Resumo
O objetivo do estudo é compreender as alterações recentes na gestão da saúde penitenciária do Brasil, no contexto da emergência da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional e da extinção da Coordenação Nacional de Saúde Prisional. O problema científico abordado é a linguagem das políticas de saúde penitenciária. O referencial teórico-metodológico adotado é o estruturalismo genético de P. Bourdieu, de maneira que uma análise de documentos e pronunciamentos públicos seja conduzida em busca de categorias e classificações estatais. Nota-se a consolidação de uma classificação estatal separando o domínio ‘penitenciário’ do ‘prisional’, bem como a criação da categoria estatal ‘pessoa privada de liberdade no sistema prisional’. A gestão da saúde penitenciária sedimenta-se como uma questão de atenção básica.
Saúde penitenciária; Políticas públicas; Estado; Prisões
Introdução
Recentemente, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) foi instituída por meio da Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 201411. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Legislação em saúde no sistema prisional. Campo Grande, Brasília: Fiocruz Pantanal, MS; 2014.. Na última década outras políticas voltadas para segmentos específicos da população brasileira foram instituídas pelo Ministério da Saúde, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em 2009, ou ainda a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), em 2011; iniciativas intersetoriais também, entre elas o Programa Saúde na Escola com o Ministério da Educação em 2007 e o Plano Nacional de Atividade Física com o Ministério do Esporte em 2009.
O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), instituído por meio da Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 200322. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2004., antecedeu a PNAISP na garantia do direito à saúde das pessoas privadas de liberdade (PPLs), ambos tendo sido assinados pelos Ministros da Saúde e da Justiça.
Segundo estudo de caso desenvolvido no estado de São Paulo, as políticas intersetoriais relacionadas à saúde podem ser de três tipos: 1 – coordenadas pelo setor saúde e que necessitam de outros para serem bem sucedidas; 2 – coordenadas por outro setor, mas que necessitam da participação do setor saúde para serem efetivas; 3 – genuínas, que não são lideradas por um único setor mas sim por um órgão intersetorial criado especificamente para sua coordenação33. Tess B, Aith F. Intersectorial health-related policies: the use of a legal and theoretical framework to propose a typology to a case study in a Brazilian municipality. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4449-4456.. Tomando essa tipologia como modelo, tanto o PNSSP quanto a PNAISP poderiam ser encaixados no primeiro tipo, pois são coordenados pelo Ministério da Saúde em colaboração com o Ministério da Justiça. Entretanto, quando saímos do âmbito federal em direção ao estadual de gestão do PNSSP, parece que o segundo tipo é mais apropriado para descrevê-lo, pois muitas vezes as secretarias de saúde deixam a cargo das de justiça tanto a contratação de recursos humanos quanto a execução do financiamento, reservando-se ao papel de capacitadora das equipes de saúde das unidades prisionais.
Os órgãos responsáveis pela gestão em âmbito federal do PNSSP – ou Plano somente – eram a Área Técnica de Saúde Penitenciária no Ministério da Saúde e a Coordenação de Apoio à Assistência Jurídica, Social e à Saúde no Ministério da Justiça, a citada Área lotada no Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas (DAPES) da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) e a referida Coordenação em outra, a ‘Geral de Reintegração Social e Ensino’, parte da Diretoria de Políticas Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional44. Silva M, Costa-Moura R. De louco infrator a pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei: sobre categorias governamentais e processos de vulnerabilização. Interseções 2013; 15(2):301-328.. O mesmo órgão se manteve gerindo a PNAISP – ou Política apenas – no Ministério da Justiça e o órgão responsável no Ministério da Saúde foi renomeado de Área Técnica de Saúde Prisional e posteriormente Coordenação Nacional de Saúde Prisional55. Folder da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. [acessado 2015 set 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/politica_nacional_saude_sistema_prisional.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/pol... .
Em maio de 2015 visitei Brasília-DF e fiquei surpreso ao entrar no Ministério da Saúde em busca da Coordenação Nacional de Saúde Prisional: a sala encontrava-se vazia de pessoas e cheia de caixas! Um funcionário do Departamento de Atenção Básica (DAB) – distinto do DAPES, que também compõe a SAS – me levou até lá, já que a porta encontrava-se trancada. Em pouco mais de um ano após a emergência da Política, houve a extinção da Coordenação.
Com o objetivo de compreender essas alterações recentes na gestão em âmbito federal da saúde penitenciária (SP) no Brasil, algumas publicações do campo científico de SP serão reunidas no tópico ‘O Problema’, sem a pretensão de realizar uma revisão de literatura e apenas com o intuito de construir um problema científico: a linguagem das políticas de SP. As contribuições de P. Bourdieu para a análise de categorias estatais – como PPL – serão apresentadas no tópico ‘Referencial teórico-metodológico’, rumo a uma abordagem estruturalista genética desse “campo burocrático”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014.. Uma análise de documentos e pronunciamentos públicos sobre SP será desenvolvida no tópico seguinte, ‘Resultados e Discussão’. Enfim, as manutenções na gestão em âmbito federal da SP serão indicadas no tópico ‘Considerações Finais’.
