dos primeiros serviços públicos de saúde ligados às escolas de ensino básico1919. Silva NJA. Urbanização e saúde escolar no município do Rio de Janeiro. In: Binsztok J, Benathar L, organizadores. Regionalização e urbanização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1979. p. 101-130..
A revisão teve por base diretrizes e justificativas teóricas que inspiraram a definição de políticas e programas na cidade do Rio de Janeiro e nos rumos de propostas articuladoras entre saúde e educação, que presumiam práticas intersetoriais. Procurou-se identificar as matrizes teóricas utilizadas em diferentes contextos históricos e políticos, dando destaque aos conceitos de saúde1111. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2005. p. 15-38.,1414. Patton MQ. Qualitatite research & evaluation methods. 3ª ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002. que tomavam por base e que por sua vez permitiam analisar as estratégias de saúde na escola que utilizavam. Assim, foi possível traçar similaridades e contrastes entre eles e identificar modelos diferentes de saúde na escola no âmbito nacional.
Quatro fases no Desenvolvimento da Saúde Escolar no Brasil
1. Modelo higienista e disciplinar
O marco inicial da saúde escolar no Brasil remete ao início do século XX na lógica da modernização e higienização do espaço urbano, como condição fundamental para o combate às epidemias por Pereira Passos2020. Instituto Pereira Passos (IPP). O Rio de Pereira Passos. Rio de Janeiro: IPP; 2009., prefeito do Rio de Janeiro. Problemas sociais, como de urbanização, precárias condições de transporte, saneamento e higiene com lugares e moradias insalubres favoreciam o aparecimento e a propagação de doenças como varíola, febre amarela, tuberculose e cólera. Das propostas de Passos de higiene sanitária, destaca-se a criação da Assistência Médica ao Escolar, primeiro sistema oficial de saúde ligado à Secretaria de Educação do Distrito Federal. Em 1910 foi criado o primeiro serviço de saúde pública ligado ao ensino: Serviço de Inspeção Sanitária Escolar da Cidade do Rio de Janeiro1919. Silva NJA. Urbanização e saúde escolar no município do Rio de Janeiro. In: Binsztok J, Benathar L, organizadores. Regionalização e urbanização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1979. p. 101-130.. Zanetta de Lima e Turini2121. Zanetta de Lima G, Turini B. Exame médico periódico para educação física: vale a pena? Caderno Cedes 1985; 15:62-70. citam suas principais ações: vigilância higiênica da escola; profilaxia de moléstias transmissíveis; inspeção médica individual de alunos; educação sanitária de alunos e professores; e fiscalização do exercício físico escolar.
Em 1924, Carlos Sá constituía no Rio de Janeiro os “pelotões da saúde”, agrupamentos de alunos que seguiam decálogo de regras para saúde inclusive morais, com disciplina militar2222. Oliveira CA. Projeto de saúde escolar. Rio de Janeiro: SEE/IMS; 1983.. Foi a Higiene Escolar, calcada no modelo alemão de “Polícia Médica”2323. Frank JP. Sistema completo de polícia médica. apud: Trindade J. Pediatria Moderna. Saúde escolar 1985; 20:(9)., que originou a saúde escolar. Para reorganizar e reformar a sociedade, a proposta tinha como base um modelo de saúde na escola, calcado em princípios higienistas e eugênicos.
Esse modelo de intervenção sanitária nas escolas públicas tendia a (re)ajustar escolares e professores a comportamentos saudáveis, para evitar adoecimento e conduta fora de padrões morais definidos pelo Estado. E, portanto, responsabilizava a população pela miséria e situação insalubre da cidade. A preocupação com o corpo sadio introduziu as aulas de educação física nas escolas públicas.
Nesse período, a ação da Saúde na Educação seguiu a lógica de atuar em diversos espaços e instituições para debelar e controlar epidemias. Silva33. Silva CS. O fracasso do(a) escola(r): questão de ótica. Rompendo o ciclo fechado de educação e saúde com a anamnese [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 1991.,44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999. apontou que o retorno da febre amarela em 1928, associada à conjuntura sanitária, fortaleceu a intervenção higienista, dando à saúde escolar uma nova posição hierárquica nos serviços de saúde. Transformou-se a Inspeção Médica Escolar da Higiene e Saúde Pública em Subdiretoria Técnica (1928) e mais tarde, em Superintendência Geral de Educação, de Saúde e Higiene Escolar (1933). Costa2424. Costa NR. Estado, educação e saúde: a higiene da vida cotidiana. Caderno Cedes 1987; 4:5-24. mostrou que até a década de 1940, além de proposições eugênicas, a prática higiênica se propagou como ideologia totalitária para a vida cotidiana e pautou o serviço de higiene escolar. Fontenelle2525. Fontenelle JP. Compêndio de higiene. Rio de Janeiro: Guanabara; 1948. define escola higiênica reafirmando o modelo: A escola higiênica e que funciona com hábitos higiênicos contribui para educar o povo todo. As crianças adquirem bons costumes e os propagam em casa, onde desejam que tudo se passe como na escola, cujo meio puro e sadio facilmente se acostumam.
A tentativa de evitar doenças e comportamentos sociais indesejáveis no ambiente escolar seguiu inspirando propostas mais recentes de saúde na escola. São exemplos, as campanhas preventivas de vacinação contra doenças e epidemias de meningite e sarampo na década de 70 e cólera e dengue na década de 80.
