O impacto da prisão na saúde mental dos presos do estado do Rio de Janeiro, Brasil

Patricia Constantino Simone Gonçalves de Assis Liana Wernersbach Pinto Sobre os autores

Resumo

O artigo tem como objetivo analisar as condições de saúde mental dos presos e custodiados do estado do Rio de Janeiro e sua relação com o aprisionamento, através da análise de escala de depressão e do Inventário de Sintomas de Estresse. Amostra: 1573 indivíduos, obtidos por amostragem estratificada proporcional ao tamanho. População estudada: mais da metade possui até 29 anos; 70,6% têm cor da pele preta/parda; 80% têm religião, 77,4% com bom vínculo familiar; 42,9% têm menos de um ano de prisão; 22,9% trabalham no presídio. Estresse: 35,8% dos homens e 57,9% das mulheres. Fatores associados ao estresse entre homens: tempo de prisão e vínculo familiar. Presos com 1 a 9 anos de prisão possuem uma chance igual a 0,55 a daqueles com menos de 1 ano de reclusão; aqueles com vínculo regular e ruim possuem chance maior em relação àqueles com bom vínculo. Entre as mulheres, o vínculo regular/ruim representa maior chance de desenvolvimento dos problemas de saúde mental; trabalho representou proteção contra o estresse. Depressão: 7,5% das mulheres e 6,3 % dos homens apresentam sintomas depressivos graves. Entre os homens, praticar alguma religião, ter bom vínculo familiar e trabalhar na prisão são fatores protetores. Entre mulheres, apenas vínculo familiar associou-se com sintomas depressivos.

Saúde mental; Depressão; Estresse; Prisões

Introdução

No Brasil, em 2013, a população carcerária somava 574.027 indivíduos, incluindo-se os presos que se encontravam sob a custódia da polícia, com uma taxa nacional de encarceramento de 393,3/100.000 habitantes e déficit de 220.057 vagas no sistema prisional. No continente americano, o Brasil perde apenas para os Estados Unidos em números absolutos11. Lima RS, Bueno S, coordenadores. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2014. v.8. No Estado do Rio de Janeiro, em setembro de 2014, haviam 38.762 presos (95,4% homens), segundo a Superintendência de Recursos Humanos da Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro.

As prisões brasileiras são marcadas por um conjunto de carências de natureza estrutural e processual que afetam de forma direta os resultados produzidos em relação à pretendida ressocialização dos reclusos e à sua saúde. Estudos mostram que aspectos como ócio, superlotação, pouca quantidade de profissionais dedicados à saúde, ao serviço social e à educação, além de arquitetura precária e ambiente insalubre, alimentam o estigma e atuam como potencializadores de diferentes iniquidades e enfermidades.

Investigações consideram que os prisioneiros possuem taxas mais elevadas de transtornos mentais, quando comparados com a comunidade em geral22. Butler T, Allnutt S, Cain D, Owens D, Muller C. Mental disorder in the New South Wales prisoner population. Aust N Z J Psychiatry 2005; 39(5):407-413.,33. Gunter DT, Arndt S, Wenman G, Allen J, Loveless P, Sieleni B, Black DW. Frequency of mental and addictive disorders among 320 men and women entering the Iowa prison system: use of the MINI-Plus. J Am Acad Psychiatry Law 2008; 36(1):27-34.. São encontradas estimativas entre 10 e 15% para a doença mental grave entre os presos em comparação com o constatado na população geral, que é de 2%44. Teplin LA, Abram KM, McClelland GM. Prevalence of psychiatric disorders among incarcerated women. Arch Gen Psychiatry 1996; 53(6):505-512,55. Lamb HR, Weinberger LE, Gross BH. Community treatment of severely mentally ill offenders under the jurisdiction of the criminal justice system: a review. Psychiatr Serv 1999; 50(7):907-913.. Mais da metade de todos os detentos dos Estados Unidos tiveram problemas de saúde mental: 56% dos presos estaduais, 45% dos presos federais, e 64% dos reclusos em cadeias locais66. James DJ, Glaze LE. Mental Health Problems of Prison and Jail Inmates. Washington: US Department of Justice, Office of Justice Programs, Bureau of Justice Statistics; 2006.. Teplin et al.44. Teplin LA, Abram KM, McClelland GM. Prevalence of psychiatric disorders among incarcerated women. Arch Gen Psychiatry 1996; 53(6):505-512 apontam que, em comparação com os dados de saúde mental da população geral de Chicago (EUA), os presos daquele estado apresentavam taxas de transtornos mentais três a quatro vezes superiores, com prevalências ainda mais altas entre as mulheres presas (excetuando-se a esquizofrenia), indicando um diferencial de gênero. Os transtornos mentais mais encontrados foram sintomas depressivos, abuso de substâncias psicoativas e transtorno de estresse pós-traumático. Aproximadamente 81% das mulheres presas em Chicago apresentaram ao menos um transtorno psiquiátrico ao longo da vida44. Teplin LA, Abram KM, McClelland GM. Prevalence of psychiatric disorders among incarcerated women. Arch Gen Psychiatry 1996; 53(6):505-512.