O problema
Segundo revisão sistemática (RS) das publicações sobre SP entre 1993 e 2010, os estudos são predominantemente quantitativos, “evidenciando uma possível lacuna no enfoque qualitativo”77. Góis SM, Santos Júnior MPO, Silveira MFA, Gaudêncio MMP. Para além das grades e punições: uma revisão sistemática sobre a saúde penitenciária. Cien Saude Colet 2012; 17(5):1235-1246., realizados no Rio de Janeiro e São Paulo, com PPL do sexo masculino, visando identificar o seu perfil sociodemográfico e as condições de saúde, bem como a incidência de tuberculose, aids e hepatites nos presídios. Os autores reuniram mais de 1000 artigos nos 5 continentes, selecionando para análise apenas 11 nacionais na íntegra, concluindo que a SP é “uma questão de saúde pública, na qual a própria condição de confinamento dos detentos representa uma oportunidade singular para a implementação de programas terapêuticos, medidas preventivas e ações educativas específicas”.
John Howard, um reformador inglês do século XVIII, já se preocupava com os problemas sanitários dos internos de prisões88. Rosen G. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec, Unesp; 1994., de modo que a SP pode ser considerada uma questão de saúde pública há séculos. Estudos quali-quantitativos sobre a judicialização da SP no Rio de Janeiro (RJ) confirmam não só que PPLs estão mais vulneráveis a adquirir tuberculose que o resto da população como também que esta transmissão, geralmente, se dá na própria prisão e não antes de ingressar nela, apontando para a necessidade de evitar que pessoas venham a adquirir doenças por terem sido encarceradas, a dita “segunda pena”99. Larouze B, Ventura M, Sánchez AR, Diuana V. Tuberculose nos presídios brasileiros: entre a responsabilização estatal e a dupla penalização dos detentos. Cad Saude Publica 2015; 31(6):1127-1130.. Confinamento faz mal à saúde, não é uma oportunidade, sendo que pesquisa avaliativa quali-quantitativa nacional com gestores, trabalhadores, pesquisadores e egressos do sistema prisional destaca essa proteção da saúde das PPLs1010. Silva M. Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política. Brasília: Verbena; 2015..
E o que dizem outras publicações sobre SP após 2010? Estudo quantitativo conduzido com dados secundários provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação1111. Miranda A. Análise epidemiológica da situação de saúde da população privada de liberdade no Brasil: dados de bases de informação. Vitória: UFES, Proex; 2015. também abrange o país e não apenas os “grandes centros”77. Góis SM, Santos Júnior MPO, Silveira MFA, Gaudêncio MMP. Para além das grades e punições: uma revisão sistemática sobre a saúde penitenciária. Cien Saude Colet 2012; 17(5):1235-1246.. Na lista de casos notificados em unidades prisionais segundo agravos entre 2007 e 2014, a tuberculose, a aids e a hepatites ocupam, respectivamente, a primeira, a terceira e a quarta posição, resultado convergente com a RS. O segundo agravo da lista é a dengue e o – inusitado – sexto é o atendimento antirrábico: como explicá-los? Insalubridade e tortura nos presídios? Segundo a RS,“Os métodos quantitativos permitem avaliar a importância, a gravidade, o risco, a tendência de agravos e as ameaças... Contudo, o campo da saúde é produto de uma realidade complexa... que demanda investigações com abordagem qualitativa”77. Góis SM, Santos Júnior MPO, Silveira MFA, Gaudêncio MMP. Para além das grades e punições: uma revisão sistemática sobre a saúde penitenciária. Cien Saude Colet 2012; 17(5):1235-1246..
Há estudos sobre as PPLs do sexo feminino também, qualitativos inclusive, como um conduzido desde o ano de 2011em unidades localizadas no Distrito Federal (DF), revelando a tímida presença dos ‘jaleco branco’ por comparação às ‘dona gente’ (gíria local para se referir respectivamente aos profissionais de saúde e aos agentes penitenciários) no cotidiano institucional1212. Diniz D. Cadeia: relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2015.. Em unidade localizada na Paraíba (PB), as 8 mulheres entrevistadas apontaram fé, filhos, trabalho, espera pela liberdade, música e companheiras de cárcere como meios de superar as adversidades, uma forma de resiliência1313. Lima GMB, Pereira Neto AF, Amarante PDC, Dias MD, Ferreira Filha MO. Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência. Saúde em Debate 2013; 37(98):446-456..
