Análise institucional & Saúde Coletiva

Cinira Magali Fortuna Sobre o autor
2013

Segundo Gilles Deleuze11. Deleuze G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34; 1992. os livros são máquinas complexas e “Escrever é um fluxo entre outros que não tem qualquer privilégio relativamente aos outros, e que entra em relações de corrente, de contracorrente, de turbilhão com outros fluxos”. Esse autor destaca duas formas possíveis de se ler um livro: uma mais conhecida, a que busca significados e significantes e outra mais “esquizo” que propõe o livro como máquina assignificante, cuja questão não é a interpretação que fazemos dele, mas se funciona e como funciona, quais afetos dispara11. Deleuze G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34; 1992.. Quando fazemos resenhas, em geral, estamos no primeiro modo, na interpretação. Aqui o ensaio é o de ficar entre os dois modos de ler, se é que isso é possível.

Os livros nos convidam a adentrar em paisagens e passagens pelas suas linhas e entrelinhas: podemos passar cruzando-as, entrelaçando-as, desatando-as e desconectando-as.

Se os livros nos endereçam convites, diria que esse, intitulado “Análise Institucional & Saúde Coletiva” convida-nos a uma reflexão sobre as instituições que nos atravessam e modulam, ao mesmo tempo em que as inventamos, as perpetuamos e até as dissolvemos. Assim, os autores nos apresentam possíveis conexões entre duas instituições: a Saúde Coletiva e a Análise Institucional, convidando-nos através de conceitos, experiências, experimentações e diferentes tipos de investigações e intervenções a compor novas paisagens. As instituições não são prédios, empresas ou estabelecimentos de trabalho, elas são formas e forças que se expressam em movimentos instituídos, instituintes, em processos de institucionalização, conformando um movimento dialético contínuo. Elas se constituem, histórica e socialmente, ao mesmo tempo que nos constituem em nossa subjetividade. A linguagem, a divisão técnica e social do trabalho, a saúde, a educação, são exemplos de instituições. Nelas se conforma aquilo que é permitido e correto de se dizer, sentir, pensar e fazer, o que é proibido: o proscrito e o prescrito22. Baremblitt G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012..

A Análise Institucional se propõe a dar visibilidade e “dizibilidade” às inúmeras instituições que nos atravessam e compõem nossas práticas e relações. Para a análise institucional estamos todos implicados nas instituições, em múltiplas ao mesmo tempo, e daí a importância da análise de implicação especialmente na produção de pesquisas, de livros, de projetos, de serviços. Esse e outros conceitos da análise institucional são abordados nesse livro.

A obra é aberta com apresentação e prefácio de duas referências: de um expoente da Saúde Coletiva, Gastão Wagner de Souza Campos e de uma eminente analista institucional brasileira, Heliana de Barros Conde Rodrigues, o que já indica o cruzamento desses dois campos extravasando as fronteiras do livro.

Na introdução, Solange L'Abbate nos apresenta de modo muito interessante a história do encontro entre a análise institucional e a saúde coletiva, que é também a história de um encontro pessoal e de formação dela com os professores franceses da Universidade Paris 8 – Saint Denis - França, René Lourau e Antoine Savoye.

Uma particularidade desse livro é que ele permite ser lido de modo não linear ou em sequência possibilitando inúmeras entradas, e até sua leitura por partes. Assim, é possível ler um tópico do final e, sem problemas, voltar a um capítulo do meio ou do início. Penso que meramente por fins didáticos a obra esteja organizada em seis partes, apresentadas a seguir na própria sequência encadeada.

Na primeira parte, “Análise institucional, contribuições teórico-metodológicas”, três pesquisadores franceses, que viveram o momento de criação e de anúncio da profecia inicial da análise institucional socioanalítica, fundada por René Lourau e Georges Lapassade, com quem conviveram na Universidade de Paris 8, trabalhando e refletindo sobre as intervenções realizadas, abordam três temáticas: Monceau, ao atualizar o modo de operar da socioanálise, propõe, descreve e debate os oito princípios da socioclínica institucional. A seguir, Marchat, apresenta pontos conectivos entre a análise institucional e a sócio-história. A partir de três exemplos, Marchat ilustra a complexidade e a riqueza proveniente desses dois campos. No terceiro e último texto dessa parte, é a vez de Samson apresentar a escrita no trabalho de institucionalização e o efeito Goody, incorporado à Análise Institucional por Lourau e revisitado por Samson, indicando que as normas da escrita, por exemplo, da escrita acadêmica, já antecipa e condiciona a forma como a pesquisa é conduzida. A autora nos convida a pensar a partir de um exemplo vindo da saúde, mais especificamente da enfermagem, em que o modo como a anotação na passagem de plantões entrelaça-se com o processo de institucionalização da enfermagem, desde seus primórdios e nos dias atuais com a busca da cientificidade e recusa à subordinação médica.