2. O discurso dos especialistas da Saúde e sua influência na educação
O aparato médico odontológico do Departamento de Saúde Escolar da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura do Distrito Federal funcionou de modo eficiente de 1940 a 19641919. Silva NJA. Urbanização e saúde escolar no município do Rio de Janeiro. In: Binsztok J, Benathar L, organizadores. Regionalização e urbanização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1979. p. 101-130.. Havia 22 Distritos de Saúde Escolar, Serviço de Saúde de Ginásios e Escolas Técnico-Profissionais e vários hospitais com várias especialidades para atender os escolares. Esse modelo especializado de médicos e dentistas atuando na escola pareceu adequado pelo encaminhamento dos escolares às clinicas especializadas, cabendo a Secretaria de Educação transportar alunos aos serviços de saúde. Com o crescimento da população, da estrutura administrativa e escassez de recursos humanos e outros, o transporte de alunos aos serviços passou a ser tarefa dos pais, que como membros das classes populares, não conseguiram atender a essa demanda e foram culpabilizados pelo fracasso do programa.
A conjuntura desenvolvimentista dos anos 50, com altos índices de repetência e baixo desempenho dos escolares, inspirou propostas de “biologização” e “naturalização” de questões relacionadas à aprendizagem escolar. A resposta do setor saúde à repetência e à evasão escolares para tentar equivocadamente resolvê-las foi criar os exames clínicos no espaço escolar, visando aumentar desempenho e minimizar dificuldades na aprendizagem dos alunos, o que era diagnosticado e rotulado pelas autoridades como “fracasso escolar”. Assim, programas de saúde na escola passaram a ser vistos como proposta importante voltada para promover a “boa aprendizagem” entre os escolares.
Patto2626. Patto MHS. A produção do fracasso escolar. São Paulo: T. A. Queiroz; 1990., estudando a produção do fracasso escolar faz critica contundente à psicologia educacional que, desde os anos 30, reforçava o modelo médico e orientava práticas de diagnóstico e tratamento de distúrbios psíquicos como causas e justificativas do “fracasso escolar”. Os diferentes lócus de atuação de médicos e psicólogos variaram dos hospitais psiquiátricos às clínicas de higiene mental para os serviços de inspeção escolar. Atuaram, assim, nos departamentos de assistência ao escolar de secretarias de educação, como coordenadores de equipes multidisciplinares de atendimento ao escolar. Essa mudança levou os especialistas da área da saúde a se estabelecerem, paulatinamente, no espaço da educação e em particular no da escola de ensino fundamental. Com a expectativa de que resolvessem as supostas causas do fracasso escolar pelo viés biomédico, apenas fortaleceram o processo de medicalização da aprendizagem2727. Collares CAL, Moyses MAA. Fracasso escolar: uma questão médica? Caderno Cedes 1985; 15:7-16., pois desconsideravam as múltiplas causas do chamado “fracasso escolar” (repetência e evasão escolar). Desde então, o foco das ações recaiu sobre crianças em situações socioeconômicas desfavoráveis. Sem respostas e na mesma ótica, nas décadas seguintes foram priorizados investimentos em programas de merenda escolar (desnutrição) e de triagens neurológicas, visuais e auditivas.
Nesse contexto, as propostas persistiram em apontar questões isoladas e específicas como responsáveis pelos problemas de aprendizagem nas escolas. A desnutrição passou a ser vista como causa do fracasso escolar no imaginário de profissionais de saúde e de autoridades responsáveis pelo sistema educacional. Com esses pressupostos, houve grande destaque ao programa de Merenda Escolar, que, se por um lado trouxe inegáveis benefícios, não chegou a diminuir o chamado ‘fracasso escolar’22. Valla VV, Hollanda E. Fracasso escola, saúde e cidadania. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EM, organizadores. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v. II. p. 103-145.. Tais concepções “justificavam” a saúde como condição básica para a aprendizagem e associavam as dificuldades das classes populares em “ter saúde e a aprender” à pobreza e à miséria em que viviam e que lhes levava, portanto, ao adoecimento e à ignorância.
Moysés et al.2828. Moysés MAA, Lima GZ, Collares CAL. Desnutrição, rendimento escolar, merenda uma querela artificial. In: Valente FLS, organizador. Fome e desnutrição: determinantes sociais. 2ª ed. São Paulo: Cortez; 1989. p. 95-107., na mesma linha, refutaram a ideia da desnutrição como barreira para a aprendizagem. Valla e Hollanda22. Valla VV, Hollanda E. Fracasso escola, saúde e cidadania. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EM, organizadores. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v. II. p. 103-145. afirmaram que apesar da gravidade da situação da fome no Brasil, ela não era a principal causa do fracasso escolar. E Marques2929. Marques AN. Pediatria social: teoria e prática. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 1986. apontou que crianças gravemente desnutridas no início da vida não chegavam sequer aos bancos escolares e as formas mais leves de desnutrição não causavam alterações na estrutura e nas funções do cérebro, portanto, a desnutrição não poderia justificar o fracasso escolar. Porém, até a década de 60 este foi o modelo predominante.