Consideradas na RS uma “possível lacuna”, o “enfoque qualitativo” comparece igualmente em estudos com PPLs do sexo masculino, como o desenvolvido no ano de 2011 em Minas Gerais (MG), com PPLs, agentes penitenciários e profissionais de saúde1414. Martins ELC, Martins LG, Silveira AM, Melo EM. O contraditório direito à saúde de pessoas em privação de liberdade: o caso de uma unidade prisional de Minas Gerais. Saúde Soc 2014;23(4):1222-1234.. A efetividade do direito à saúde é definida como “garantia do acesso integral e com qualidade aos serviços de saúde” e restrita “à parcela da população que pode pagar por tais serviços”, contraditória na medida em que “é formalizado apenas em lei e não em sua concretude”, sendo que os profissionais de saúde reconhecem que o acesso é mediado pelos agentes penitenciários. Entrevistas com dezenas de profissionais de saúde em Mato Grosso (MT), conduzidas em 2013, indicam um contraste entre a segurança na carreira por conta da seleção em concurso público e a insegurança no cotidiano devido à localização do serviço de saúde no interior do estabelecimento penal1515. Lopes V. Experiências de profissionais de saúde em unidades prisionais localizadas em Cuiabá-MT [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva; 2014..
O foco desses estudos está na atenção à SP, na tensão entre saúde e segurança, cuidado e custódia, algo constatado em estudos quantitativos1616. Fernandes L, Alvarenga CW, Santos LL, Pazin-Filho A. Necessidades de aprimoramento do atendimento à saúde no sistema carcerário. Rev Saude Publica 2014; 48(2):275-283.,1717. Barbosa ML, Celino SDM, Oliveira LV, Pedraza DF, Costa GMC. Atenção básica à saúde de apenados no sistema penitenciário: subsídios para a atuação da enfermagem. Esc. Anna Nery 2014; 18(4):586-592. posteriores a 2010 e em outro qualitativo anterior1818. Diuana V, Lhuilier D, Sánchez AR, Amado G, Araújo L, Duarte AM, Garcia M, Milanez E, Poubel L, Romano E, Larouzé B. Saúde em prisões: representações e práticas dos agentes de segurança penitenciária no Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(8):1887-1896.. Uma análise documental da PNAISP procura explicar essa tensão, afirmando que a demanda de cuidado pode significar fragilidade e “num espaço essencialmente masculino, cuidar da saúde é o último predicado atribuído às masculinidades viris. Há um controle desses corpos que repudia aqueles que demandam cuidados”1919. Santos H, Nardi H. Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso? Physis 2014; 24(3):931-949.. Outra análise documental da PNAISP, comparando-a com o PNSSP e a Lei de Execução Penal de 1984 (LEP), teve como objetivo “apresentar e discutir as nomenclaturas utilizadas nesses três marcos para se referir à população carcerária, considerando o momento sócio-histórico em que tais políticas foram lançadas”2020. Lermen H, Gil BL, Cunico SD, Jesus LO. Saúde no cárcere: análises das políticas sociais de saúde voltadas à população prisional brasileira. Physis 2015; 25(3):905-924. e resultados: “pessoa privada de liberdade”, “sob custódia do Estado temporariamente” e “beneficiários” no momento atual de debate sobre a redução da maioridade penal; “pessoa privada de liberdade” e “população confinada nas unidades prisionais” no período da busca por um Estado de Bem-Estar Social a partir dos anos 2000; “preso” e “condenado” no período de redemocratização do Brasil dos anos 1980, respectivamente. Argumenta-se que “tais mudanças de terminologias estão diretamente vinculadas ao contexto sócio-histórico em que surgem”, “condenado” estando ausente do PNSSP e da PNAISPe PPL começando a ser utilizado no primeiro e consolidando-se na segunda, embora permanências terminológicas também possam ser depreendidas: o termo “preso” consta nas três normativas.
Ambas as análises da PNAISP destacam que ela inclui os agentes penitenciários, familiares e demais trabalhadores e visitantes do sistema prisional entre os beneficiários das ações de saúde, não só as PPLs como o PNSSP. Análises documentais como estas compõem a área de SP até 2011, elas não apresentam metodologia e assim encontram dificuldades para serem incluídas em RSs. Uma avaliação do PNSSP, por exemplo, constata a posição marginal da saúde na política penitenciária nacional, por meio da comparação entre os investimentos financeiros na coordenação em que a saúde está inserida no Ministério da Justiça e os mesmos na construção de presídios, com os primeiros representando aproximadamente 2% dos últimos2121. Sá e Silva F. A cidadania encarcerada: problemas e desafios para a efetivação do direito à saúde nas prisões. In: Costa A, Souza Júnior JG, Delduque MC, Oliveira MSC, Dallari SG, organizadores. O Direito achado na rua: introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB; 2008. p. 241-253.. A tensão entre saúde e segurança é considerada “falsa”, já que “representa uma visão bastante estreita de segurança, entendida mais como ausência de rebelião do que como uma situação na qual os presos têm ‘acesso a seus direitos de assistência e se sentem contemplados na sua condição de sujeitos submetidos às leis e à ação de custódia do Estado’...”, enquanto a articulação entre ações de saúde, educação e trabalho no cotidiano dos estabelecimentos penais é recomendada.