Estudo realizado com presos franceses encontrou 40%, de ambos os sexos, com transtornos mentais77. Minervine J. Psychiatrieenmilieupénitentiaire. 1ére Journée dês soins Psychiatriquesen Milieu Pénitentiaire. Conférence; Franche-Comté; France; 2001.. Pesquisa realizada na Nova Zelândia com todos os detentos do país encontrou elevados índices de transtornos mentais, principalmente decorrentes de abuso de drogas, psicoses, transtornos afetivos, transtorno obsessivo compulsivo e estresse pós-traumático88. Brinded PM, Simpson AI, Laidlaw TM, Fairley N, Malcolm F. Prevalence of psychiatric disorders in New Zealand prisons: a national study. Aust N Z Psychiatry 2001; 35(2):166-173.. Um estudo realizado na Inglaterra e na Escócia aponta que apenas 1 entre 10 presos não apresenta transtorno mental, com dados impactantes para as doenças investigadas: psicoses - 10% dos homens e 14% das mulheres; neuroses - 59% dos homens e 76% das mulheres; alcoolismo - 58% dos homens e 36% das mulheres; tentativa de suicídio - 2% na última semana, e em ¼ das mulheres no último ano99. Reed J. Mental health care in prisons. Br J Psychiatry 2003; 182:287-288.. Em Honduras, encontraram uma taxa global de transtornos mentais de 43,7%1010. Irías-Ortiz R, Martínez-Molina G, Amaya-Martinez G, Soto RJ, Reyes-Ticas A. Prevalencia de trastornos mentales en personas privadas de libertad. Rev. Med. Post UNAH 1999; 4(4):129-136..

No Brasil, dados do Estado de São Paulo em 2006 indicam prevalência significativa de transtornos mentais na população prisional, especialmente entre as mulheres. O estudo aponta que 61,7% dos presos tiveram ao menos uma ocorrência de transtorno mental ao longo da vida e cerca de 25% daqueles que estavam em regime fechado preenchiam critérios diagnósticos para pelo menos um transtorno mental no ano anterior ao estudo. Cerca de 11,2% dos detentos homens e 25,5% das mulheres apresentavam transtornos mentais graves. Os autores fizeram uma projeção desses números para o Brasil, calculando em cerca de 60 mil os prisioneiros com transtornos mentais graves1111. Andreoli SB, Ribeiro SW, Quintana MIS, Higashi MK, Dintof AM. Estudo da prevalência de transtornos mentais na população prisional do estado de São Paulo [relatório científico final]. Brasília: CNPq; 2008.,1212. Andreoli SB, Abdalla-Filho E, Santos MM, Marques CM, Taborda JGV. Transtorno Mental e Prisão. In: Taborda JGV, Abdalla-Filho E, Chalub M, organizadores. Psiquiatria Forense. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 585-597..

Sintomas depressivos entre pessoas presas é tema frequentemente investigado. Refere-se ao humor persistentemente deprimido, à perda de interesse e alegria e reduzida energia, que levam ao aumento da fadiga e à atividade diminuída. Um estudo aponta que 22,9% dos homens e 33,1% das mulheres presas na Paraíba, utilizando escala de rastreamento, apresentam depressão de moderada a grave; em estágio grave estão 10,5% dos homens e 17,2% das mulheres1313. Araújo FAFM, Nakano TC, Gouveia MLA. Prevalência de depressão e ansiedade em detentos. Avaliação Psicológica 2009; 8(3):381-390.. Os autores encontraram percentuais mais elevados de novatos nas prisões com graus moderado e grave de depressão e muito mais pessoas com grau leve entre apenados antigos, sugerindo a adaptação ao meio, a partir da diminuição de sintomas relatados pelos que estão há mais tempo na prisão. Mulheres presas do Sul do Brasil, avaliadas para depressão, evidenciaram a prevalência de 48,7% de depressão grave1414. Canazaro D, Argimon I. Características, sintomas depressivos e fatores associados em mulheres encarceradas no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(7):1323-1333..

Uma pesquisa realizada com a população prisional de Santa Catarina vincula os sintomas de depressão não a transtornos mentais específicos e sim ao ambiente insalubre; à superlotação que obriga os presos a dormirem juntos numa mesma cama ou no chão; às celas escuras, com pouca ventilação e odor fétido; à má alimentação; ao sedentarismo; à convivência com pessoas violentas e agressivas, dentre as quais se destacam os agentes penitenciários; o confinamento em “solitárias” em que o espaço físico é mínimo; a restrição à luz solar e aos contatos humanos1515. Damas FB, Oliveira WF. A saúde mental nas prisões de Santa Catarina, Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental 2013; 5(12):1984-2147..