Em 1964, no Governo Carlos Lacerda, foi criada a Divisão de Saúde no Departamento de Saúde Escolar e extinto o Serviço de Saúde de Ginásio e Escolas Técnico-Profissionais. Ao mesmo tempo, os hospitais que estavam no setor educação foram redirecionados ao setor saúde enquanto outras unidades de atendimento aos alunos foram para a Secretaria de Serviços Sociais. Vale registrar que a despeito disto, a atuação dos profissionais de saúde permanecia com base em práticas clínico-assistenciais e terapêuticas. No regime ditatorial, formulações de políticas e programas eram definidas por Decretos do Estado e o modelo era imposto de forma autoritária sem a participação da comunidade escolar, o que diminuiu a chance de mudança de modelo de programa.
Silva44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999.,1515. Silva CS. A escola promotora de saúde na agenda política do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2002. relata que os programas de saúde escolar, ao assumirem a tarefa de diagnosticar e tratar eventuais problemas de aprendizagem e de repetência dos alunos, reforçaram os aspectos e os diagnósticos neurológicos, psiquiátricos e psicológicos como responsáveis pelo fracasso escolar. Dessa forma, culpavam-se os alunos pelos problemas da escola e pelas enormes desigualdades sociais. Desta época eclodem os diagnósticos de distúrbio de aprendizagem, disfunção cerebral, déficit neurológico e distúrbios de comportamento.
3. Especialidades médicas no espaço escolar
Com a denominação de Medicina Escolar na década de 1970, a saúde escolar priorizou exames médicos na inspeção periódica da saúde dos alunos e criou os Registros de Saúde1919. Silva NJA. Urbanização e saúde escolar no município do Rio de Janeiro. In: Binsztok J, Benathar L, organizadores. Regionalização e urbanização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1979. p. 101-130.. Tais exames deveriam ser feitos quando do ingresso do aluno à escola e seriam repetidos anualmente, nas aulas de educação física, mas isto ocorreu sem regularidade e poucos alunos eram examinados. Silva33. Silva CS. O fracasso do(a) escola(r): questão de ótica. Rompendo o ciclo fechado de educação e saúde com a anamnese [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 1991.,44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999.,1515. Silva CS. A escola promotora de saúde na agenda política do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2002. critica a ineficiência dos exames realizados, pois os índices de repetência e evasão permaneciam inalterados e eles não detectavam riscos nem expressavam mudanças nas condições de saúde. A consequência mais perversa foi priorizar e exigir exames para alunos rotulados como portadores de “distúrbios e/ou dificuldades de aprendizagem”.
Em 1972, a saúde escolar no Rio de Janeiro se transferiu da Secretaria de Educação para a de Saúde (Departamento de Saúde Pública da Superintendência de Serviços Médicos/SUSEME), mas o modelo persistiu. A medicina escolar constituiu grande aparato médico com implantação de gabinete médico e dentário nas escolas. Foram mantidos registros de saúde, prioritários para alunos com problemas de aprendizagem da 1ª série de escolas, para tratamentos e diagnósticos por equipes multiprofissionais nas seções de Medicina Escolar (composta por, no mínimo, pediatra, psiquiatra, odontólogo, psicólogo, enfermeiro, assistente social e orientador educacional), inspeção de prédio escolar, das instalações e do material pedagógico3030. Rio de Janeiro. Secretaria de Estado da Saúde (SES). Ordem de serviço “E”: SCS/18, SCS/19 e SCS/21. Rio de Janeiro: SES; 1974/1975. (mimeo).
Propostas da Saúde que reforçaram a perspectiva assistencialista e terapêutica, foram bem aceitas pela Educação, que atribuía o “fracasso escolar” às más condições de saúde dos alunos. Apesar de descrita nas diretrizes dos programas, a articulação entre os setores de educação e de saúde não era efetiva. Esses programas tampouco pareciam atender às necessidades da população em educação e saúde.
Este modelo “institucionalizou” a cultura de encaminhamentos aos especialistas e peregrinação de escolares nos serviços de saúde. Avanços tecnológicos na medicina, na indústria farmacêutica e a ênfase na especialização deram suportes para esse modelo de saúde na escola. O problema se agravou pela incapacidade de especialistas e serviços médicos em darem diagnósticos precisos em tempo hábil ao período curricular. Mesmo presente na sala de aula33. Silva CS. O fracasso do(a) escola(r): questão de ótica. Rompendo o ciclo fechado de educação e saúde com a anamnese [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 1991.,44. Silva CS, organizador. Saúde escolar numa perspectiva crítica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 1999., a interminável espera de atendimento pelos especialistas excluía o aluno do processo de aprendizagem.
Vale destacar dificuldades da ação multiprofissional com base individualista e compartimentalizada do aluno. Mattos3131. Mattos PC. Equipe multiprofissional e interdiciplinaridade. In: Ramos BEO, Loch JE, organizadores. Manual de saúde escolar II. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 1994. critica tendência da medicina escolar de abandonar os registros de saúde e valorizar equipes multiprofissionais, cuja formação centrada no médico, favorecia a prática individualista e o raciocínio clínico-terapêutico de cada profissional isolado, com falsa ideia de integração multiprofissional.