Análise quali-quantitativa da implantação do PNSSP mostra que o DF e MG foram tomados como exemplares no que tange à gestão da SP, em ambos os casos pelo protagonismo de suas secretarias de saúde, com as equipes de SP de MG alcançando uma cobertura populacional mais abrangente que a dos demais estados da federação2222. Ferreira M. Necessidades humanas, direito à saúde e sistema penal [dissertação]. Brasília: Departamento de Serviço Social; 2008.. Esta peculiaridade de MG tornou-o uma referência para outros estudos comparativos sobre a gestão da SP no país, como a investigação acerca da implantação do PNSSP no Piauí2323. Oliveira V, Guimarães S. Saúde atrás das grades: o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário nos estados de Minas Gerais e Piauí. Saúde em Debate 2011; 35(91):597-606.. Enquanto nos estudos sobre a atenção à SP enfatiza-se as barreiras no acesso, esses analistas do PNSSP focalizam a expansão das equipes; enquanto os primeiros costumam abordar a falta de atenção especializada (condicionada à articulação com as redes de atenção à saúde fora da unidade prisional), os segundos focalizam a ampliação da atenção básica (contemplada pela presença de equipes de SP).
Segundo a citada análise da PNAISP, alguns princípios dela “não estavam contemplados no Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde no Sistema Penitenciário”1919. Santos H, Nardi H. Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso? Physis 2014; 24(3):931-949.. De acordo com normativas já mencionadas, não é este o nome do Plano, algo que nos chama a atenção para a linguagem das políticas de saúde, ora marcadas pela “saúde integral” (LGBT) ora pela “atenção integral à saúde” (Homem), ora dirigidas a “populações” (Negra) ora a “pessoas” (privadas de liberdade). Estudo quantitativo citado também se engana em relação ao nome do PNSSP, designando-o Política Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário1111. Miranda A. Análise epidemiológica da situação de saúde da população privada de liberdade no Brasil: dados de bases de informação. Vitória: UFES, Proex; 2015.. Não se trata aqui apenas de corrigir o nome do Plano, mas de sublinhar essa dimensão da análise das políticas de SP relativa às nomenclaturas2020. Lermen H, Gil BL, Cunico SD, Jesus LO. Saúde no cárcere: análises das políticas sociais de saúde voltadas à população prisional brasileira. Physis 2015; 25(3):905-924.. A mudança terminológica de ‘preso’ a ‘pessoa privada de liberdade’ era estratégica para certos segmentos envolvidos na elaboração da Política: “Recusando a autodesignação ‘militantes de justiça criminal’, membros da sociedade civil recomendam que a política seja voltada para as ‘pessoas privadas de liberdade’ (inclusive as que não se encontram no sistema prisional, como ‘vitimas de violência em cárcere privado’)”2424. Silva M. De preso a pessoa privada de liberdade: a produção de categorias e classificações na formulação de políticas públicas de saúde. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; 2013; Rio de Janeiro. p. 164-165.. Já a mudança terminológica de ‘louco infrator’ a ‘pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei’ apontaria para um processo de vulnerabilização de uma população anteriormente considerada intrinsecamente perigosa, facilitando que a mesma viesse a ser concebida como passível de cuidado e não apenas de custódia44. Silva M, Costa-Moura R. De louco infrator a pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei: sobre categorias governamentais e processos de vulnerabilização. Interseções 2013; 15(2):301-328..
As análises de políticas públicas também podem ganhar relevo na área de SP, não só a atenção à saúde nas unidades prisionais. As articulações – entre educação, trabalho e saúde na atenção, entre saúde e justiça na gestão – podem ser tão relevantes quanto as tensões – entre saúde e segurança, cuidado e custódia, atenção básica e especializada, direitos civis e sociais – neste campo científico. Procuro destacar a linguagem das políticas de SP nestas análises por duas razões: vivi como gestor do Plano a seletividade na oferta de acesso à saúde para PPLs, sua restrição às que estão apenadas e a estabelecimentos como os presídios, excluindo aquelas detidas e as cadeias2525. Silva M. As pessoas em medida de segurança e os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no contexto do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. 2010; 20(1):95-105.; compreendo as mudanças terminológicas em SP com base em alguns conceitos de P. Bourdieu, tais como categorias e classificações estatais2424. Silva M. De preso a pessoa privada de liberdade: a produção de categorias e classificações na formulação de políticas públicas de saúde. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; 2013; Rio de Janeiro. p. 164-165. e nomeações oficiais44. Silva M, Costa-Moura R. De louco infrator a pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei: sobre categorias governamentais e processos de vulnerabilização. Interseções 2013; 15(2):301-328..