O estresse é um problema de saúde mental que se encontra associado a diversos outros transtornos físicos e mentais, dentre eles a depressão. É uma resposta orgânica não específica para situações estressoras ao organismo1616. Selye H. Confusion and controversy in the stress field. J Human Stress 1975; 1(2):37-44.; sua presença de forma moderada significa uma normal adaptação às demandas do dia a dia, porém quando excessivo, é uma manifestação de sofrimento psíquico com reações físicas e emocionais e os sintomas variam dependendo da fase em que se encontra1717. Lipp MEN. Mecanismos neuropsicológicos do stress: teoria e aplicações clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.. A vivência de estresse no ambiente prisional - agudo ou prolongado - é especialmente relacionada a sintomas depressivos, sendo mais comum entre os novos presos e estando relacionado ao maior risco de suicídio na prisão1818. Ahmad A, Mazlan NH. Stress and Depression: A Comparison Study between Men and Women Inmates in Peninsular Malaysia. International Journal of Humanities and Social Science 2014; 4(2):153-160..

As pesquisas que tratam da saúde dos detentos são relativamente recentes em todo o mundo, influenciadas pelo “Projeto de Saúde no Sistema Prisional” iniciado pela Organização Mundial de Saúde, em 1995, do qual faz parte o documento “Guia de Saúde nas Prisões”1919. World Health Organization (WHO). Health in prisons: a WHO guide to the essentials in prison health. Copenhagen: Organization Regional Office for Europe; 2007.. Normas internacionais, a partir de então, passaram a definir a qualidade dos cuidados a serem dedicados aos reclusos. Dentre elas, ressalta-se o princípio segundo o qual os presos não devem sair da prisão em pior situação de saúde do que quando nela entraram. Esse princípio foi adotado e reforçado por Recomendação do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, em 1998, e pelo Comitê Europeu, que segue a Convenção das Nações Unidas sobre a “Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes”1919. World Health Organization (WHO). Health in prisons: a WHO guide to the essentials in prison health. Copenhagen: Organization Regional Office for Europe; 2007..

Com estas preocupações em mente, este artigo tem como objetivo conhecer a situação de saúde mental de presos e custodiados de ambos os sexos no estado do Rio de Janeiro, avaliada através da prevalência de sintomas depressivos e de estresse e de sua associação a fatores individuais, familiares e prisionais. A investigação de vinculação entre os dois transtornos mentais é outro aspecto investigado no artigo.

Materiais e Métodos

Os dados são oriundos de estudo seccional de autoavaliação das condições de saúde referidas pela população carcerária do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2013. Foram aferidas as condições de saúde, os hábitos de vida e o uso de serviços de saúde e qualidade de vida dos detentos por meio de um questionário anônimo e autopreenchível, aplicados de forma coletiva por uma equipe de pesquisadores treinados.

A partir de uma população de estudo de 24.231 detentos distribuídos em 33 unidades do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, foi realizada amostragem estratificada proporcional ao tamanho (PPT) com dois fatores de estratificação: localização da unidade prisional (Capital, Baixada e Interior) e sexo (masculino e feminino). Foram excluídos do universo: hospitais, institutos penais, patronatos, casas de albergado, colônias agrícolas e unidades militares.

No dimensionamento amostral para obtenção de estimativas de proporção, empregou-se um erro absoluto de 7%, nível de confiança de 95% e prevalência de cada um dos eventos de interesse de 50%. A amostra final foi composta por 1573 indivíduos, sendo 1110 homens e 463 mulheres. As análises realizadas incorporam o peso e o plano amostral2020. Minayo MC. Estudo das Condições de Saúde e Qualidade de Vida dos Presos e Custodiados e das Condições Ambientais do Sistema Prisional do Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa: FAPERJ; 2014..

Algumas etapas antecederam a coleta dos dados nas unidades: (1) recebimento da lista nominal de todos os presos da Unidade enviada pelo Ministério Público; (2) sorteio dos presos que deveriam fazer parte da pesquisa; (3) envio de ofício ao Diretor de cada Unidade com agendamento da pesquisa e nomes dos pesquisadores responsáveis. Quando da chegada à Unidade, a lista nominal dos presos e outra de substituições era entregue ao chefe de segurança que, num primeiro momento, precisava localizar em que galeria, cela ou pavilhão, cada uma daquelas pessoas se encontrava. Essa etapa consumiu bastante tempo e muitas vezes, a listagem fornecida pelo Ministério Público para a seleção da amostra já estava desatualizada, precisando-se utilizar as listas de substituições, cujos nomes também foram sorteados das originais.

Depois de localizados, os presos eram trazidos para o espaço destinado à aplicação do questionário. A equipe de pesquisadores então destinava bastante tempo para a explicação da pesquisa. O termo de Consentimento Livre e Esclarecido era lido em voz alta e todas as dúvidas eram sanadas. Também era explicitado que aqueles que tivessem interesse em participar, mas que não soubessem ou tivessem dificuldade para ler e escrever poderiam contar com o apoio de um dos pesquisadores para ajudá-los a colocar as respostas.