O modelo Medicina Escolar, reforçado pelos Programas Especiais de Medicina Escolar (PROEME) de 1976 da SMS do Rio de Janeiro3232. Souza JCF. Introdução, objetivos e importância da equipe multiprofissional. In: Souza J, organizador. Manual de saúde escolar. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira Pediatria; 1988., persistiu com registros de saúde, acuidade visual, auditiva, controle de vacinação e criou a ficha de encaminhamento de aluno “apto” ou “não apto” para aprendizagem. Essa questão de aptidão introduziu o atendimento em saúde mental. Os psicólogos, profissionais que permaneceram na Educação2626. Patto MHS. A produção do fracasso escolar. São Paulo: T. A. Queiroz; 1990., foram para a Saúde fortalecendo as equipes multiprofissionais para atender aos “problemas de aprendizagem”.
No final dos anos 1970 cresceu o envolvimento de profissionais de saúde com a Saúde Escolar, pelo aumento de congressos nessa área com eventos patrocinados pela Sociedade Brasileira de Pediatria (Comitê de Saúde Escolar) e a Associação Brasileira de Saúde Escolar (1968). O caráter nacional dessas associações ampliou a discussão com grupos de profissionais de São Paulo, que levou à criação do Grupo Informal de Estudos e Discussões em Saúde Escolar3232. Souza JCF. Introdução, objetivos e importância da equipe multiprofissional. In: Souza J, organizador. Manual de saúde escolar. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira Pediatria; 1988..
Em substituição à Medicina Escolar surgiram comissões mistas de saúde e educação pelo Plano Integrado de Atuação, no nível central, regional e local da gestão. Com coordenação do setor Saúde, cada parte da comissão recebeu incumbência específica: à Saúde normatizar atividades e critérios de saúde e à Educação, atividades e critérios psicopedagógicos que deveriam ser encaminhados aos dois setores. Com avanços frente a modelos anteriores, este aparece em propostas mais recentes, nas quais predominou a hierarquia definindo normas, sem garantir ação efetiva e compartilhada.
Na década de 1980 é valorizado o modelo de comissões de educação e saúde com tendência de permanecer a assistência à saúde dos escolares nos próprios serviços de saúde, retirando-a do bojo da Educação. O Departamento de Proteção Materno-Infantil da Direção Geral de Saúde Pública respondia pela normatização das atribuições da Medicina Escolar com seus Programas Especiais, direcionados aos Centros Municipais de Saúde com Unidades Especializadas para atender as escolas de sua abrangência. Registraram-se tentativas de ter um “médico especialista” em saúde escolar, principalmente pela Sociedade Brasileira de Pediatria, como subespecialista da pediatria, profissional que conduziria a equipe mista. A proposta não vingou com o argumento de que tantas áreas especializadas não caberiam no domínio de um único profissional.
Com a Conferência de Alma-Ata, a ênfase na atenção primária e na prioridade de atenção à saúde da criança de zero a seis e da mulher, a organização dos serviços de saúde priorizou a proteção materno-infantil e implantou as ações básicas de saúde. Esta prioridade, que representou enormes e relevantes avanços na atenção à saúde, por outro lado, retirou de cena a atenção à saúde do grupo de escolares, entendidos como tal pela criança de sete a dez anos, por ser a faixa etária esperada para o ingresso na escola de ensino fundamental (a saúde não definiu ações para essa faixa de idade, voltando-se, a seguir, para a atenção à saúde do adolescente, a partir dos 12 anos).
CIEP e CIAC: equipamento médico dentro da escola
Na década de 80 vale citar duas experiências na cidade do Rio de Janeiro: o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) e a experiência local do Centro de Saúde José Paranhos Fontenelle, no subúrbio da Penha.
A implantação dos CIEP3333. Ribeiro D. O livro dos CIEPS. Rio de Janeiro: Bloch; 1986. com repercussão nacional foi reaproveitada no Governo Collor, rebatizado de Centro Integrado de Atendimento à Criança (em 1992, Centro de Atenção Integral à Criança, CIAC). Ambos reconduziram equipes e equipamentos de saúde para o espaço da escola, com consultórios médico-odontológicos.
O cenário político do Rio de Janeiro no Governo Leonel Brizola (1982) gerou expectativas mais efetivas em relação à condução das políticas de saúde e educação. A proposta do CIEP era de reorganização da educação, tal como a reforma pedagógica de Darcy Ribeiro3333. Ribeiro D. O livro dos CIEPS. Rio de Janeiro: Bloch; 1986.. O modelo foi questionável por exigir aparato médico dentro da escola e supor que ações médico/odontológicas seriam determinantes para a qualidade do ensino.
O CIEP visou ações de medicina preventiva, educativas e assistência curativa. Ao corpo médico da escola caberiam: exames clínicos para admissão do aluno, avaliação antropométrica, detecção de problemas de saúde por avaliação clínica individual, cobertura vacinal, acompanhamento nutricional, odontológico e triagem visual. As equipes de saúde seriam constituídas com médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, dentistas e psicólogos se necessários. Com objetivo de integrar o médico no processo pedagógico e melhorar as condições físicas, psíquica e social dos alunos, houve idealização do profissional de saúde que deveria ter “atilada experiência clínica, vivência de um pedagogo, sabedoria de um filósofo e visão de um sociólogo”3333. Ribeiro D. O livro dos CIEPS. Rio de Janeiro: Bloch; 1986.. Mesmo com permanência integral dos alunos na escola e atividades culturais, artísticas, alimentação e esportes, o modelo não avançou além do aspecto clínico-assistencial e a lógica terapêutica persistiu.