Referencial teórico-metodológico
Estudo sobre a institucionalização da Medicina de Família no Brasil e na Argentina, também com base em P. Bourdieu e reunindo debates em um grupo virtual, destaca uma controvérsia sobre o nome da especialidade2626. Bonet O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2014.. Enquanto a saúde da família deixava de ser apenas um programa para alcançar o patamar de estratégia no governo federal brasileiro na passagem entre os séculos XX e XXI, os médicos envolvidos passaram a considerar a expressão ‘medicina geral comunitária’ muito restrita para representá-los enquanto grupo, listando um conjunto de termos alternativos para tanto: Medicina Familiar e Comunitária, Medicina de Família e Comunitária, Medicina de Família e Comunidade e Medicina Integral Familiar e Comunitária. Essa tentativa de criar uma identidade grupal, demarcando e cristalizando uma identidade profissional, estabiliza-se no ano de 2000 durante o I Congresso Luso-Brasileiro de Medicina-Geral Familiar e Comunitária:
No nome e no objetivo do congresso já se pode notar o efeito da conjuntura que fez necessária a união dos diferentes grupos. O nome inclui, entre as palavras ‘geral’ e ‘comunitária’, a palavra ‘familiar’. Isto teve como objetivo superar a disputa pelos nomes, porque, ao integrar ‘familiar’, incluíam o Programa Médico de Família de Niterói, que era um dos organizadores, e os médicos de família de Portugal2626. Bonet O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2014..
Essa mudança nos nomes para se referir a programas e estratégias governamentais, bem como especialidades científicas, podem dizer respeito a conflitos em torno da identidade grupal. Como na saúde da família, também na SP há situações nas quais conflitos entre grupos se instalam e expressões podem ser consideradas restritas2424. Silva M. De preso a pessoa privada de liberdade: a produção de categorias e classificações na formulação de políticas públicas de saúde. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; 2013; Rio de Janeiro. p. 164-165..
Como outros caminhos para a análise de políticas de saúde, P. Bourdieu também ressalta os enunciados sustentados nos documentos institucionais e nos discursos oficiais2727. Batista T, Mattos R. Sobre Política. In: Mattos R, Baptista T, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 83-129. em suas pesquisas sobre o Estado, embora sublinhe o “drama público”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014. e não “o que se esconde”2727. Batista T, Mattos R. Sobre Política. In: Mattos R, Baptista T, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 83-129., destacando o palco e não os bastidores. Tendo como base empírica uma pesquisa sobre a política de habitação na França dos anos 1970, seus auxílios para moradia e, particularmente, as comissões formadas para elaborá-la, convocando seus leitores a fazer o mesmo com a Seguridade Social, P. Bourdieu nos indica outros caminhos nos quais algumas fontes orais e documentais ganham relevo. Adoto a perspectiva teórica e metodológica desenvolvida por este autor para descrever e analisar documentos e pronunciamentos públicos sobre a SP, entre eles normativas, folders e cartilhas publicadas desde a promulgação da LEP, em 1984, bem como falas de gestores em encontros e fóruns em torno do lançamento da PNAISP, entre 2012 e 2015.
Partindo da hierarquia entre os dois significados dicionarizados da palavra Estado, o Estado-território antecedendo e criando o Estado-administração, o primeiro equivalente ao agrupamento humano fixado num território determinado e o segundo à autoridade soberana exercendo-se sobre este agrupamento, P. Bourdieu questiona-a, apontando que ela tem como base uma visão democrática, segundo a qual é o agrupamento que delega o poder à autoridade, ou as pessoas organizadas/sociedade civil/nação que mandatam o governo/Estado/serviços públicos66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014.. Este autor procura inverter esta hierarquia e assim sublinhar o papel de certos agentes institucionais na construção do Estado, já que os mesmos exibiriam um “... conjunto de recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social em conjunto, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque têm atrás de si a força do oficial”, como é o caso dos princípios e diretrizes do SUS repetidamente pronunciados pelos gestores. O Estado-administração é definido como “... um conjunto de departamentos dos ministérios, uma forma de governo (...) conjunto de instituições burocráticas...”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014..
Deste modo, o processo de formulação das políticas públicas pode gerar um conjunto de enunciados que colaboram para a constituição da própria população-alvo, seus agentes e instituições. As palavras que têm atrás de si a força do oficial seriam expressões que passam por um trabalho de eufemização, nomeações criadoras que passam por um trabalho jurídico, como no exemplo acerca da substituição da expressão “veado” por “homossexual”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014.. Para P. Bourdieu, a gênese do Estado passaria por um trabalho de oficialização, a passagem de um ponto de vista particular para universal, como as categorias nos censos66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014.. Um exemplo de oficialização de pontos de vista singulares e universalização de classificações sociais encontra-se na escola: quando pronunciado por um membro do Estado e dirigido a um cidadão, como quando um professor avalia um aluno, a palavra idiota deixa de ser um ponto de vista particular para ganhar universalidade, legitimidade, fazendo do julgamento moral um “insulto autorizado”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014..
Para P. Bourdieu o Estado seria um campo burocrático, distinto do de poder, o primeiro sendo aquele no qual se dá “... o trabalho necessário para garantir a participação do cidadão na vida pública...”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014., e o segundo estreitamente ligado às classes dominantes.
Através dessa pesquisa sobre as nomeações criadoras divulgadas em documentos e pronunciamentos, acerca do produto do trabalho jurídico de comissões, bem como dos insultos autorizados pronunciados pelos gestores, espero que alguns princípios de visão e divisão do mundo social venham a ganhar visibilidade. No sentido de acompanhar esse processo de “fazer-se Estado” imerso em “recomendações governamentais”66. Bourdieu P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras; 2014., tomando como objeto específico de investigação o campo burocrático da SP, distinto do já estudado campo científico da mesma77. Góis SM, Santos Júnior MPO, Silveira MFA, Gaudêncio MMP. Para além das grades e punições: uma revisão sistemática sobre a saúde penitenciária. Cien Saude Colet 2012; 17(5):1235-1246., pretendo descrever e analisar os enunciados governamentais acerca da SP em busca de categorias e classificações estatais.