As seguintes variáveis que aferem aspectos individuais do preso são utilizadas no artigo: faixa etária (18-29, 30-49, 50 e mais anos); cor da pele (branca, preta/parda, amarelo/indígena); prática de religião e sua frequência (sim frequentemente, sim às vezes, não); situação conjugal (solteiro, casado, viúvo e separado); presença de sintomas de depressão, aferida pelo Inventário de Depressão de Beck2121. Beck AT, Ward C, Mendelson M. Beck Depression Inventory (BDI). Arch Gen Psychiatry 1961; 4(6):561-571.; e existência de sintomas de estresse, medido pelo Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp. Aspectos relativos à vida na prisão também foram indagados, como: vínculo familiar (mantém vínculo bom, regular/ruim, não mantém vínculo, não tem família); existência de visitas familiares na prisão (sim, não); tempo de aprisionamento (menos que 1 ano, entre 1 e 9 anos, 10 ou mais anos); e realização de trabalho na prisão (classificado e não classificado).

O Inventário de Depressão de Beck é um instrumento de autorrelato, com 21 itens, cada um com quatro alternativas, refletindo graus crescentes de gravidade do quadro de depressão2222. Cunha J. Manual em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.. O escore final é obtido por meio da soma dos escores individuais dos itens. A partir do escore final os indivíduos são classificados em quatro níveis de depressão: mínimo (0 a 11), leve (12 – 19), moderado (20 – 35) e grave (36 – 63). No presente artigo o desfecho depressão engloba apenas as categorias moderada e grave.

O Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos (ISSL)2323. Lipp MEN, Guevara AJH. Validação empírica do Inventário de Sintomas de Stress. Estudos de Psicologia 1994; 11(3):43-49. baseia-se no modelo trifásico de estresse desenvolvido por Selye em 19842424. Selye H. The Stress of Life. New York: McGrawHill; 1984., o qual identifica as seguintes fases: alerta, resistência e exaustão. Contudo, quando da avaliação do instrumento original, identificou-se uma quarta fase, a qual foi denominada de quase exaustão. O ISSL é composto de três quadros, que se referem às fases do estresse (alerta, resistência, quase exaustão e exaustão), sendo o segundo quadro utilizado para avaliar duas fases. Nos quadros são listados sintomas físicos e psicológicos típicos de cada fase. O primeiro quadro se refere aos sintomas observados nas últimas 24 horas, o segundo compreende os sintomas experimentados na última semana e o terceiro envolve os sintomas observados no último mês. Ao todo, a escala abrange 37 itens de natureza somática e 19 de natureza psicológica. A aplicação do instrumento permite verificar: (1) se o indivíduo apresenta sintomas significativos de estresse; (2) em que fase do estresse ele se encontra; e (3) qual a sintomatologia mais frequente (física ou psicológica). A obtenção do escore final envolve uma série de etapas e uso de tabelas de correção e se inicia com a soma dos sintomas assinalados em cada um dos quadros e consequente obtenção de três escores. Se o indivíduo totalizar um escore superior a seis no primeiro quadro ou três no segundo quadro ou oito no terceiro isso é indicativo da presença de estresse. A seguir, de posse dos três escores brutos deve-se lançar mão de uma tabela de correção, encontrando três porcentagens. A maior delas indica a fase do estresse, sendo o quadro 1 indicativo da fase de alerta e o quadro 3, da fase de exaustão. Já o quadro 2 é dividido entre as fases resistência (escores entre 4 e 9) e quase exaustão (escores entre 10 e 15 com porcentagem acima de 50). Finalmente, para verificar quais sintomas prevalecem (físicos ou psicológicos) utilizam-se mais duas tabelas de correção.

Na análise estatística dos dados, inicialmente estimou-se as frequências simples e relativas das variáveis utilizadas no estudo. A seguir, procedeu-se a análise bivariada sendo as variáveis depressão e estresse consideradas como desfechos. Com a finalidade de investigar a associação entre os desfechos e as demais variáveis, empregou-se o teste qui-quadrado com um nível de significância de 5%. A seguir, quatro modelagens foram realizadas, visando analisar os dois problemas de saúde mental segundo sexo. Partiu-se da análise bivariada para seleção das variáveis que entrariam no modelo de regressão logística, sendo adotado como critério para entrada no modelo um p-valor < 0,20. Permaneceram nos modelos finais apenas as variáveis com p-valor < 0,05. As razões de chance brutas e ajustadas foram calculadas, assim como o intervalo de confiança de 95%. Na realização das análises estatísticas foram empregados o módulo complex samples do programa SPSS versão 20.0 e o pacote Survey do programa R versão 3.1.2. Todas as análises apresentadas utilizaram os dados expandidos, permitindo inferências para o conjunto de população prisional estudada.

Com o intuito de verificar se há diferença entre os níveis médios de sintomas depressivos e estresse entre homens e mulheres, empregou-se o teste t para dados independentes. Adicionalmente, verificou-se por meio de regressão linear simples a presença de associação entre os dois desfechos de interesse, sendo a variável estresse inserida no modelo como preditora e a depressão como variável desfecho. Nestas análises empregou-se os escores originais das variáveis depressão e estresse.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz/Fiocruz, sendo cumpridos os pré-requisitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde/CNS nº 466/2012, que normaliza as pesquisas com seres humanos.