A Experiência de Saúde Escolar na Penha (RJ)
Na contramão do modelo CIEP/CIAC, a experiência local desenvolvida no Centro de Saúde da Penha constituiu iniciativa inovadora, pois propunha estratégias mais abrangentes em saúde, com integração de serviços e iniciativas de educação, atores estratégicos e sociedade civil. Valla e Hollanda22. Valla VV, Hollanda E. Fracasso escola, saúde e cidadania. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EM, organizadores. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v. II. p. 103-145. questionaram o papel tradicional do Centro de Saúde ao restringir a concepção de saúde e a participação da sociedade civil. Os autores criticaram os serviços de saúde baseados na concepção ‘biologicista’ e propuseram sua interação com as escolas em suas bases territoriais. Foi alternativa para enfrentar o fracasso escolar, diferente daquelas propostas pelos programas oficiais. Nessa experiência, o modelo apontou benefícios da participação da comunidade, agregando saberes e práticas para os serviços de saúde e de educação. Profissionais de saúde, professores, pais e responsáveis interagiam na formatação dos serviços de acordo com necessidades e demandas da comunidade. Grupos de trabalho no Centro de Saúde facilitavam conversas entre diversos atores e nas “Semanas de Saúde Escolar” os profissionais de saúde iam às escolas para atendimentos clínicos necessários. Mas a interlocução com todos os envolvidos era valorizada, acompanhando os Conselhos de Classe e identificando no coletivo as principais demandas da escola e comunidade.
Ao ampliar a participação de diversos segmentos envolvidos ativamente no debate sobre saúde na escola, como descrito no documento “Educação, Saúde e Democracia: Perspectiva de Transformação”3434. Melo JAC, Gilbert SO, Carvalho SMT, Costa OS, Ávila VLP, Matilda AA. Educação, saúde e democracia: perspectiva de transformação. R. Fac. Educ. 1988; 14(1):87-117., eram flagrantes as dificuldades de diálogo entre saúde e educação, diante da desconfiança e transferência de responsabilidades, geradas por anos de atuação desarticulada. A proposta pressupunha que desconfiança cedesse lugar ao espaço comum de reflexão sobre a necessidade de articulação entre essas práticas sociais. De certa forma era uma proposta diferente, contra-hegemônica, ao modelo do CIEP, desenhado por ilustres intelectuais a frente do governo: Darcy Ribeiro na educação e Oscar Niemeyer na arquitetura. A despeito de investimentos em saúde e inovações na educação, o modelo do CIEP pautou a atenção à saúde de escolares na perspectiva individual e clínico-terapêutica e não qualificou o diálogo e a interação entre saúde/educação na perspectiva de integração entre os dois setores.
Ações entre os dois setores dentro do mesmo espaço físico não produziram mudanças na direção de um compartilhamento intersetorial de planos, objetivos, metas, recursos e resultados, como veremos no modelo da promoção da saúde1111. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2005. p. 15-38..
4. Novas abordagens a partir da promoção da saúde
Escolas Promotoras de Saúde (EPS): inovação no modelo de saúde na escola?
A Conferência Internacional de Promoção da Saúde1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de promoção da saúde. Brasília: MS; 2006. e 8ª Conferência Nacional de Saúde1212. Brasil. Ministério da Saúde (MS). 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília: MS; 1987. deram novos referenciais para o conceito de saúde, valorizando qualidade de vida e direitos de cidadania. No modelo EPS, a atuação proposta em saúde na escola foi a da promoção, com participação e construção coletiva, no exercício de empoderamento da comunidade e autonomia dos sujeitos, que com habilidades teriam mais saúde e qualidade de vida.
No contexto internacional, a OPAS propôs reverter o caráter biomédico e assistencialista dos programas de saúde escolar, revendo o viés autoritário do setor saúde sobre o da educação ao planejar esses programas3535. Organización Panamericana de Salud (OPAS). Memoria de la primera reunión y asamblea constitutiva red latinoamericana de escuelas promotoras de la salud. San Jose: OPAS; 1996.. O contexto era favorável para configurar proposta de integralidade das ações de saúde, reconhecendo dinâmicas sociais e políticas e a centralidade das relações intersetoriais para promover saúde na escola. O envolvimento da comunidade escolar para promoção da saúde era o fator chave, com relevância em capacitar professores e o acesso aos serviços de saúde. Mas persistia em priorizar ações normativas para hábitos saudáveis, oferta de alimentação nutritiva em refeitórios escolares, reforço às metodologias educativas, formais e não formais, e novas habilidades como oportunidade para desenvolvimento humano, paz e equidade.
A OMS criou a Rede Europeia de Escolas Promotoras de Saúde e publicou nas regionais, Guia sobre Escolas Promotoras de Saúde3636. World Health Organization. Health promoting schools. Regional guidelines development of health-promoting-schools: a framework for action. Manila: WHO;1996.. Na região das Américas, OPAS realiza, na Nicarágua3535. Organización Panamericana de Salud (OPAS). Memoria de la primera reunión y asamblea constitutiva red latinoamericana de escuelas promotoras de la salud. San Jose: OPAS; 1996., a 1ª Reunião da Rede Latino Americana de EPS (RLEPS) e busca parcerias com agências da área da educação como EDC, UNESCO e UNICEF, FAO e Banco Mundial para revisar os programas de saúde escolar. Com a RLEPS alguns países da região se mobilizaram para implantar esse modelo. Outros preferiram considera-las em seus contextos e características próprias.