Resultados e discussão
Em nova visita ao Ministério da Saúde durante o mês de dezembro de 2015, soube por outro funcionário que o órgão responsável pela gestão em âmbito federal da PNAISP vinha sendo a Coordenação Geral de Gestão da Atenção Básica do DAB, sendo que toda a equipe desta ficou encarregada da gestão da emergente Política, após um momento inicial no qual membros da extinta Coordenação ficaram exclusivamente encarregados de fazê-lo. Como compreender essa mudança entre ‘saúde penitenciária’ e ‘saúde prisional’ no nome da Coordenação, bem como esse deslocamento da gestão da PNAISP do DAPES para o DAB, das “ações programáticas e estratégicas” para a “atenção básica”, no contexto da emergência da Política e da extinção da Coordenação?
As análises de políticas de SP costumam incluir a LEP, o PNSSP e a PNAISP, raramente outras 4 normativas: a Portaria nº 485/1995, que institui um comitê de assessoramento para a área de sistema penitenciário na então Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, promulgada pelo Ministério da Saúde; a Portaria Interministerial nº 2.035/2001, que institui uma comissão interministerial com a atribuição de definir estratégias e alternativas de promoção e assistência à saúde no âmbito do sistema penitenciário nacional, promulgada pelos Ministérios da Saúde e da Justiça; a Portaria Interministerial nº 1.679/2013, que institui o grupo de trabalho interministerial para a elaboração da Política Nacional de Saúde no Sistema Prisional e o comitê técnico de assessoramento e acompanhamento desta Política, promulgada pelos dois ministérios citados e também pelo de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, bem como 3 Secretarias, de Políticas para as Mulheres, de Direitos Humanos e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, estas últimas aglutinadas em uma única em 2015; e a Portaria Interministerial nº 628/2002 (Quadro 1).
A primeira portaria é considerada a origem do PNSSP2828. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Legislação em Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2010., com o monitoramento de uma doença em particular: a aids. A segunda detalha a composição do grupo de trabalho que elaborou a primeira versão do PNSSP, mostrando que um membro do DAB fez parte dele, sendo que a terceira indica a multissetorialidade do processo de elaboração da PNAISP. A revogação da quarta portaria significou duas mudanças, no tipo de financiamento do PNSSP – de per capita para por equipe – e nas ações de saúde mental – deixou de incluir tratamento e reabilitação psicossocial das PPL1010. Silva M. Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política. Brasília: Verbena; 2015., antecipando em muito a recente Portaria nº 94/2014, que institui o serviço de avaliação e acompanhamento das medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei. A instituição de comitês, comissões e grupos de trabalho, como já nos indicava P. Bourdieu, é uma das maneiras de fazer-se Estado, de constituição de campos burocráticos, os agentes institucionais que as compõe muitas vezes ficando imersos em um trabalho jurídico: a elaboração de enunciados que carregam consigo a força do oficial, eufemismos, nomeações criadoras, insultos autorizados.
Todas as portarias citadas dizem respeito a sistemas, ora penitenciário, ora prisional, de maneira que a primeira classificação social universalizada nesses coletivos governamentais foi a divisão do sistema carcerário em ‘sistema penitenciário’ e ‘sistema prisional’, o segundo mais abrangente que o primeiro por incluir mais estabelecimentos penais, ambos distintos do SUS, também um sistema. A fronteira entre o sistema de saúde e o sistema carcerário é marcada por grades e muros, sendo também reiterada através dessas classificações estatais.
Durante um encontro nacional no ano de 2012, um gestor do PNSSP citou a ampliação da população-alvo da ação governamental como diferença entre o PNSSP e a futura Política: apenas os julgados e apenados no PNSSP, a “saúde no sistema penitenciário”, restrita aos presídios, penitenciárias, colônias e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs), também os presos provisórios na PNAISP, a “saúde no sistema prisional”, incluindo cadeias e delegacias. Esse e outros gestores presentes se identificam como da ‘saúde prisional’, não mais da ‘saúde penitenciária’, sedimentando essa classificação estatal no nome de um setor – Coordenação Nacional de Saúde Prisional e não mais Área Técnica de Saúde Penitenciária – e no título de uma publicação – Legislação em Saúde no Sistema Prisional11. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Legislação em saúde no sistema prisional. Campo Grande, Brasília: Fiocruz Pantanal, MS; 2014. e não mais Legislação em Saúde no Sistema Penitenciário2828. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Legislação em Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2010.. Nas palavras de outro gestor da PNAISP durante um fórum em 2015, “o Plano atendia a um itinerário carcerário restrito, a Política a todo o itinerário carcerário”.