Resultados

Na Tabela 1 verifica-se o perfil individual e familiar dos presos, segundo o sexo. Verifica-se que mais da metade dos presos possui até 29 anos e cor de pele preta/parda. Aproximadamente 80% dos detentos praticam uma religião, seja frequentemente ou às vezes. Em relação à situação conjugal, verificou-se que as categorias solteiro e casado são as mais usuais, perfazendo, respectivamente, 47,2% e 43,7%. No grupo das mulheres, contudo, o percentual de solteiras se destaca, totalizando 58,8% das detentas.

Tabela 1
Perfil dos presos no Estado do Rio de Janeiro, 2013.

A manutenção de um bom vínculo com a família foi relatado por 77,4% dos presos, sendo o percentual entre as mulheres um pouco inferior (68,7%). Verificou-se que 73,9% dos homens relataram receber visitas no presídio, enquanto que entre as mulheres este percentual foi de 58,6%.

Com relação ao tempo de prisão, chama a atenção o fato de que cerca de 42% dos homens e 47% das mulheres têm menos de um ano reclusos. Apenas 3,2% dos detentos têm tempos de prisão iguais ou superiores a 10 anos. Quanto à realização de trabalho na prisão, este foi mencionado por apenas 22,9% dos presos.

O estresse, aferido pelo Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp, foi observado em 35,8% dos homens e 57,9% das mulheres.

Observa-se que 7,5% das mulheres apresentaram sintomas depressivos grave, contra 6,3% dos homens. Ainda com relação à depressão, chama a atenção o elevado percentual de detentos com sintomas depressivos moderados (24,8% entre os homens e 39,6% entre as mulheres). Contudo, estes dados devem ser analisados com cautela, visto que esta variável possui grande quantidade de dados faltosos, o que impossibilitou o cálculo do escore para 48% dos homens e 46,1% das mulheres. Este problema não foi observado para a escala que aferiu estresse, para a qual o percentual de perdas foi de apenas 1,5%.

Estresse

A análise bivariada entre o desfecho estresse entre os homens e as demais variáveis mostrou associação estatisticamente significativa apenas com a tempo de prisão (p < 0,001).

Na Tabela 2 vê-se os resultados do modelo ajustado para avaliar fatores associados à presença de estresse nos presos do sexo masculino. Ficaram no modelo final tempo de prisão e vínculo familiar. Verifica-se da tabela que os presos com 1 a 9 anos de prisão possuem uma chance igual a 0,55 a daqueles com menos de 1 ano de reclusão. Quanto ao vínculo, aqueles com regular e ruim possuem uma chance maior (1,81), em relação àqueles com bom.

Tabela 2
Variáveis relacionadas ao estresse entre homens que permaneceram no modelo final.

Dentre as mulheres se observou associação estatisticamente significativa apenas com as variáveis vínculo familiar (p = 0,04) e trabalho na prisão (p = 0,01) na análise bivariada. Também no ajuste do modelo logístico (Tabela 3), apenas essas duas variáveis permaneceram no modelo final. Assim como observado nos outros modelos, a existência de um vínculo regular ou ruim representa maior chance de desenvolvimento dos problemas de saúde mental (OR = 1,95; IC95% = 1,06-3,63). Quanto ao trabalho, ele representou proteção também contra o estresse entre as mulheres (OR = 0,53; IC95% = 0,33 – 0,85).

Tabela 3
Variáveis relacionadas ao estresse entre mulheres que permaneceram no modelo final.

Depressão

A análise bivariada entre o desfecho depressão entre homens com todas as demais variáveis apresentadas na Tabela 1 mostrou associação estatisticamente significativa entre o desfecho e situação conjugal (p = 0,028), religião (p = 0,002), vínculo com a família (p = 0,005), visitas na prisão (p = 0,011), faixa etária (p = 0,03) e trabalho na prisão (p = 0,02). A seguir, todas as variáveis que apresentaram p-valor inferior a 0,20 foram consideradas na etapa de modelagem. Os resultados do modelo final ajustado são apresentados na Tabela 4. Verifica-se da tabela que as variáveis religião, vínculo familiar e trabalho na prisão foram as únicas que permaneceram no modelo final ajustado aos dados de depressão. Observa-se da tabela que aqueles que relataram praticar alguma religião eventualmente possuem uma chance de apresentar sintomas depressivos 2,34 vezes a daqueles que relataram fazê-lo frequentemente. Com relação ao vínculo familiar, observa-se uma chance maior entre aqueles que o mantém de forma regular ou ruim (OR = 2,46; IC95% = 1,32 – 4,57) em relação àqueles com bom. Quanto ao trabalho, este mostrou ser um fator de proteção para a depressão (OR = 0,49; IC95% = 0,28 – 0,87) entre homens.

Tabela 4
Variáveis relacionadas à depressão entre homens que permaneceram no modelo final.