Na segunda parte, “Arranjos teórico-metodológicos em Análise Institucional: contribuições teórico-metodológicas”, estão as produções/investigações que nos convidam às reflexões sobre os caminhos metodológicos que escolhemos. A primeira é a contribuição a um debate muito atual de Pezzato e Prado sobre as diferenças e as aproximações entre a pesquisa-ação e a pesquisa-intervenção. No segundo texto, Sól reconstitui, à luz da análise institucional, na abordagem sócio-histórica, a trajetória da medicina geral comunitária no Brasil. No terceiro, Jesus, Pezzato e Abrahão tratam do tema do uso de diário em pesquisas filiadas à AI, trazendo reflexões sobre o uso dessa ferramenta para o profissional de saúde.

A terceira parte, “Análise institucional na Atenção Primária: intervenções e novas análises”, apresenta textos relativos às pesquisas desenvolvidas em Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Nesse sentido, temas que vêm sendo abordados recentemente no campo da saúde como doenças crônicas degenerativas, grupos educativos com diabéticos e práticas integrativas e complementares, ganham cores e contornos muito interessantes. Bilharinho Júnior apresenta um estudo sobre o Lian Gong através de depoimentos dos seus praticantes, em grande parte idosos; Fernandes Júnior aborda a articulação entre o planejamento e a utilização das UBSs no cuidado às doenças crônico-degenerativas e Malaman analisa criticamente as atividades de grupo desenvolvidas com diabéticos como um analisador do caráter educativo desses arranjos.

A quarta parte, “Análise Institucional e implicações nas práticas profissionais”, é aberta por Abrahão trazendo a relação entre a gestão e a subjetividade nas equipes de saúde; a seguir é Spagnol que que interroga sobre os conflitos vivenciados e produzidos nas equipes de enfermagem, propondo o dispositivo socioanalítico para abordá-los. Os textos que vêm a seguir tratam da formação dos trabalhadores da saúde: Mourão e Luzio trazem a trama da formação em medicina e psicologia intermediada pelo dispositivo da vivência dos estudantes em unidades de saúde. Pensar a residência médica e a análise de implicação dos residentes como dispositivo de formação é uma aposta de L'Abbate. A seguir, Vivot e Osório discutem a relevância da educação permanente em saúde para a produção de redes de combate à dengue. Por fim, Garcia retrata a vigilância e as redes de atenção, abordando o processo de institucionalização da atual vigilância em saúde.

A quinta parte é dedicada à articulação entre “Análise institucional e saúde mental”. Luzio nos apresenta o contraponto entre a atenção psicossocial e a psiquiatria biológica em sua historicidade. Jesus se dedica a analisar a institucionalização de um serviço de saúde mental em um pequeno município. Severo e Dimenstein discutem o ambulatório de saúde mental como analisador da política de atenção psicossocial. Dorigan traz os fóruns colegiados da saúde mental revisitados pela análise institucional.

Na sexta e última parte, “Compartilhando reflexões em análise institucional e outras análises”, o professor Emerson Merhy, de acordo com suas próprias palavras, um autor implicado e militante33. Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo como saber válido. In: Franco TB, Peres MAA, organizadores. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho. São Paulo: Hucitec; 2004. v. 1. p. 21–45., elabora um diálogo muito rico entre micropolítica do trabalho, educação permanente e análise institucional; Nascimento & Tedesco analisam os efeitos de contágio entre a cartografia e a análise institucional e Figueiredo aborda sua experiência com a formação acadêmica em Saúde Coletiva na perspectiva da análise institucional socioanalítica e da esquizoanálise.

Finalizando, não poderia deixar de exercitar “minimalistamente” minha análise de implicação, registrando aqui meu afeto e gratidão a todos esses autores que são referências bibliográficas de minha formação acadêmica e referências de humanidade e generosidade na minha formação inacabada de pessoa: que privilégio lê-los, que privilégio conhecê-los!

Sem dúvida, este é um livro de grande relevância para os estudiosos que buscam outros referenciais para análise dos objetos de investigação e intervenção no campo da Saúde Coletiva, campo esse em tessitura, tensionado por forças instituídas e instituintes: campo aberto para a invenção de novas formas de viver e de cuidar.

Referências

  • 1
    Deleuze G. Conversações Rio de Janeiro: Editora 34; 1992.
  • 2
    Baremblitt G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012.
  • 3
    Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo como saber válido. In: Franco TB, Peres MAA, organizadores. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho São Paulo: Hucitec; 2004. v. 1. p. 21–45.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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