Como citado anteriormente, membros da sociedade civil organizada que participaram de um encontro nacional rejeitaram a alcunha ‘militância da justiça criminal’2424. Silva M. De preso a pessoa privada de liberdade: a produção de categorias e classificações na formulação de políticas públicas de saúde. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; 2013; Rio de Janeiro. p. 164-165., se autointitularam como ‘familiares e amigos de PPLs’ – nome de uma associação em MG – para sedimentar uma categoria estatal em particular: PPL1010. Silva M. Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política. Brasília: Verbena; 2015.. Nesse trabalho de oficialização de pontos de vista singulares, a população-alvo da Política termina sendo apenas ‘PPLs no sistema prisional’ e não o conjunto das PPLs, ou seja, apenas “aquelas com idade superior a 18 (dezoito) anos...”11. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Legislação em saúde no sistema prisional. Campo Grande, Brasília: Fiocruz Pantanal, MS; 2014., os adultos em cumprimento de pena privativa de liberdade e medida de segurança e não os adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa. Em outras palavras, enquanto os gestores consideram o itinerário carcerário do Plano restrito, outros participantes do processo de formulação de políticas de SP sinalizaram uma restrição na própria Política, parcialmente contemplada em uma normativa promulgada 4 meses depois, a Portaria nº 1.082/2014, que redefine as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI).
Desta maneira, a categoria estatal ‘PPL no sistema prisional’ é a marca da PNAISP, não exatamente ‘PPL’, com o governo federal reservando o direito à saúde primeiramente aos adultos “que cumprem pena” no PNSSP e posteriormente aos “privados de liberdade no sistema prisional” na PNAISP, primeiro aos adultos e depois aos adolescentes e jovens em situação de privação de liberdade. Como à Portaria nº 1.777/2003, que instituiu o PNSSP, seguiu-se a Portaria nº 1.482/2004, sobre a atenção à saúde dos adolescentes em conflito com a lei, à PNAISP seguiu-se a PNAISARI.
A classificação estatal que separa ‘penitenciária’ de ‘prisional’ (saúde e sistema, área técnica e coordenação) é reiterada, a categoria estatal ‘PPL no sistema prisional’ é sedimentada. Considero esses produtos do trabalho jurídico dos comitês, comissões e grupos de trabalho citados anteriormente relevantes para compreender uma das alterações recentes na gestão da SP no Brasil, a mudança no nome da Área Técnica de SP.
A outra alteração, o deslocamento da gestão da PNAISP do DAPES para o DAB, com a extinção da Coordenação, diz respeito menos aos termos para se referir às populações e mais àqueles para se referir a estabelecimentos. Embora a atenção básica já pudesse ser considerada o eixo da oferta de ações e serviços de saúde nos estabelecimentos penais no PNSSP, as “equipes de saúde no sistema prisional” – de 3 e não apenas 2 tipos – são nomeadas “equipe de atenção básica prisional” na PNAISP11. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Legislação em saúde no sistema prisional. Campo Grande, Brasília: Fiocruz Pantanal, MS; 2014.. Além disso, “as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde” a serem executadas por Ministérios, secretarias estaduais e municipais devem sê-lo sempre “no âmbito da atenção básica”. Finalmente, a cartilha da PNAISP é apresentada como um “compilado de portarias que guiam a implantação da atenção básica à saúde” das PPLs. Em outras palavras, o PNSSP é elaborado por uma comissão da qual membros do DAB fizeram parte, tendo se desdobrado em uma área técnica específica para sua gestão no DAPES e, posteriormente, quando torna-se uma PNAISP, sua gestão primeiro aponta para a necessidade de uma coordenação nacional e depois para atividades gerais de uma coordenação justamente no DAB. Com a emergência da PNAISP, com suas equipes de atenção básica e execuções que devem acontecer no âmbito da atenção básica, extingue-se a Coordenação, e a gestão da SP deixa de ser especificidade de agentes e instituições, tornando-se atividade genérica de equipes.
Além disso, a saúde na LEP é uma das modalidades de “assistência”, como a jurídica, não exatamente a “atenção integral à saúde” prevista tanto no PNSSP quanto na PNAISP. A assistência à saúde na LEP inclui atividades de “caráter preventivo e curativo”, mas esta normativa não menciona a “promoção da saúde” como o PNSSP22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2004.. Essas normativas operam com uma classificação estatal diferente: 1 – uma lógica binária que inclui apenas prevenção e cura na LEP; 2 – o tripé “prevenção, promoção e assistência à saúde” no PNSSP22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2004.; 3 – a inclusiva “promoção, proteção, prevenção, assistência, recuperação e vigilância em saúde” na PNAISP11. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Legislação em saúde no sistema prisional. Campo Grande, Brasília: Fiocruz Pantanal, MS; 2014.. Deste modo, o PNSSP não “busca apenas prevenir e reduzir o índice de doenças sexualmente transmissíveis”1919. Santos H, Nardi H. Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso? Physis 2014; 24(3):931-949., sendo que esse tipo de perspectiva é mais próxima da Portaria nº 485/1995.