Entre as mulheres, procedimentos similares foram executados, constatando-se, à análise bivariada que apenas a variável vínculo familiar mostrou-se estatisticamente associada ao desfecho. Procedeu-se o ajuste do modelo logístico com as variáveis cujo p-valor foi inferior a 0,20. Apenas a variável vínculo familiar mostrou associação com sintomas depressivos entre as mulheres. Verifica-se que aquelas que não possuem vínculo com a família têm uma chance 2,49 vezes à daquelas que o possuem bom.

Ao analisar a comparação dos níveis médios de sintomas depressivos entre homens e mulheres, verificou-se diferença estatisticamente significativa (p < 0,001). Resultado semelhante foi encontrado em relação aos níveis de estresse (p < 0,001). Mulheres têm maior escore médio de estresse (média = 20,6 e erro padrão = 1,2) e de sintomas depressivos (média = 19,71, erro padrão = 0,7) comparadas aos homens presos (médias 11,27 e erro padrão = 0,7; média = 16,3 e erro padrão = 0,6, respectivamente). O ajuste do modelo linear que avalia o estresse como preditor de depressão mostrou associação linear estatisticamente significativa para os homens (β = 0,14; p < 0,001) e para as mulheres (β = 0,13; p < 0,001).

Discussão

A elevada prevalência observada de estresse (35,8% em homens e 57,9% em mulheres) e de sintomas depressivos moderado e grave (entre 31,1% e 47,1%, respectivamente) entre indivíduos encarcerados no estado do Rio de Janeiro é apoiada em dados nacionais e internacionais, que ratificam a preocupação com estes transtornos mentais entre pessoas aprisionadas, especialmente no sexo feminino1515. Damas FB, Oliveira WF. A saúde mental nas prisões de Santa Catarina, Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental 2013; 5(12):1984-2147.,2525. Kravitz HM, Cavanaugh Junior JL, Rigsbee SS. A cross-sectional study of psychosocial and criminal factors associated with arrest in mentally ill female detainees. J Am Acad Psychiatry Law 2002; 30(3):380-390.

26. Jordan K, Schlenger WE, Fairbank A, Caddell JA. Prevalence of psychiatric disorders among incarcerated women. Arch Gen Psychiatry 1996; 53(6):513-519.

27. Almeida KM. Metáforas de um pena capital: um estudo sobre a experiência prisional e suas relações com a saúde mental das presidiárias [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 1998.

28. Lemgruber J. Cemitério dos vivos: sociologia de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro: Forense; 1999.

29. Oliveira VAS, Guimarães SJ. Saúde atrás das grades: o Plano Nacional de Saúde no sistema penitenciário nos estados de Minas Gerais e Piauí. Saúde e Debate 2011; 35(91):597-606.
-3030. Silva NC, Rosa MI, Amboni G, Mina F, Comim CM, Quevedo J. Transtornos psiquiátricos e fatores de risco em uma população carcerária. Arquivos Catarinenses de Medicina 2011; 40(1)..

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos66. James DJ, Glaze LE. Mental Health Problems of Prison and Jail Inmates. Washington: US Department of Justice, Office of Justice Programs, Bureau of Justice Statistics; 2006. apontou que 73% das mulheres em prisões estaduais e 55% dos presos do sexo masculino tinham pelo menos um problema de saúde mental. Nas prisões federais, a taxa encontrada foi de 61% das mulheres e 44% dos homens e em cadeias locais, 75% das mulheres em comparação com 63% dos presos do sexo masculino. Um estudo realizado em Chicago44. Teplin LA, Abram KM, McClelland GM. Prevalence of psychiatric disorders among incarcerated women. Arch Gen Psychiatry 1996; 53(6):505-512 constatou que 6,4% dos homens e 15% das mulheres tinham uma doença mental grave, como esquizofrenia, transtorno bipolar ou depressão maior. Estudo realizado em Farmington3131. Trestman RL, Ford J, Zhang W, Wiesbrock V. Current and lifetime psychiatric illness among inmates not identified as acutely mentally ill at intake in Connecticut’s jails. J Am Acad Psychiatry Law 2007; 35(4):490-500. mostrou que mais de dois terços dos detentos preenchiam os critérios para pelo menos um transtorno psiquiátrico ao longo da vida, quase a metade com transtorno de ansiedade, e mais de um terço com transtorno afetivo. As estimativas de morbidade psiquiátrica nas mulheres são superiores às dos homens, com exceção do transtorno de personalidade antissocial3131. Trestman RL, Ford J, Zhang W, Wiesbrock V. Current and lifetime psychiatric illness among inmates not identified as acutely mentally ill at intake in Connecticut’s jails. J Am Acad Psychiatry Law 2007; 35(4):490-500.. Todos estes dados reiteram ser crucial o oferecimento de serviços de saúde mental nos presídios, com especial atenção para o sexo feminino.