A EPS propunha que para aprender e se beneficiar dos investimentos da escola, crianças e jovens precisavam ter boa saúde como pré-requisito para educação. Apesar da validade de seus princípios, na prática os avanços foram limitados para gerar novos saberes e ações integradoras. Porém, sinalizou necessidade de mudar e de transformar.
Como estratégia, a OPAS procurou identificar experiências exitosas nas Américas e Europa e premiou em concursos a experiência brasileira da escola municipal do Rio de Janeiro3737. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Educação (SME). Escola Municipal Alexandre de Gusmão. Rio de Janeiro: SME; 2007., por incluir questões de saúde no projeto político pedagógico.
O Brasil não chegou a instituir política de saúde na escola com base na EPS, mas valorizou experiências regionais e locais, no Rio de Janeiro/RJ, Embú/SP, Maceió/AL, Curitiba/PR e Palmas/TO3838. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Escolas promotoras de saúde: experiências no Brasil. Brasília: OPAS; 2007.. Todas relevantes para a produção de conhecimento sobre saúde na escola, valorizando os contextos locais, interesses e desejos das comunidades e territórios.
Em 2005 (Governo Lula) valorizou-se a escola como espaço onde se constituem cidadãos de direitos, sujeitos sociais críticos, criativos e construtores de conhecimento e de relações que fortalecem a participação na busca de uma vida mais saudável. Houve aproximação mais articulada do Ministério da Saúde com o da Educação com produção da saúde na escola apoiada em princípios participativos, democráticos e públicos. A sua base foi envolver a comunidade escolar, alunos, trabalhadores, gestores da educação e da saúde, movimentos sociais, associações e outros, com referenciais para reestruturação de propostas pelo Ministério da Saúde (2003). O Departamento de Gestão da Educação na Saúde criou a Coordenação Geral de Ações Populares de Educação na Saúde, baseado na Educação Popular em Saúde, que visou reforçar ações estratégicas de reorientação das práticas de saúde a partir de conhecimentos e saberes compartilhados, de projetos políticos que produzissem novos sentidos nas relações da população e organização do cuidado em saúde3939. Pedrosa JI. Educação popular e promoção da saúde: bases para o desenvolvimento da escola que produz saúde. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Escolas promotoras de saúde: experiências no Brasil. Brasília: OPAS; 2007. p. 77-95.. Denominada de “Escola que Produz Saúde”, a proposta não prevaleceu, mas marcou importante inflexão ao propor que a saúde se deslocasse do campo biológico e da ação biomédica que davam cor às práticas na escola. Propunha valorizar os aspectos históricos sociais, necessidades básicas, crenças e direitos da cidadania4040. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A educação que produz saúde. Brasília: MS; 2005.. Entretanto, foi a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de promoção da saúde. Brasília: MS; 2006. que, posteriormente, redirecionou o debate.
A PNPS pautou a saúde como produção social, complexa e de múltiplos determinantes, defendendo a participação dos sujeitos envolvidos como desafio a política transversal, integrada e intersetorial para dialogar com diversas áreas do setor sanitário e outros do governo, de instituições privadas, não governamentais e a sociedade como um todo.
Entretanto, a PNPS restringiu sua implementação com foco em ações de alimentação saudável, práticas corporais/atividades físicas e ambiente livre de tabaco, priorizadas no biênio 2006-2007 como estratégicas para a construção de indicadores em EPS.
Após vinte anos dos marcos da promoção da saúde1212. Brasil. Ministério da Saúde (MS). 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília: MS; 1987., a Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde4141. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Comissão Determinantes Sociais da Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2008. é considerada no Brasil outro marco pela mudança do modelo biomédico para a promoção da saúde na escola. A Comissão aqueceu o debate ao buscar reversão de outros fatores na determinação das condições de vida dos sujeitos e das comunidades e a compreender a necessidade de enfrentar processos sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais como determinantes dos problemas de saúde e da qualidade de vida da comunidade escolar.
Neste sentido, em suas recomendações, a CNDSS pode contribuir para a formulação de programas de saúde na escola, quando ressalta a relevância de: (a) programas intersetoriais, com desenho e formulação de ações transversais em diferentes setores governamentais; (b) programas setoriais, formulados em diferentes ministérios que se articulem com o contexto local; (c) programas setoriais, formulados por um único ministério, mas abrangendo vários problemas e grupos. Além de assinalar modelo intersetorial com efetiva articulação de atores e instituições nas várias etapas de desenvolvimento e implementação de programas, refere implicar isto em relações horizontais (entre setores) e verticais (entre níveis de esfera de governo).
Contribuições relevantes para ação intersetorial nos programas de promoção da saúde na escola e referências conceituais vêm da valorização e problematização da participação comunitária99. Potvin L, Gendron S, Bilodeau A. Três posturas ontológicas concernentes à natureza dos programas de saúde: implicações para a avaliação. In: Bosi MLM, Mercado FJ, organizadores. Avaliação qualitativa de programas de saúde: enfoques emergentes. Petrópolis: Vozes; 2006. p. 65-86. e da análise da inter-relação das diversas esferas de governo, para determinar a natureza do modelo de governança, como propõem Burris et al.4242. Burris S, Hancok T, Lin V, Herzog A. Emergency strategies for healthy urban governance. Journal of Urban Healthy: Bulletin of the New York Academic of Medicine 2007; 84(Supl. 1):154-163.. Neste sentido, a implantação de um Programa ocorre no âmbito municipal dependendo de condições políticas, organizacionais e de gestão local.