A “prevenção, promoção e recuperação da saúde” regularmente citada em documentos e pronunciamento públicos de gestores é uma classificação estatal comum no setor saúde, embora fiquemos nos perguntando se a prevenção não seria “de doenças” e não “à” ou ainda “em saúde”, ainda mais quando lemos no folder da PNAISP que uma de suas principais ações é “Promover ações para promoção de doenças...”55. Folder da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. [acessado 2015 set 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/politica_nacional_saude_sistema_prisional.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/pol... . Quando olhamos outra vez para o campo científico da SP, ficamos nos perguntando se grande parte dos estudos não operaria com base na LEP, investigando a “assistência à saúde” mais do que a promoção da saúde prevista no PNSSP.
Essas categorias e classificações estatais dizem respeito a lógicas administrativas que orientam o conteúdo e a forma da oferta de serviços de saúde para as PPLs. A promoção da saúde compõe as políticas de SP apenas a partir do PNSSP, diferentemente da prevenção de doenças, já explicitada na LEP. No PNSSP indica-se inclusive a possibilidade de “pessoas presas” atuarem como “agentes promotores de saúde”22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2004., algo em continuidade com os agentes comunitários de saúde e com a estratégia de saúde da família. Ou seja, a promoção da saúde é uma atividade que surge como dever do Estado junto aos reclusos em algumas unidades prisionais apenas a partir do momento em que a saúde é considerada um direito, distinguindo-se da assistência. Além disso, esse surgimento aponta para esquemas de pensamento sedimentados no cotidiano da gestão da SP, associando promoção da saúde enquanto ação, saúde da família enquanto modelo e atenção básica enquanto prioridade. Considero que essas classificações sociais foram acentuadas na PNAISP, pois ela inclui familiares e agentes penitenciários entre os beneficiários apenas de algumas ações, justamente de promoção da saúde, não de assistência, como também que elas contribuíram para que a gestão da SP viesse a ser considerada da alçada da atenção básica.
Considerações finais
Uma conversa informal com integrantes de órgãos governamentais indicou uma explicação para a extinção da Coordenação: o deslocamento de um dos membros da equipe para outro Ministério. Posteriormente, durante outro bate-papo, mais uma explicação surgiu: a demissão de outro membro da equipe. Finalmente, em um estudo sobre outra política de saúde, menciona-se em nota de rodapé o fato de que uma integrante da SAS determinou a extinção da Coordenação em abril de 2015, bem como a alocação da gestão da PNAISP no DAB2929. Gomes M. Uma etnografia, múltiplos crachás: conhecendo a Política Nacional de Saúde Integral LGBT pelas malhas do Estado [projeto de tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social; 2014.. Ou seja, o motivo da minha surpresa, a coincidência temporal entre a emergência da Política e a extinção da Coordenação, teria a seguinte explicação: tratar-se-ia do resultado de deslocamentos, demissões e determinações, do efeito das atitudes tomadas por agentes institucionais, basicamente pessoas que ocupam cargos no governo.
Salas vazias de pessoas e cheias de caixas, surgimento de uma Política, extinção de uma Coordenação, modificação do nome da Coordenação de ‘saúde penitenciária’ para ‘saúde prisional’, da população-alvo de ‘pessoas privadas de liberdade’ para ‘pessoas privadas de liberdade no sistema prisional’, do serviço de ‘equipe de saúde em unidade prisional’ para ‘equipe de atenção básica prisional’, incorporação da gestão da Política pela atenção básica: eis algumas das alterações na gestão em âmbito federal da saúde penitenciária no Brasil. Considerando as explicações apresentadas acima, procurarei explorar outras possibilidades de análise, tendo como base o referencial teórico-metodológico apresentado anteriormente.
A abordagem adotada por mim contribuiu para visibilizar as alterações na gestão da SP, não as permanências, embora eu não as ignore. Por exemplo, a PNAISP, como o PNSSP, também opera com Termos de Adesão dos estados da federação, estando em continuidade com o mesmo nesse sentido. Além disso, há diferenças entre o PNSSP e a PNAISP que não foram abordadas, como o financiamento das ações de SP: no Plano, o Ministério da Saúde ocupa-se com a maior parte do valor do incentivo financeiro à saúde penitenciária – 70% – e na Política com a totalidade do mesmo. Ou seja, ao longo de quase 20 anos, entre a entrada da saúde penitenciária na agenda do Ministério da Saúde em 1995 e o lançamento da PNAISP em 2014, o Ministério da Justiça deixa de ser oficialmente o responsável exclusivo pela alocação de qualquer valor monetário na “assistência à saúde” prevista na LEP de 1984.
Assim, as alterações recentes na gestão em âmbito federal da saúde penitenciária no Brasil apontam para mudanças e permanências, algo que talvez colabore para que futuramente textos como este venham a se referir não mais à SP – levando em conta o campo científico – mas à saúde prisional – considerando o campo burocrático.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2016
Histórico
- Recebido
30 Set 2015 - Aceito
08 Mar 2016 - Revisado
10 Mar 2016