O perfil mais comum do preso do Rio de Janeiro é jovem, com a cor de pele preta ou parda, que pratica alguma religião, solteiro (especialmente mulheres) ou casado e com bom vínculo familiar (especialmente homens). A maioria está há pouco tempo na prisão e poucos (22,9%) realizam trabalho nela. Minayo2020. Minayo MC. Estudo das Condições de Saúde e Qualidade de Vida dos Presos e Custodiados e das Condições Ambientais do Sistema Prisional do Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa: FAPERJ; 2014., descrevendo mais detalhadamente esta população, argumenta que são pessoas pobres, com baixa escolaridade, que tinham mais empregos informais que formais antes de serem detidos e que correspondem ao estrato comumente denominado “classes populares”. Dados do Departamento Penitenciário Nacional3232. Moura TW, Ribeiro MR. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: DEPEN; 2015. sobre o total de presos no Brasil indicam que: 75,2% dos encarcerados têm penas que vão até no máximo oito anos; 93,8% são homens; 67% são pardos e negros; 55,3% dos detentos têm entre 18 e 29 anos de idade; e 57% são solteiros. Estes dados comprovam o perfil jovem, masculino, pardo ou negro e com menos tempo prisional no país. Como descreve Wacquant3333. Wacquant L. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2001., as prisões brasileiras são “campos de concentração para pobres” que mais se assemelham a empresas públicas de “depósito industrial de dejetos sociais” do que instituições que servem para alguma função penológica (como reinserção).

Os resultados das modelagens realizadas tendo o estresse como variável de desfecho mostraram a relevância da preservação de bom vínculo familiar tanto para homens quanto para mulheres na prisão. O tempo de prisão foi fator relevante para explicar o estresse apenas entre homens, com o transtorno mais frequente nos presos novatos, em relação aos que estão com 1 a 9 anos de prisão. Já o trabalho na prisão mostrou-se fator protetivo apenas para as mulheres.

Segundo a Lei de Execução Penal brasileira, o trabalho do condenado tem finalidade educativa e produtiva; todavia, na prática, é visto preferencialmente como forma de diminuir custos operacionais ou de manter o preso ocupado2828. Lemgruber J. Cemitério dos vivos: sociologia de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro: Forense; 1999.,3434. Julião EF. O impacto da educação e do trabalho como programas de reinserção social na política de execução penal do Rio de Janeiro. Rev Brasileira de Educação 2010; 15(45):529-596.. Em um estudo realizado no Rio Grande do Sul, os presos se ressentem pela inexistência de critérios de seleção para o trabalho e pela inércia da instituição em buscar uma tarefa em que possam encontrar significado3535. Lemos AM, Mazzilli C, Klering LR. Análise do trabalho prisional: um estudo exploratório. Rev. adm. Contemp 1998; 2(3):129-149..

Canazaro e Argimon1414. Canazaro D, Argimon I. Características, sintomas depressivos e fatores associados em mulheres encarceradas no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(7):1323-1333. identificam uma associação significativa entre o tempo de reclusão e a intensidade da depressão em mulheres presas do Sul do Brasil, diferente do resultado do presente artigo, que mostrou associação apenas entre os homens. Segundo os autores, os sintomas se tornam menos frequentes após 26 meses de prisão. O estudo apontou ainda que as presas que exercem alguma atividade laborativa dentro da prisão apresentam menos sintomas depressivos, a exemplo do que se encontrou no presente artigo.

Como fatores associados ao surgimento de estresse no contexto prisional, Ahmad e Azlan1818. Ahmad A, Mazlan NH. Stress and Depression: A Comparison Study between Men and Women Inmates in Peninsular Malaysia. International Journal of Humanities and Social Science 2014; 4(2):153-160. destacam que a percepção de controle sobre a vida é severamente abalada no contexto prisional. Outros fatores que facilitam seu surgimento são: o ambiente impróprio, a superlotação, a alimentação, o sedentarismo e as relações sociais estabelecidas.

As modelagens realizadas tomando a depressão como desfecho mostram que, novamente, apenas a preservação do bom vínculo familiar é fator protetor para ambos os sexos. Entre homens, outras duas variáveis mostraram-se importantes: a prática mais frequente de alguma religião e o trabalho na prisão.

Poucos estudos no Brasil abordaram a saúde mental em população carcerária e a relacionaram com a religiosidade. Em uma pesquisa realizada com 358 mulheres encarceradas em São Paulo, uma maior religiosidade pessoal associou-se a menor frequência de transtorno mental à análise bivariada, embora o resultado não tenha se mantido no modelo multivariado3636. Moraes PAC, Dalgalarrondo P. Mulheres encarceradas em São Paulo: saúde mental e religiosidade. J Bras Psiquiatria 2006; 55(1):50-56.. Nesta pesquisa, as mulheres que se declararam muito religiosas e religiosas apresentaram menos frequência do transtorno do que aquelas que se declararam pouco religiosas ou sem religião. A literatura internacional aponta a religiosidade como um elemento protetor da saúde mental3737. Larson D, Swyers JP, McCullough ME. Scientific research on spirituality and health: a consensus report. London: National Institute for Healthcare Research; 1997.,3838. Koenig HG, Larson DB. Religion and mental health: evidence for an association. Intern Rev Psychiatry 2001; 13:67-78.. Estudo com mulheres presas em Ribeirão Preto/SP encontrou que não praticar alguma religião multiplica o risco de ter depressão moderada por 6,09, especialmente entre mulheres jovens3939. Pinese CSV. Identificação da Depressão em Mulheres no Sistema Prisional [dissertação]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2008..