Programa Nacional de Saúde na Escola (PSE)
Além da Política Nacional de Promoção da Saúde1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de promoção da saúde. Brasília: MS; 2006. e da Política Nacional de Atenção Básica4343. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de atenção básica. Brasília: MS; 2006., o Programa de Saúde na Escola (PSE), instituído por decreto presidencial1818. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2007; 6 dez., tem diretrizes na integralidade de ações educacionais e da saúde como esforços de implementação intersetorial e territorial e de articulação horizontal. O trabalho integrado entre os Ministérios da Saúde e Educação prevê diálogo intersetorial e ações mais abrangentes na perspectiva de política nacional de saúde na escola.
O PSE, como proposta de política intersetorial, definiu ações estratégicas a serem realizadas entre 2008 a 2011 por adesão de municípios. O PSE propõe atenção integral à saúde (prevenção, promoção e atenção) de crianças, adolescentes e jovens do ensino público (educação infantil, ensino fundamental e médio, educação profissional e tecnológica, voltada para jovens e adultos). Busca integrar práticas no universo das escolas e das unidades básicas de saúde, com ênfase na atenção primária em saúde por meio da estratégia de saúde da família (ESF) e na lógica do cuidado em saúde. O PSE propõe a escola como espaço comunitário coletivo, dinamizadora de informações e conceitos que contribuirão para comunidades mais saudáveis. Pressupõe promoção da saúde com descentralização e respeito à autonomia federativa, integração e articulação de redes públicas de ensino e de saúde, territorialidade, interdisciplinaridade e intersetorialidade, integralidade, controle social, monitoramento e avaliação permanentes. O PSE prevê articulação de ações do Sistema Único de Saúde (SUS) às ações das redes de educação básica pública, para ampliar o alcance e o impacto nas condições de saúde de estudantes e suas famílias, otimizando os espaços, os equipamentos e os recursos disponíveis.
Foram definidos componentes do PSE: (1) avaliação das condições de saúde; (2) promoção da saúde e prevenção; (3) educação permanente e capacitação dos profissionais e jovens; (4) monitoramento e avaliação da saúde dos estudantes. Contudo, como na PNPS, prioriza aspectos específicos: alimentação, prática de atividade física, uso de tabaco e outras drogas, questões da sexualidade e saúde reprodutiva e de pesquisas4444. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). Rio de Janeiro: IBGE; 2009. para avaliar e monitorar a saúde dos escolares. Modelo que também enfatiza o aspecto assistencial de avaliação clínica, psicossocial, nutricional e bucal dos alunos.
Estudos posteriores poderão qualificar análises da implementação desse modelo, mas vale destacar aspectos positivos, como: (a) criação da Comissão Intersetorial de Educação e Saúde na Escola (CIESE)4545. Brasil. Ministério da Saúde (MS) e Ministério da Educação (MEC). Portaria Interministerial n. 675, de 04 de junho de 2008. Diário oficial da União 2008; 27 jun. como no modelo EPS, para reforço de ações intersetoriais, nos municípios com representação estadual, Conselhos de Educação e de Saúde; (b) valorização da atenção primária em saúde, para ampliar o acesso e a lógica territorial. (c) previsão de recursos federais específicos para implantar o programa. Na saúde: incentivo mensal às ESF e saúde bucal por equipes. Na educação: recursos aos municípios como instrumentos e equipamentos médicos, materiais para formação e qualificação de profissionais das escolas; (d) desenvolvimento de indicadores a partir de atividades de saúde na escola nos municípios. Entretanto, a dicotomia de distribuição de recursos, de tempo e natureza diferentes gerou desconexões na organização dos Projetos Locais nos municípios que aderiram ao PSE4646. Rio de Janeiro. Prefeitura. Termo de adesão municipal do RJ ao PSE. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; 2009. mimeo..
O desafio do PSE nos municípios foi de: respeitar autonomia de gestão, capacidade de organização e política de saúde que definem o modelo desta na escola em cada território e incluir componentes qualitativos que reconheçam boas práticas por modelos de avaliação que superem os restritos indicadores quantitativos voltados às ações de prevenção de risco. O que difere de modelos avaliativos propostos em promoção da saúde88. Rootman I, Goodstadt M, Potvin L, Sprigett J. A framework for health promotion. In: Rootman I, Goodstadt M, Hyndman B, McQuee DV, Potvin L, Springett J, Ziglio E, editors. Evaluation in health promotion: principles and perspectives. Geneva: WHO; 2001. p. 7-38.,4747. Bodstein RC. O debate sobre avaliação das práticas e estratégias em promoção da saúde. Boletim Técnico do SENAC: Rev Educação Profissional 2009; 35(2):7-15.,4848. Salazar L. Efectividad en Promoción de la Salud y Salud Pública. Reflexiones sobre la práctica en América Latina y propuestas de cambio. Santiago de Cali: Programa Editorial Universidad del Valle; 2009..
Em síntese, o Quadro 1 mostra os principais modelos de saúde na escola identificados pela teoria, natureza, característica e dimensão de articulação entre os setores da saúde e da educação.