A associação entre estresse e sintomas depressivos, verificada neste artigo, é referenciada em outros trabalhos1818. Ahmad A, Mazlan NH. Stress and Depression: A Comparison Study between Men and Women Inmates in Peninsular Malaysia. International Journal of Humanities and Social Science 2014; 4(2):153-160.,4040. Boothby JL, Durham TW. Screening for depression in prisoners using the Beck Depression Inventory. Criminal Justice and Behavior 1999; 26(1):107-124.

41. Birmingham L. Mental Disorder and Prisons. Psychiatric Bull 2004; 28:393-397.
-4242. Gunter TD. Incarcerated women and depression: A primer for the primary care provider. J Am Med Womens Assoc 2004; 59(2):107-112.. Trestman et al.3131. Trestman RL, Ford J, Zhang W, Wiesbrock V. Current and lifetime psychiatric illness among inmates not identified as acutely mentally ill at intake in Connecticut’s jails. J Am Acad Psychiatry Law 2007; 35(4):490-500., refere o elevado grau de comorbidade psicopatológica entre presos, destacando a dependência de substâncias, o transtorno de estresse pós-traumático e a depressão maior. Estes fatos indicam a necessidade de ampla avaliação de saúde mental nas unidades prisionais. Exemplificando o sofrimento decorrente das condições existentes nos presídios do Rio de Janeiro, apresentam-se algumas falas oriundas do mesmo grupo de presos investigados no presente artigo2020. Minayo MC. Estudo das Condições de Saúde e Qualidade de Vida dos Presos e Custodiados e das Condições Ambientais do Sistema Prisional do Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa: FAPERJ; 2014.: tratamento humilhante não transforma, revolta, aqui não somos ressocializadas, somos humilhadas; o presídio nos traz problemas psicoemocionais. Dentre os homens surgem os mesmos sentimentos: aqui é um massacre, nessas condições é impossível socializar-se; é uma vergonha tratar assim o ser humano; sofremos constrangimentos físicos, mentais e ofensas pessoais.

Como limitações do artigo ressaltam-se a ausência de avaliação clínica dos transtornos mentais e a necessidade de se investigar mais amiúde a comorbidade entre apenados, aspectos que demandam mais investimentos em pesquisas com este grupo social vulnerável, bem como a utilização de metodologias mais complexas e abrangentes. Ressalta-se ainda a necessidade de maiores estudos com a população alvo investigada no artigo da escala que afere depressão, por ser de compreensão mais difícil e ser extensa. Esta necessidade de maior aprofundamento, todavia, não prejudicou substancialmente a análise dos resultados, constatando-se que os itens não respondidos não se direcionaram a questões específicas e que os indivíduos que deixaram itens incompletos não se diferem dos que completaram integralmente a escala em relação às demais variáveis estudadas.

Considerações finais

Esses achados indicam a necessidade de um maior investimento no sistema prisional, no sentido de ampliar e qualificar os serviços de saúde mental, com o intuito de fornecer a essa parcela da população um tratamento adequado, com especial ênfase ao atendimento à mulher encarcerada. Vale ressaltar a importância do vínculo familiar como um fator de proteção para a saúde mental. Nesse sentido, a estratégia de fortalecimento de vínculos familiares nas unidades prisionais, além de um direito a ser assegurado, configura-se como um fator de prevenção dos agravamentos de problemas emocionais.

Acreditamos que esses resultados podem fornecer elementos para futuras intervenções no sistema prisional e para a elaboração de políticas públicas de saúde, com especial ênfase à saúde mental. Tais demandas já foram pontuadas no Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário (2003). Tal documento prevê ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento e ainda a atenção às situações de grave prejuízo à saúde decorrente do uso de álcool e drogas, na perspectiva da redução de danos. Tais metas estão longe de serem atendidas.

A atenção à saúde das pessoas privadas de liberdade é um direito a ser garantido. No entanto, para além do diagnóstico e atenção aos problemas de saúde mental e outras demandas de saúde da população carcerária, o próprio sistema penitenciário precisa ser repensado, pois são muitos os elementos desse universo que se configuram como fatores de risco ao adoecimento: superlotação, condições das celas, ociosidade, alimentação inadequada, entre outros fatores. Na forma como está constituído, o sistema prisional, frequentemente, contribui para o aprofundamento das múltiplas exclusões vivenciadas pelos reclusos antes do encarceramento.

A produção e o agravamento de problemas de saúde física e mental sem o devido acompanhamento é mais um dos direitos dessa população que são violados. Faz-se urgente refletir que o único direito que o preso deve perder ao ser condenado é o da liberdade, todos os demais devem estar assegurados. Infelizmente não é essa a realidade do sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2015
  • Revisado
    27 Fev 2016
  • Aceito
    29 Fev 2016
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