Considerações Finais
A partir de diversos contextos históricos e referenciais teóricos foi possível analisar a tensão até hoje presente entre os setores da saúde e da educação. O desenvolvimento histórico dessa articulação intersetorial no Rio de Janeiro e no país, tendo como cenário a escola, revelou precariedade das articulações e fragilidade do diálogo intersetorial. O discurso biomédico hegemônico enuncia questões prioritárias sob a ótica da saúde, muito pouco problematizadas pela comunidade escolar nos contextos históricos aqui analisados. Embora tenha variado com os contextos, o discurso permaneceu frequentemente imposto verticalmente sobre as escolas.
Propostas inovadoras, influenciadas pelo debate da promoção da saúde, tentam romper com o discurso hegemônico ao buscar reconhecer o contexto e o papel da escola na construção de saberes e conhecimentos. O arcabouço conceitual da promoção da saúde, como se procurou mostrar, traz novo referencial em que iniciativas mais dialógicas e reflexivas a partir da experiência prática dos atores são centrais. Propostas muito centralizadas e impostas de cima para baixo provocam resistência dos profissionais responsáveis pelas ações, impedindo a necessária troca de saberes e experiência entre os dois setores.
Hoje em dia, estratégias integradas de prevenção e promoção em saúde nas escolas implicam na abordagem que levem em conta o contexto e o reconhecimento da comunidade escolar em sua diversidade como sujeitos de conhecimento e de saberes. Parcerias e ações intersetoriais são mais efetivas quando reúnem e dialogam com a pluralidade de atores institucionais e não institucionais envolvidos e interessados. Portanto, a promoção da saúde constrói estratégias e referências conceituais em que a intersetorialidade é compreendida como processo de inter-relação da Saúde e da Educação1111. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2005. p. 15-38..
A intersetorialidade é hoje em dia tão difundida como estratégia de política pública, mas com pouco alcance ou efeitos positivos. Apesar de planejada e desenhada desde sua implantação, é um processo lento de confiança em diálogo constante. De outro modo, é possível que se transforme em simples justaposição de agendas setoriais distintas sem significar, de fato, uma agenda compartilhada e ação intersetorial4949. Junqueira LAP. A gestão intersetorial das políticas sociais e o terceiro setor. Saúde Soc. 2004; 13(1):25-36.. Portanto, apesar de hoje ser citada em todas as propostas, a ação intersetorial compartilhada entre Educação e Saúde não parece se traduzir em prática inovadora. Nesse sentido, os programas de saúde na escola ainda têm muito que caminhar para avançar em uma perspectiva mais integrada e inovadora. A ação intersetorial precisa ser negociada e incluída na rotina e na prática dos profissionais, permitindo construção de saberes mais dialógicos e contextualizados para políticas de saúde na escola mais efetivas.
Em resumo, como no Quadro 1, a análise identificou os seguintes modelos: (a) higienista, normativo e disciplinar de comportamentos e práticas de saúde, com um claro componente moralista; (b) modelos que agrupam o aparato médico terapêutico especializado, tentando responder pelo fracasso escolar e pelas diversas dificuldades de aprendizagem dos escolares; (c) modelos que criam comissões mistas de educação e saúde redirecionando as ações para o setor Saúde; (d) modelos que reconstroem o serviço de saúde no espaço da escola; e, (e) modelos em que o público alvo é a primeira infância, e que, portanto, desloca a questão para o campo materno-infantil, deixando a saúde do escolar em segundo plano.
Por outro lado, foram vistos modelos de saúde na escola influenciados pelos referenciais de promoção da saúde, como (f) de escola que produz saúde, com ênfase na educação popular em saúde; (g) de escolas promotoras de saúde de iniciativa internacional, que apesar de não se concretizarem como programa ou política nacional de saúde na escola no Brasil, ampliaram a reflexão sobre a revisão dessas práticas em diferentes regiões do país; e (h) desenho atual em desenvolvimento do Programa de Saúde na Escola (PSE), que traz entre seus componentes, a educação permanente como uma estratégia problematizadora (modelo freiriano de educação), mas onde o componente clínico-assistencial permanece ainda muito forte.
Apesar de avanços, diante de diversas propostas intersetoriais foi possível identificar a hegemonia do discurso da biomedicina, com peso considerável no desenho das políticas de saúde, assim como nas concepções de educação. Diante desse cenário, o setor da educação parece não reagir de modo mais proativo às propostas da saúde, não aprofunda o diálogo e não problematiza as mudanças. Assim, a saúde escolar foi concebida mais como produto de uma ação “compensatória” entre setores cujas políticas não atendem às necessidades de saúde e educação da população.
Os cenários políticos e os contextos históricos, como discutidos e analisados, moldaram ações e programas. Recentemente, experiências que priorizam propostas mais dialógicas, participativas e, portanto, bottow up, ao garantir maior envolvimento dos profissionais, garantem também maior efetividade. Ao permitirem aprofundamento da ação intersetorial, bem como a prática de empoderamento da comunidade escolar trazem novo sentido à “saúde”, que não é mais vista como restrita às características biológicas e a fatores de risco e adoecimento. Ao contrário, ampliam a compreensão da saúde como um processo socialmente produzido, portanto, da vida cotidiana e das experiências vivenciadas, no caso analisado, pela comunidade escolar.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2016
Histórico
- Recebido
29 Jan 2016 - Revisado
04 Abr 2016 - Aceito
06 Abr 2016